131.34

O feminismo para mais de 1%. Big Brother Brasil 20 e futebol

Leda Costa 15 de maio de 2020

O Big Brother é o reality mais exportado do mundo, tendo passado em mais de 60 países desde que foi inventado em 1999 por John de Mol. Chegou ao Brasil em 2002 e o que parecia uma moda mantém-se até hoje na grade da emissora aberta mais assistida do país. 

Em janeiro, quando o BBB20 começou, tínhamos campeonatos de futebol, tínhamos a expectativa do carnaval e, provavelmente, menos medo e desgosto, sentimentos que se tornaram constantes em época de pandemia global. Pelo menos no meu caso, o reality conseguiu proporcionar divertimento e abstração que foram importantes para a manutenção da minha pouca sanidade. Um efeito parecido ao que teria o futebol.

Mas se por um lado foi uma rota de fuga, por outro o BBB também mostrou seu potencial para instigar a pensar sobre a sociedade brasileira. Gosto de diversos programas televisivos vindos lá do poço da indústria cultural e que costumam receber reprovação de muitos lados, algumas delas justas, pertinentes e necessárias. É o caso dos reality shows que fazem da intimidade alheia um espetáculo que podemos assistir no sofá de casa. Espetáculo que constantemente toca o grotesco e que por isso são capazes de provocar guilt pleasure (prazer com culpa) em uma imensa plateia.

É o caso do Big Brother Brasil.

Há mais elementos em comum entre futebol e Big Brother Brasil do que imaginamos. Ambos são jogos – cada qual com sua especificidade – que mobilizam a atenção de milhões de espectadores. Por isso, mesmo quem não segue o BBB nas telas, dificilmente evitará que, em algum momento, alguma referência ao programa chegue ao seu conhecimento.

Conversas em grupos de WhatsApp, postagens nas redes sociais, memes alusivos a situações ocorridas na casa do BBB, notícias que circulam nos jornais sobre o programa, enfim, são diversos os modos pelos quais é possível – mesmo que não se queira – ter contato com o mundo Big Brother Brasil. Algo parecido ocorre com o futebol. São várias as pessoas que simplesmente não ligam ou mesmo não gostam desse esporte e, mesmo assim, veem seu cotidiano continuamente perpassado e, diria, muitas vezes, invadido por questões do mundo futebolístico.

Outro ponto de contato reside nas críticas feitas a quem acompanha esses jogos. É bastante comum que esse público seja taxado como alienado, fútil e manipulado já que se prestaria a ocupar seu tempo, seguindo pela TV um bando de gente enclausurada em uma casa vigiada 24h por câmeras. Convenhamos que apaixonados por futebol, também, são alvo de crítica muito semelhante. Quantas vezes não fomos questionados por frequentarmos estádios ou por acompanharmos de modo sistemático os inúmeros campeonatos nacionais e internacionais que passam na televisão? Isso sem mencionar a frequência com que nossa paixão clubística é ridicularizada.

Big Brother Brasil e futebol são jogos e programas televisivos muito exitosos no Brasil. Cada qual com sua dinâmica competitiva e ambos cercados de câmeras por todos os lados. Por isso, me sinto bastante à vontade em escrever sobre o Big Brother Brasil20, sobretudo, nessa edição em que o futebol se fez tão presente em momentos decisivos. 

E me sinto mais ainda à vontade em dizer que foi um dos mais interessantes programas dos últimos tempos da televisão aberta brasileira – juntamente com a novela Amor de mãe. Se tem faltado futebol em nossos dias e noites, o BBB foi um companheiro à altura, no que diz respeito a capacidade de entreter, de trazer à cena dilemas da sociedade brasileira e, sobretudo, por permitir que eu comemorasse como uma torcedora, a vitória de Thelma Assis, a vencedora da edição deste ano. E eu não fui a única.

BBB é torcida.

Não é meu propósito fazer uma análise profunda do fenômeno BB no Brasil. Longe disso. Há pesquisas sérias sobre o tema, desenvolvidas há anos.

Este texto é construído com certa liberdade e sua intenção principal é traçar uma teia de diálogo entre o reality show, o futebol e algumas questões como machismo e racismo no Brasil.

Machismo, futebol e BBB20

Ano passado, a vencedora do reality dizia muito sobre a atmosfera conservadora do país. Ana Paula Von Sperling havia dado declarações racistas e de intolerância religiosa, chegando a ser indiciada pela Decradi, Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância, enquanto estava no programa. Entretanto, Paula ficou em primeiro lugar na preferência do público ao final da competição.

