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O engajamento político e social do Rayo Vallecano

Área economicamente modesta no sudeste de Madrid, Vallecas é repleta de conjuntos habitacionais, sendo ponto de chegada de imigrantes humildes. Isso o torna o distrito com maior índice de desemprego da cidade. Fundado em 29 de maio de 1924, o Rayo Vallecano não nega suas origens, muito pelo contrário. Trata-a com orgulho e, se não por meio de títulos, através de ações, tenta dar voz e ajudar seu povo.

Símbolo do clube. Foto: Wikipedia.

Poucos clubes no mundo são tão ativos política e socialmente quanto o Rayo. Coincidência ou não, foi exatamente em Vallecas que surgiram os primeiros movimentos sindicais e sociais na capital espanhola, inclusive com torcedores do time estando entre os líderes da greve geral no país em 2012. O clube trata-se como uma equipe de bairro, de torcida limitada e com viés esquerdista. Isso fez com que a instituição desenvolvesse uma amizade com os alemães do St. Pauli. Além de um time de futebol, o Vallecano também é uma fundação social, que apoia iniciativas relacionadas ao esporte como meio de educação física e moral.

Com uma imagem que costuma ser atrelada ao Atlético, os rayistas consideram-se o verdadeiro clube operário de Madrid. Lemas como “Ame o Rayo, odeie o racismo”, e “Pequeno no esporte, grande nos valores”, são marcas da equipe. Dentre algumas atitudes de cunho social, um episódio em novembro de 2014 foi o mais marcante.

Carmen Martínez Ayudo, de 85 anos, acabou despejada da casa em que viveu durante meio século, em Vallecas, por dívidas não pagas por seu filho. Tomando conhecimento da situação, a diretoria do Rayo comprometeu-se a pagar o aluguel de um apartamento para a senhora pelo resto de sua vida. A torcida do clube também se movimentou e conseguiu arrecadar algum dinheiro para ela.

Apenas dois meses depois, Carmen acabou retribuindo da forma que pôde. Wilfred Agbonavbare, ex-goleiro do Rayo, que defendeu a equipe por seis temporadas na década de 90, descobriu um câncer em janeiro de 2015. A senhora decidiu doar ao ex-jogador parte do dinheiro que havia recebido do clube pouco tempo antes.

Além deste caso, em 2017, a torcida rayista, por meio de enérgicos protestos, fez a diretoria do clube cancelar a transferência do ucraniano Roman Zozulya, que possuía vínculo ativo com grupos neonazistas em seu país. O Rayo também já utilizou seu uniforme como uma forma de “levantar bandeiras” para causas nobres. A sua característica faixa transversal vermelha já foi substituída por uma rosa, em alusão à conscientização ao câncer de mama.

Em 2015, uma camisa com um arco-íris foi lançada em prol da luta contra a homofobia. Segundo comunicado oficial da equipe, cada cor também simbolizava uma luta: AIDS (vermelho), depressão (amarelo), abuso infantil (azul), violência doméstica (roxo), apoio a deficientes físicos (laranja) e meio ambiente (verde). O clube doou parte da verba arrecadada com as vendas dela para instituições de caridade ligadas às causas.

Desde 1976, sua casa é o Estádio de Vallecas, com capacidade para cerca de 15 mil torcedores. Em 2004, o palco chegou a receber o nome de Teresa Rivero. Em 1994, ela se tornou a primeira mulher a presidir um clube da Primeira Divisão da Espanha.

Estádio de Vallecas, onde El Rayo joga suas partidas. Foto: Wikipedia.

Os primeiros passos

O clube nasceu com o nome de Agrupación Deportiva El Rayo. De 1931 até 36, a equipe participou do campeonato da Federação Trabalhadora de Futebol, filiando-se à Federação Castellana ao fim da Guerra Civil, em 1939, algo que já era planejado antes do conflito estourar. Mais tarde naquele mesmo ano, Miguel Rodríguez Alzola assumiu como presidente da instituição. Foi sob sua tutela, em 13 de novembro de 1947, que o time foi renomeado para Agrupación Deportiva Rayo Vallecano. Na temporada 1948-49, o clube conseguiu o acesso à Terceira Divisão.

Na época seguinte, um caso curioso. A equipe firmou um “acordo de ajuda mútua” com o Atlético de Madrid. Em troca de ceder alguns jogadores, o Atleti pediu para que o Rayo deixasse de jogar inteiramente de branco, tal qual o Real Madrid, e incluísse algo vermelho em seu uniforme, além de adicionar a faixa transversal. Imaginou-se que, com o acordo, o Vallecano se tornasse uma espécie de “filial” do Atlético, mas ele durou apenas um ano. No entanto, as mudanças nas camisas permaneceram.

