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O El Dorado do futebol colombiano (1948-1954)

Eduardo de Souza Gomes 5 de maio de 2021
 

A Colômbia, desde a última semana, tem sido tema dos noticiários internacionais devido a violência e os conflitos ocasionados pelos protestos que se iniciaram a partir do projeto de reforma tributária proposto pelo governo do presidente Iván Duque. Porém, é válido destacar, que cenários relacionados à violência constante e a disputas políticas e sociais, são mais que comuns na história contemporânea do país. E muito desse processo, deve-se aos ocorridos iniciados na década de 1940.

Como em diferentes países latino-americanos, a Colômbia ficou marcada desde o século XIX pelas disputas políticas entre liberais e conservadores. Em 1946, após dezesseis anos, foi eleito como presidente o conservador Mariano Ospina Pérez, acabando assim com o período de domínio dos liberais (1930-1946) no país. Dois anos depois, um fato mudaria completamente os rumos da história colombiana no século XX. Três meses antes da formação da División Mayor (Dimayor), entidade que ficaria responsável pelo futebol profissional colombiano, ocorreu o assassinato de Jorge Eliécer Gaitán, principal líder do Partido Liberal do país, em 9 de abril de 1948.

Jorge Eliécer Gaitán
Jorge Eliécer Gaitán. Foto: Wikipédia

A morte de Gaitán modificou muitos aspectos da vida social e política colombiana. Esse ocorrido foi o início de uma série de atentados e atos de violência na capital Bogotá, que ficaram conhecidos fora da Colômbia como “Bogotazo” e no país como “el 9 de abril”. Desde 1946, já eram recorrentes os casos de violência política espalhados por várias partes do território nacional, entre liberais e conservadores. Todavia, após uma interrupção momentânea com a morte de Gaitán, a violência retornou por todo o país com mais força do que anteriormente, estimulando o que ficou conhecido na história colombiana como o período de La Violencia, considerado por muitos pesquisadores como um período de Guerra Civil não declarada entre os dois principais partidos do país, tendo durado até o fim dos anos 1950.

É nesse contexto de extrema violência política em todo o país, que o futebol se profissionalizou na Colômbia. O primeiro campeonato profissional de futebol teve início em agosto de 1948, apenas quatro meses depois da morte de Jorge Gaitán, ocorrida em 9 de abril. E a peculiaridade da eclosão do profissionalismo no futebol colombiano, se daria a partir de 1949: devido diversos fatores, o futebol colombiano se transformou num “celeiro” de grandes craques estrangeiros, que fizeram do esporte no país um verdadeiro espetáculo para a população.

A Adefútbol, que era a federação máxima responsável pelo futebol colombiano nesse contexto, era muito criticada pelas federações estaduais devido sua má organização nas competições do esporte no país. Como afirma Ruiz Bonilla,

“a falta de registros elaborados com base estatística, com todos os detalhes individuais de jogadores e de clubes em geral; a falta de responsabilidade e respeito com os procedimentos e a negligência dos dirigentes, viriam a ser consequências de uma deficiente organização”. (RUIZ BONILLA, 2008, p. 19, tradução nossa).

Com a chancela de empresários que buscavam investir no futebol da Colômbia, a Dimayor foi criada em 26 de junho de 1948, a partir de uma assembleia que ocorreu na cidade caribenha de Barranquilla e que contou com a participação dos dirigentes das equipes que pretendiam se tornar profissionais, tal como dos representantes das ligas de futebol existentes no país. Nessa mesma assembleia ficou estabelecido que a cidade sede da nova liga profissional de futebol seria Bogotá, e que uma nova assembleia seria realizada nessa localidade no dia 17 de julho de 1948.

Após a efetivação definitiva da Dimayor, que teve como seu primeiro presidente Humberto Salcedo Fernández, pôde-se iniciar o campeonato profissional em 15 de agosto de 1948, com dez equipes espalhadas pelo país disputando o título. Antes do início da competição em 1948, o time do Millonarios era considerado pela imprensa especializada como a principal equipe favorita. Mas, mesmo com toda badalação inicial, o clube não conseguiu alcançar o título nesse primeiro campeonato. O primeiro campeão colombiano de futebol profissional, foi o seu arquirrival de Bogotá, o Independiente Santa Fé.