Quando o BBB20 começou, temia que dele saísse mais um vencedor – ou vencedora – com discursos e atos preconceituosos. E não faltaram candidatos com esse perfil. Na verdade, as câmeras da casa mostraram um indisfarçado desfile de racismo e machismo.

Um grupo de homens composto, entre outros, por um ex-ginasta (Petrix Barbosa) e um ex-jogador de futebol (Hadson Nery), não nos poupava de comentários constrangedoramente machistas que depreciavam os corpos das participantes. Então, surgiu a grave denúncia de assédio cometido por Petrix Barbosa no final de janeiro na casa do BBB. A hastg #Petrixexpulso virou trending topics no Twiter e a Polícia Civil do Rio de Janeiro manifestou-se exigindo informações sobre o caso.

As imagens mostradas não deixam dúvidas sobre as atitudes abusivas de Petrix. No início de fevereiro, Petrix, um dos ginastas, vítima de abuso do então técnico Fernando de Carvalho Lopes – caso que veio à público em 2018 – foi eliminado com 80% dos votos computados. Porém, o machismo persistiu e virou estratégia de jogo com o teste de fidelidade.

Algumas participantes – muitas delas, influenciadoras digitais – reagiram, protagonizando cenas de empoderamento e ao mesmo tempo promovendo as “tretas”, brigas e discussões, tão esperadas pelo público em geral. Palavras como feminismo e sororidade ganharam força na casa e ecoaram fora dela. Machismo x feminismo foi uma importante disputa que moveu a dinâmica do jogo e a adesão do público.

E os machos tóxicos foram sendo eliminados um a um com expressivas rejeições do público. Mas sobrou Felipe Prior.

Arquiteto, empresário e jogador amador de futebol, Prior esteve no centro das atenções em momentos importantes do BBB, em especial no paredão que bateu recorde mundial de participação de público, alcançando mais de 1 bilhão e meio de votos. Do outro lado, estava a influenciadora digital Manu Gavassi, uma das líderes da reação das mulheres.

É nesse momento que BBB20 e futebol definitivamente se aproximaram.

Embora Prior tivesse participado das conversas e das estratégias dos machos tóxicos, sua personalidade carismática e explosiva, um pouco de sorte nas provas do BBB e seu estilo pretensamente “sincerão” foram elementos que fizeram com que muitas torcidas a seu favor fossem formadas ao longo do programa.

Por estilo “sincerão”, podemos entender agressividade, misturada com altas doses de síndrome de perseguição e uma incansável mania de achar que todas as atitudes se justificam desde que autênticas e coerentes. Segundo essa lógica simplista – adotada por muitas pessoas, aliás –, ser grosseiro e preconceituoso pode ser facilmente transformado em sinônimo de autenticidade.

Prior construiu esse personagem que foi capaz de gerar muitos conflitos nas relações interpessoais, dando dinâmica à narrativa do BBB20.  Felipe jogou usando sua habilidade de irritar agredindo.

Famosos jogadores de futebol e até mesmo clubes declararam sua torcida publicamente ao El Mago, apelido dado a Prior:

A adesão à torcida por Prior não é coincidência e, muito menos, se justifica unicamente pelo fato de o participante ser atleta amador de futebol. A questão é que esse participante encarnava muito bem a tipologia do macho sincero, que diz odiar o politicamente correto e que adora soltar verdades que machucam somente os outros e nunca a si mesmo.

Jamais podemos subestimar a capacidade que o futebol – e o esporte de um modo geral – tem de reiterar suas raízes machistas e conservadoras. E, no paredão que bateu recorde de votação, alguns importantes representantes do futebol perderam a oportunidade de mostrar que o ambiente futebolístico tem mudado.

A influenciadora digital Manuela Gavassi, autodeclarada feminista, versus o caldeirão de rancor, Felipe Prior. Manuela não era um poço de carisma e seu desempenho no reality, até então, era um tanto, diríamos, blasé, às vezes dando fortes indícios de indiferença e tédio. Ela estava longe de ser naquele momento uma personagem interessante, como posteriormente se tornaria. Ocorre que do outro lado estava Prior que se comprazia com comentários machistas e que se viu envolvido em declarações que envolviam zoofilia.