Até por conta disso, o Rayo desenvolveu uma amizade com o River Plate, que havia se tornado sua nova inspiração. A equipe argentina, de passagem pela Espanha para jogar um amistoso contra o Real no Santiago Bernabéu, deu dois uniformes completos para os rayistas. O Vallecano utilizou-os em dois jogos oficiais, e depois passou-os às categorias de base. Camisas à parte, o futebol do clube ficou longe de se assemelhar ao do River.

Anos de luta

Só em 1956, o Rayo conseguiu o seu primeiro acesso à Segunda Divisão. Uma vitória por 5 a 3 contra o Gimnàstic de Tarragona garantiu a vaga. Manolo Peñalva, histórico jogador do clube, anotou três gols na partida. Depois de alguns anos no 2° nível, a equipe foi rebaixada na temporada 1960-61. Um novo acesso só seria conquistado em 1964-65.

Equipe do Rayo no debute na Primeira Divisão. Foto: Reprodução/Blog Anotando Fútbol.

No dia 06 de maio de 1976, a atual casa do time, o então Nuevo Estadio de Vallecas, foi inaugurado. Em duelo contra o Valladolid, os rayiados foram derrotados por 1 a 0. Além de novo palco, a equipe encerraria a temporada sendo treinada pela lenda Alfredo Di Stéfano.

E a chegada do novo lar iluminou os passos do Rayo. Na época 1976-77, depois de conseguir, na última rodada diante do Getafe, o ponto que necessitava, os rayiados conseguiram sua primeira ida à elite da Espanha. E sem perder nenhum jogo como mandante.

Aventuras entre os poderosos

A estreia na Primeira Divisão foi considerada magnífica, com um 10° lugar dentre 18 clubes. Com Héctor Núñez como técnico, o Rayo foi apelidado pela imprensa de Matagigantes. Isso porque o time foi capaz de, em Vallecas, vencer os grandes da Liga: Real, Barcelona, Bilbao, Valencia, Atlético e Sevilla. A única derrota foi para o Elche.

O clube ficou três temporadas na elite, até cair em 1979-80. Alguns jogadores passaram e tornaram-se lendas: Alejandro Alcázar, Miguel Uceda, Manolo Clares e Fernando Morena. O último acabou se tornando importante no extracampo também. Foi graças à sua contratação que a equipe atingiu a histórica marca de 10 mil sócios.

Na temporada 1981-82, com Manuel Peñalva como técnico, o Rayo conseguiu seu melhor resultado na Copa do Rei. Após eliminar A.D. Parla, Cacereño, Real Oviedo, Atlético Madrileño, além de um Real Zaragoza que não só era dirigido por Leo Beenhakker, mas também contava com um ataque formado por Pichi Alonso, Amarilla e Jorge Valdano, a equipe alcançou as semifinais do torneio. Acabaria sucumbindo perante o Sporting de Gijón. Ico Aguilar, Mora, Elías Benito e Álvarez foram os principais nomes daquela histórica campanha.

O clube só retornaria à Primeira Divisão em 1988-89. Félix “Felines” Sierra comandou um elenco que contava com Jesús Diego Cota, Ángel Férez, José Zapatera e Hugo Maradona, irmão mais novo de Diego. No entanto, acabaria sendo rebaixado já na temporada seguinte.

Vida nova, mas nem tanto

Em 1991, o clube transformou-se em uma Sociedade Anônima Deportiva. O empresário José María Ruiz-Matos comprou a maior parte das ações e tornou-se, em tempos de crise econômica, presidente da instituição. O Rayo conseguiu o acesso à Primeira Divisão mas, em 1993, mesmo com a chegada do lendário atacante mexicano Hugo Sánchez, acabou sendo rebaixado novamente.

Em 1994-95, outra boa campanha na Copa do Rei. Depois de eliminar Numancia, Andorra CF, Racing de Santander e Palamós, o Vallecano chegou às quartas de final. Outra vez o Sporting de Gijón acabaria com o sonho da equipe. Na Liga, segunda colocação e novo acesso à elite.

Na temporada 1999-00, o Rayo liderou a Primeira Divisão durante quatro rodadas. O técnico Juande Ramos contava com nomes como Míchel, Julen Lopetegui e Luis Cembranos. Os rayiados, apesar de finalizarem o campeonato na 9° colocação, acabaram recebendo um convite para disputar a Copa Uefa seguinte devido ao seu fair play. Foi um dos clubes com menos advertências em todo o continente. O ano de 2000 também marcou a fundação da ala feminina de futebol do Vallecano, que se tornaria uma das principais da Espanha. As meninas conquistariam três Ligas e uma Copa do Rei.

Na época seguinte, o debute em competições europeias. E já seria uma grata surpresa. O clube eliminou Constelació Esportiva, de Andorra, com direito a um 10 a 0, maior goleada daquela edição do torneio, Molde, da Noruega, Viborg, da Dinamarca, Lokomotiv Moscou e Bordeaux, alcançando as quartas de final. Cairia perante o compatriota Alavés, futuro vice-campeão. O sucesso no torneio continental resultou em um 14° lugar na Liga Espanhola.