A aceitação do primeiro campeonato profissional oficial pelo público, foi maior do que se imaginava. Após a confirmação dos resultados do campeonato profissional de 1948, se iniciou também a preparação do país para a disputa do Sul-Americano de seleções que ocorreria no Brasil no ano seguinte. A imprensa de Medellín, ainda no primeiro mês de 1949, confirmou que a Colômbia disputaria essa competição, destacando um empréstimo financeiro que seria alcançado pela Dimayor, para investir nos gastos de viagem da delegação, além de um acordo dessa com a Adefútbol.

Além da questão financeira, inicialmente a relação da Dimayor com a Adefútbol parecia amistosa, tanto em relação a participação da Colômbia no Sul-Americano, quanto sobre o desenvolvimento do campeonato profissional de futebol no país. Algumas assembleias foram realizadas no primeiro mês de 1949, para confirmarem e prepararem a organização do segundo campeonato nacional profissional de futebol na Colômbia, que teria início em maio desse ano. A partir dessas, as duas entidades haviam entrado em acordos iniciais que garantiam a convocação dos principais jogadores profissionais colombianos para atuarem pela seleção do país no Sul-Americano do Brasil, tendo sido algumas regras estabelecidas:

As gestões feitas até o momento parecem assegurar a participação da Colômbia no próximo campeonato sul-americano de futebol que ocorrerá no Rio de Janeiro. Com o objetivo de cooperar na seleção de jogadores e na organização da viajem, a Asociación Colombiana de Fútbol e a División Mayor ditaram interessantes resoluções que publicamos a continuação em via de informação:

Resolução Nº 2

A Asociación Colombiana de Fútbol, em uso das atribuições que lhe conferem os Estatutos e Regulamentos (…). Resolve:

Durante a temporada, porém só a partir da chegada na sede dos elementos profissionais pertencentes aos clubes rentados do país, escolhidos pelo treinador oficial, as ligas de Futebol de Colômbia, estão com a obrigação de facilitar as equipes profissionais afiliadas a División Mayor, os jogadores amadores que requerem, porém só para substituírem os profissionais escolhidos para o Rio de Janeiro e pelo tempo que durar o giro no exterior, devendo regressar uma vez finalizado o Campeonato do Sul, as equipes de origem, tudo de acordo com as transferências profissionais estatutárias (El Colombiano, [20?] de fevereiro de 1949, p. 12, tradução nossa).

Todavia, por uma série de tensões ocasionadas, esse cenário de acordo entre as duas federações não durou muito, considerando que claramente se formou uma disputa entre ambas pela centralidade do poder no futebol nacional. Dias depois da convocação dos jogadores para a seleção nacional, a Adefútbol optou por desfiliar internacionalmente a Dimayor, como podemos observar nessa publicação:

A Asociación Nacional de Fútbol (Adefútbol) em reunião plena que finalizou bem na entrada da noite, resolveu desfiliar internacionalmente a División Mayor de Fútbol.

Esta desfiliação não é desqualificação. Também resolveu proceder a constituir um comitê que organize uma nova división mayor, com sede em Barranquilla. Essa decisão da Adefútbol há causado uma enorme revolta em todos os círculos esportivos, onde havia uma extraordinária expectativa para ver como reagiria a Adefútbol frente a resolução número 15 do presente ano, onde proíbe que todos as equipes afiliadas a ela e seus respectivos jogadores se abstenham de intervir no selecionado nacional formado pela Adefútbol (El Tiempo, 11 de março de 1949, p. 7, tradução nossa).

Com essa resolução, a Dimayor passava a não ser mais entendida como uma entidade “oficial”. E tendo em vista que a partir de então não eram mais reconhecidos pela entidade oficial colombiana, assim como pela Conmebol e pela FIFA, os dirigentes da Dimayor, como Alfonso Senior Quevedo e Humberto “Salcefer” Salcedo Fernández, estabeleceram novos objetivos para o desenvolvimento da entidade. Entre esses, estava o de contratar jogadores estrangeiros renomados, sem pagar por seus passes, tendo em vista que não poderiam ser cobrados pelas instituições esportivas que não os reconheciam como dirigentes de um campeonato oficial. Assim, investiam em altos salários para que os atletas deixassem seus países e contratos de trabalho para irem atuar na Colômbia.