Prior era o vilão clichê, típicos de melodramas cafonas, a ser eliminado. Mas foi tomado como um herói por Neymar, Gabigol, Gabriel Jesus e tantos outros jogadores. Foi tomado por herói também por indivíduos conhecidos pela exaltação à violência e ao ódio:

A postagem acima diz muito sobre o tipo de perfil que Prior era capaz de atrair. É muito provável que a maioria dos jogadores não acompanhasse o programa com frequência, mas isso apenas dá mostras da falta de cuidado dos jogadores ao permitirem que suas imagens fossem anexadas tão facilmente a figuras tão pouco interessantes.

Porém, não creio que tenha sido o caso. Mesmo que não assistissem ao programa, sabiam minimamente o que Prior representava. Ou deveriam saber.

Se o futebol e o BBB são um jogo, e dos mais populares no Brasil, há de se convir que o BBB20 pelo menos foi capaz de alimentar a esperança de que personagens como Prior estão ficando desgastados. O paredão com mais de 1 bilhão e meio de votos determinou a eliminação de Prior e fez parecer que estávamos uma final de campeonato de tantos os gritos de comemoração que se podia ouvir das janelas em muitas cidades do país.

Torcida do BBB também existe jocosidade e, por isso, não faltaram memes, muitos em alusão a Neymar e a Gabigol.

As sandálias de Manu Gavassi pisando em Neymar e Gabigol.

Reitero que, infelizmente, não podemos subestimar o futebol e seu instinto conservador. Com a saída de Prior, muitos jogadores afirmaram que o jogo BBB havia perdido a graça.

Assim como muitas pessoas ligadas ao futebol pensam, perder a graça significa a impossibilidade de se demonstrar machismo, homofobia e racismo, afinal para muita gente no futebol ofensas desse tipo ainda são consideradas uma das brincadeiras mais divertidas.

Fora da casa, Prior é investigado por duas acusações de estupro e uma de tentativa de estupro conforme apurado pela revista Marie Claire. Tenho a curiosidade em saber se Vinícius Jr. continua ansioso para conhecer o ex-BBB pessoalmente.

Com a eliminação de Prior, poderíamos encerrar este texto comemorando a derrota do machismo, mesmo que só no BBB20. Porque do lado de fora, a luta continua imensa, o que inclui o futebol.

Porém, o feminismo do BBB20 andou lado a lado com o racismo.

 Feminismo, racismo e futebol no BBB20

O BBB20 evidenciou a necessidade de um feminismo para os 99%, o que implica que, entre outros aspectos, o feminismo seja antirracista. Manu Gavassi certa vez afirmou que casais da “mesma cor” são “esteticamente agradáveis”. Esse comentário infeliz foi feito após ela se deparar com o casal Marcela MCGowan e Daniel, ambos brancos e loiros.

Marcela, por sua vez, outra que se autodeclarava feminista, não conseguiu disfarçar um inexplicável incômodo e falta de empatia com Babu Santana, ator, negro e cuja falta de integração com algumas participantes trazia à cena o racismo estrutural que marca a sociedade brasileira. Marcela chegou a declarar que tinha medo de Babu e, quando questionada por que, respondeu “De que ele vá gritar”.

Marcela, entretanto, nunca havia comentado sobre, ou mesmo, demonstrado medo de Prior que se comunicava basicamente por intermédio de gritos. Ao contrário, Marcela, nunca deixou de falar com Prior, nem que fosse para discutir. Mas Prior é branco e arquiteto, o que não provocava estranhamento em Marcela, muito menos temor. Já Babu é negro, raça que historicamente foi anexada a características desumanizadoras como monstruosidade, temperamentos irracionais, bestialidade e ferocidade.

O distanciamento de Marcela foi notado pelo próprio Babu que em determinado momento afirmou: “A Marcela me olha que nem uma madame, do mesmo jeito que minha patroa me olhava. Eu tenho trauma desse olhar”.

Babu não era um poço de doçura, porém, dentre todos os homens que participaram do BBB20, foi aquele que mais se mostrou informado e sintonizado com as importantes pautas da sociedade, o que incluía a luta das mulheres por mais igualdade. Mas tanto Marcela como Manu e Gizelly preferiam a companhia dos participantes Pyong Lee e Daniel Lenhardt. O primeiro, extremamente manipulador e o segundo, provavelmente, um dos mais alienados participantes da história do programa.