Nova desordem 

Nas temporadas seguintes, o Rayo se desestabilizou. Em 2004, iniciou o primeiro dos quatro anos na Terceira Divisão. Nesse período, Álvaro Negredo, cria das canteras, chegou aos profissionais. O retorno ao segundo nível espanhol só aconteceria em 2007-08, com o título da terceirona.

Em 2009-10, mais uma boa participação na Copa. Passando por Real Sociedad, Córdoba e Bilbao, a equipe chegou às oitavas. O Mallorca, “bicho-papão” dos rayiados em play-offs de acesso em temporadas passadas, apareceu para eliminar o time madrilenho.

Durante a época 2010–11, alguns acontecimentos chegaram para “agitar” a instituição. A crise financeira atingiu o conglomerado de empresas da família Ruiz-Matos, inclusive o clube. A falência foi vista de perto. Devido às complicações, foi criada a Fila 0, uma ação para receber donativos, além da venda de camisetas com a estampa: “Equipe e torcida, unidos por um sentimento”. A verba serviria para pagar os trabalhadores, jogadores e canteranos.

A torcida protestou. Exemplo é a partida contra o Granada, quando fizeram uma corrente humana ao redor do estádio. Uma placa com os dizeres “87 anos de história merecem mais respeito” era levada aos jogos. Apesar dos problemas e dos salários atrasados, o Rayo nunca deixou de ser um dos dois melhores da Segunda Divisão naquela temporada, conseguindo o acesso à elite com o vice-campeonato.

História recente

Em 5 de maio de 2011, o empresário Raúl Martín Presa comprou 98,6% das ações do Rayo, tornando-se presidente e assumindo as dívidas. Com a equipe vivendo a pior crise de sua história, ele se comprometeu a pagar os salários atrasados. No dia 22 daquele mês, o acesso à Primeira Divisão após oito anos foi matematicamente confirmado depois de uma vitória por 3 a 0 contra o Xerez CD.

Para a temporada seguinte, Dani Pacheco, Michu, Trashorras, Diego Costa e Armenteros chegaram. Apesar disso, a vida rayista na elite não foi nada fácil. O clube acabou se livrando do rebaixamento na última rodada, contra o Granada, graças a um gol de Raúl Tamudo nos acréscimos, que garantiu a vitória pelo placar mínimo.

O “revolucionário” Paco Jémez. Foto: Wikipedia.

Após o susto, a época seguinte foi completamente oposta. Ela marcou o início do “sucesso” recente do Vallecano. José Ramón Sandoval não teve seu contrato renovado. Paco Jémez, ex-jogador rayista, e vindo de boa passagem pelo Córdoba C.F., chegou para comandar o time. Na Liga, foram 53 pontos e um oitavo lugar. Foi a melhor temporada da equipe na Primeira Divisão, tanto em pontos como em classificação, em sua história. O Rayo chamou atenção pelo seu vistoso jogo ofensivo.

Após o destaque, para 2013-14, o clube sofreu um desmanche. Piti, que estava desde a Terceira Divisão e havia sido artilheiro do time na temporada passada com 15 gols; Javi Fuego, um dos melhores “ladrões de bola” da Liga; Léo Baptistão, que concorreu à revelação do campeonato, todos saíram. Além deles, durante as competições, Rubén Rochina e Iago Falque voltaram às suas respectivas equipes depois de um período de empréstimo. Apesar das dificuldades, o Rayo conseguiu permanecer na elite.

Depois de uma temporada no meio da tabela, o Vallecano foi condenado ao descenso em 2015-16. Na Segunda Divisão, após um início ruim, Míchel chegou para treinar o time. Ele conseguiu um ótimo fim de campeonato, deixando a equipe no 12° lugar, cinco pontos à frente da zona de rebaixamento.

Finalmente, em 2017-18, o título mais importante da história do clube. A conquista da Segunda Divisão foi sofrida, vindo apenas na última rodada. E com traços dramáticos. Tendo perdido para o Gimnàstic, o troféu só veio porque o Huesca foi derrotado pelo Real Oviedo.

O Rayo foi a terceira equipe de Madrid a conquistar o torneio, após o Real Castilla e o Atlético. O acesso fez com que, pela primeira vez, em 2018-19, a Primeira Divisão contasse com cinco equipes madrilenhas: Real, Atleti, Rayo, Leganés e Getafe. Os rayistas seriam rebaixados à Segunda Divisão no último lugar, com apenas 32 pontos em 38 jogos.

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Dyego Lima

Jornalista formado pela UFRN. Aficionado por esportes. Futebol principalmente, mas não somente.Made in Universidade do Esporte! 

Como citar

LIMA, Dyego. O engajamento político e social do Rayo Vallecano. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 36, 2020.
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