O pontapé inicial para a formação do El Dorado do futebol colombiano se deu na Argentina. Nesse país, havia ocorrido uma greve de jogadores de futebol durante o ano de 1948. Como afirma Maurício Drumond, os jogadores de futebol argentinos já possuíam desde 1944 um sindicato que os representava, que era a FAA – Sindicato de Futebolistas Argentinos e Agremiados. A FAA buscava estabelecer uma base de benefícios para os jogadores profissionais na Argentina, algo que não era atendido pela federação do esporte no país, tendo assim gerado a greve (DRUMOND, 2008, p. 72).

Em sua autobiografia, Alfredo Di Stéfano, um dos craques da equipe do River Plate de 1948, afirma que a greve foi também uma maneira de lutar por melhorias nas condições de trabalho dos atletas de equipes pequenas. Destaca ainda, que muitas equipes menores contratavam jogadores e, posteriormente, não honravam seus compromissos financeiros e profissionais. Com a ausência de pagamentos, muitos desses jogadores teriam que buscar outras formas de renda para manter o sustento familiar, o que não era aceitável em um país onde o futebol já era profissional desde 1931.

Nessas condições, boa parte dos atletas ficaram sem atuar pelo campeonato nacional e sem poder buscar uma transferência, já que a Lei do Passe não permitia uma saída legal para outro clube. Com isso, não poderiam jogar em times de outras importantes federações espalhadas pela América Latina e Europa. Porém, foi nesse momento que o campeonato profissional de futebol da Colômbia surgiu como uma opção plausível.

Millonarios campeão em 1951
Millonarios campeão em 1951, com Di Stéfano e Pedernera. Foto: Reprodução Twitter

Com a paralisação, muitos jogadores que atuavam na Argentina buscaram um novo mercado de trabalho. Um dos primeiros grandes nomes a se transferir para a Colômbia foi Adolfo Pedernera, antigo vice-presidente do sindicato de jogadores de futebol na Argentina. Pedernera chegou ao Millonarios de Bogotá em 10 de julho de 1949, com o segundo campeonato profissional até então na sua quinta rodada. Desde sua chegada à Colômbia, foi tratado como um verdadeiro ídolo pela torcida do país, encantada por ter um jogador de tão alto nível atuando em seu território.

Após o êxodo inicial em 1949, de grandes craques argentinos, a Colômbia se tornaria notícia por jornais de todo o mundo devido à forte liga de futebol que formava, mesmo essa não sendo reconhecida oficialmente. A partir de então, foi aberta as portas para grandes nomes de outros países também se transferirem para clubes colombianos. Jogadores brasileiros, peruanos, uruguaios e até europeus, foram “se aventurar” no “El Dorado” do futebol colombiano.

Já no primeiro campeonato profissional da Colômbia, em 1948, vinte e cinco jogadores estrangeiros haviam atuado nos clubes profissionais, com predominância dos argentinos, que totalizaram onze atletas. Porém, é em 1949, depois dos casos já explicitados da greve de atletas na Argentina e da “exclusão” da Dimayor do quadro de competições oficiais, que o campeonato profissional colombiano passou a ser conhecido como um verdadeiro El Dorado.