Pyong disputou com Babu um paredão que registrou o expressivo número de 385 milhões de votos. Babu venceu. A sua permanência, mesmo sendo um indicativo que era um forte candidato, despertou ainda mais ódio, sobretudo, em Ivy que chegou a chamá-lo de monstro e a debochar do pente que o participante usava: “Quem que penteia o cabelo com um trem desse?”, disse a mineira. Tentando se defender desse tipo de fala Ivy protagonizou o seguinte diálogo:

Eu sou super contra julgar alguém por conta da pele, isso não existe. Mas ficar usando disso também eu não concordo. Ser preto não é malefício nenhum. Quanto mais morena eu fico mais eu gosto. Eu gosto é muito […] Muito pelo contrário. Quanto mais morena estou, mais eu gosto. Adoro tomar sol […] Mas é muita coisinha que incomoda. Mas se incomoda, tudo bem. Mas ficar falando disso, para quê? Todo mundo é igual, todo mundo merece o prêmio, se é branco, moreno, preto. São seres humanos.

Ivy complementou afirmando que tratar mal alguém por causa da cor de pele era atitude de pessoas doentes e que deveriam buscar ajuda. Trata-se da típica adoção de uma concepção individualista de racismo, ou seja, aquela que entende o fenômeno como derivado de uma patologia manifestada de modo restrito. A participante repete discursos parecidos com os usados em muitas abordagens que o jornalismo esportivo faz quando trata de temas vinculados ao racismo. Ora o jornalismo esportivo – ou parte dele – entende que se trata de um assunto que não cabe ser discutido nas mesas redondas, ora entende que o racismo é um ato “isolado” tanto no esporte quanto na sociedade brasileira.

Os perigos de se persistir nesse tipo de interpretação é não dar atenção ao fato de que, em países como o Brasil, o racismo se manifesta de modo estrutural, ou seja, ele é parte integrante da organização econômica e política da sociedade. No Brasil, o racismo não é uma exceção, mas uma regra. Uma regra em nosso cotidiano, presente nas brincadeiras ofensivas, no nosso vocabulário e em comentários espontâneos como o que Gizelly fez ao ver a cor da maquiagem da participante Thelma: “parece barro”.

Babu defendia ardentemente o empoderamento do preto. Quando a casa ficou mais vazia, Babu deu aulas incríveis sobre racismo partindo de um inquestionável local de fala. Ouvindo-o sempre me vinha à mente as primeiras palavras de Mário Filho, nas páginas iniciais do livro O negro no futebol brasileiro: “Há quem ache que o futebol do passado era bom. De quando em quando a gente esbarra com um saudosista. Todos brancos, nenhum preto”

A popularidade de Babu foi imensa e chegou aos jogadores de futebol, em especial, o ídolo Gabigol que imitou as danças do ator em uma das comemorações de gol. Babu é flamenguista, característica enfatizada várias vezes em seu perfil no Twitter:

Babu adora futebol e a torcida dos jogadores poderia muito bem ter se voltado para o seu lado, ao invés de Prior. Aliás, o ator é protagonista de A culpa é do Neymar, um interessante curta sobre futebol.

Há tempos o ator dava mostras de uma personalidade muito mais interessante e progressista do que o arquiteto enraivecido, cheio de clichês de autenticidade. Babu sobreviveu a nove paredões, sendo eliminado no 10º por Thelma.

Os dois na casa eram aliados, mas seus perfis nas redes sociais passaram a trocar ofensas na última semana do programa. Thelma foi chamada de “mucama”, pois, segundo alguns, ela se mostrava muito subserviente às mulheres brancas da casa. Em resposta, seu perfil postou #foraBabu. Os perfis fizeram as pazes depois, mas mostraram fissuras em um momento no qual a união contra o racismo era mais importante.

Thelma não possuía o perfil ativista de Babu, o que não significa que o racismo tenha deixado de lhe provocar dores dentro da casa do BBB e ao longo da sua vida. O racismo cria situações constrangedoras e não é tão simples julgarmos aquilo que consideramos como uma falta de posicionamento. Eu, branca, não me sinto nada à vontade de fazer esse tipo de leitura. Thelma foi uma das primeiras – e uma das únicas – a se aproximar de Babu e quase sempre reiterava que uma afinidade os unia: eram os dois únicos participantes declaradamente negros do programa.

E Thelma chegou à final, ao lado de Manu e Rafaela. Três mulheres que protagonizaram momentos decisivos de enfrentamento ao machismo. Mas apenas uma delas representava feminismo que também precisa ser antirracista. Para ela foi destinada a minha torcida e meus votos. A mobilização nas redes sociais foi grande contando até com a participação da atriz Viola Davis que retuitou a postagem de Thais Araújo.