Um exemplo de como a lógica do espetáculo se implantou no futebol colombiano com a contratação dos atletas estrangeiros, é que as equipes passaram a construir suas próprias identidades clubistas, a partir da contratação de atletas de nacionalidades especificas. Por exemplo, o Millonarios, maior campeão do período, apostou na escola argentina, contratando nomes como Pedernera, Nestor Rossi, Di Stéfano, Julio Cozzi, Hugo Reyes, Antonio Maestrico Báez, Reinaldo Murín, entre outros; o Deportivo Cali possuiu, em diferentes momentos, predomínio de jogadores peruanos e argentinos; o Junior investiu na contratação de jogadores brasileiros, como Heleno de Freitas, Tim e Marinho, e húngaros; o Medellín formou a equipe conhecida como Danza del Sol, devido à predominância em seu elenco de jogadores peruanos, entre eles Félix Mina, Roberto Tito Drago, Andrés Bedoya, Segundo Titina Castillo, entre outros; o Independiente Santa Fé, primeiro campeão profissional em 1948 e rival local do Millonarios em Bogotá, apostou na “escola inglesa”, com a contratação de Charles Mitten, George Mounford e Neil Franklin, além de outros jogadores argentinos; o Deporte Quíndio chegou a atuar com uma equipe 100% argentina, enquanto o Deporte Cúcuta apostou em uruguaios e o Pereira nos paraguaios.

Revista Cronica, 29 de abril de 1950
Revista Cronica, 29 de abril de 1950

Essa divisão no êxodo de jogadores permitiu, em cada equipe e região, a criação de uma identidade, que estreitou a relação entre clube e torcida, baseado nas “escolas” de jogadores de futebol de países específicos, se tornando assim mais fácil a identificação do “outro” a ser vencido. A lógica do espetáculo passava a consolidar uma identidade clubista em cada localidade que se inseria no campeonato nacional profissional de futebol.

Esse processo se estende até 1951, quando ocorreu a efetivação do Pacto de Lima. Esse pacto foi o resultado de uma Assembleia realizada em Lima (Peru), onde nela ficaram estabelecidas, a partir de um acordo realizado entre a FIFA e a Dimayor, as bases para a oficialização dessa federação na Colômbia. A partir de então, além do campeonato profissional colombiano passar a ser reconhecido oficialmente, todos os jogadores que foram atuar na Colômbia no período não oficial e possuíam contratos de trabalho em vigor com seus antigos clubes de origem, teriam um período de até três anos para retornarem para suas antigas equipes (ou seja, até 1954). Mas mesmo após o Pacto de Lima em 1951, essa identidade inventada a partir do futebol permaneceu forte na Colômbia, estabelecendo as bases para assim se consolidar como uma identidade nacional no país, a ponto de ser esse até os dias atuais o esporte mais popular dessa nação.

 

Referências bibliográficas

DRUMOND, Maurício. Nações em jogo: esporte e propaganda política em Vargas e Perón. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008.

GOMES, Eduardo. A invenção do profissionalismo no futebol: tensões e efeitos no Rio de Janeiro (1933-1941) e na Colômbia (1948-1954). Curitiba: Appris, 2019.

GOMES, Eduardo. A construção do espetáculo do El Dorado: o caso da profissionalização do futebol na Colômbia (1948-1951). Boletim Historiar, v. 14, p. 3-18, 2016.

RUIZ BONILLA, Guillermo. La gran historia del fútbol profesional colombiano: 60 años de logros, hazañas y grandes hombres. Bogotá: Ed. DAYSCRIPT, 2008.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Edu Gomes

Historiador, professor e pesquisador do esporte. Doutor e mestre em História Comparada, com ênfase em História do Esporte, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com período sanduíche na Universidad de Antioquia (UdeA), Colômbia. Graduando em Educação Física (Claretiano). Atua como pesquisador do Sport: Laboratório de História do Esporte e do Lazer (UFRJ). Professor na Educação Superior e Básica. Editor e colunista de esportes do Jornal Toda Palavra (Niterói/RJ), além de atuar como repórter e comentarista da Rádio Esporte Metropolitano. Autor dos livros intitulados "A invenção do profissionalismo no futebol: tensões e efeitos no Rio de Janeiro (1933-1941) e na Colômbia (1948-1954)" (Ed. Appris, 2019) e "El Dorado: os efeitos do profissionalismo no futebol colombiano (1948-1951)" (Ed. Multifoco, 2014). Organizador da obra "Olhares para a profissionalização do futebol: análises plurais" (Ed. Multifoco, 2015), além de outros trabalhos relacionados à História do Esporte na América Latina.

Como citar

GOMES, Eduardo de Souza. O El Dorado do futebol colombiano (1948-1954). Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 8, 2021.
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