O BBB tem formação de torcida – de fandoms – que se manifesta, sobretudo, nas mídias sociais. Quase todas as votações do BBB – com exceção da final – são feitas para eliminar alguém, ou seja, a raiva é um motor importante na mobilização das votações. Raiva que no futebol é sentimento fundamental. A socióloga Janet Lever não deixou de reconhecer que o futebol é um poderoso produtor de símbolos compartilhados e, por isso, os “pontos focais de hostilidade também unem as pessoas”.

É o clássico do ato de secar times rivais pelo simples prazer de ver a derrota alheia. Torcer no BBB é um constante ato de secar.

E os grupos de fãs do BBB fazem barulho e têm um forte poder de mobilização. Há uso de estratégias diversas, aliança com outras torcidas e uma razoável capacidade de persistência. O sistema de votação do programa possui uma proteção contra o uso de robôs, então é preciso paciência e disposição para passar horas votando. Uma mesma pessoa pode votar quantas vezes conseguir. No dia da final, eu votei em Thelma dez vezes, ou seja, quase nada.

Diferentemente do futebol, a torcida tem poder efetivo de influenciar no resultado do jogo. E esse fato pode redobrar o sabor da vitória. Por isso, quando Thelma foi anunciada como campeã, eu tive a certeza de que meus 10 votos fizeram a diferença.

BBB20 – Thelma é a décima mulher a vencer o reality. Foto: Reprodução/Globo.

 

A gritaria que podia ser ouvida nas janelas de diversas partes do país se assemelhava às comemorações de um gol. Mesmo sem o futebol, pudemos experimentar um pouco as delícias do torcer.

Para entender a vitória de Thelma, para entender mais sobre o BBB20, é preciso mergulhar no universo das mídias digitais no Brasil e seu poder de mobilização e formação de torcidas. Para entender o sucesso de programas como o BBB, é importante ter em conta que somos um país que adora novelas e futebol, todos cheios de heróis e vilões e diversos outros personagens que ajudam a conformar um espaço público de debates que outras instâncias não conseguem se desenvolver de modo tão efetivo. Debates muitas vezes repletos de respostas rápidas e julgamentos peremptórios feitos num espaço de tempo curto, mas movido a certezas que parecem eternas.

Discussões sobre futebol e BBB são bem parecidos e ambos refletem a dificuldade de aceitar a ambiguidade dos fenômenos.

A vitória de Thelma, uma mulher negra que não vem de estratos sociais privilegiados e que se tornou médica, uma profissão formada em sua ampla maioria por brancos, traz certa esperança em um momento tão ruim pelo qual passamos. Essa esperança não significa uma compreensão simplista da realidade. A vitória de Thelma, obviamente, por si só não é indicativa de que a sociedade brasileira está melhor e que suas mazelas estão a caminho de serem solucionadas. O racismo e o machismo não vão desaparecer de um dia para o outro porque ambos são estruturais. Mudanças se dão com processos às vezes lentos e sempre conflituosos.

Mas a impressão que tive acompanhando o BBB20 é a de que o futebol ainda é muito conservador. É lento na caminhada contra o machismo, não sem motivos Felipe Prior foi El Mago para diversos jogadores. Confesso que ainda não me sinto devidamente representada no esporte que tanto gosto e que, em termos lógicos, não me faltaria motivos para detestá-lo, enquanto mulher.

A representatividade da mulher ainda precisa ser ampliada no futebol. E o feminismo, no futebol, também precisa ser antirracista.

Em relação ao racismo, o futebol aparenta ser mais progressista. Aparenta. Vemos o negro em campo, sendo ídolo de clubes, fazendo história na seleção brasileira, mas no âmbito do comando, o que inclui a ocupação de cargos vinculados a tomadas de decisão, os brancos são maioria. No jornalismo esportivo, o problema persiste. As manifestações racistas ainda ecoam nas arquibancadas do Brasil e do mundo, sem uma intervenção convincente da CBF e da Fifa.

Por isso, o BBB20 conseguiu me representar mais do que o futebol. E, assim como o futebol, o BBB é um objeto fértil para pensarmos o mundo que nos rodeia.


Nota

Este texto contém breves alterações em relação ao foi originalmente publicado no blog Comunicação, esporte e cultura. Para melhor entender a questão do feminismo para os 99%, é fundamental a leitura de ARRAUZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Leda Maria Costa

Professora visitante da Faculdade de Comunicação Social (UERJ) - Pesquisadora do LEME - Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte -

Como citar

COSTA, Leda. O feminismo para mais de 1%. Big Brother Brasil 20 e futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 131, n. 34, 2020.
Leia também: