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O Fla-Flu das prevaricações

Gabriel Said 18 de fevereiro de 2020

O primeiro Fla-Flu de 2020 não prometia nada demais, o time da Gávea ia para o jogo com a inteira comissão técnica e de jogadores alternativos, praticamente sub-20 contra um Fluminense com força máxima. O resultado foi uma protocolar vitória tricolor como é de se esperar em situações assim. Esse jogo que prometia ser pouco relevante para a história centenária do clássico acabou virando notícia nos próximos dias por causa das arquibancadas.

Alguns dias após o jogo seria o lamentável aniversário de um ano do incêndio no Ninho, que tirou a vida de dez garotos e deixou outros tantos feridos. Nesse contexto, a torcida do Fluminense cantou no Maracanã de forma provocatória “time de assassino”. A provocação é evidentemente movida a paixões e rivalidades clubísticas assim como é comum em um estádio, o que não justifica discriminação e violência.

O Tribunal de Justiça Desportiva do Rio de Janeiro (TJD-RJ) julgou o caso no dia 11 de fevereiro e o Fluminense foi punido com multa de 25 mil reais, a ser convertido em advertência. No dia seguinte Mario Bittencourt, presidente do Fluminense, usou sua conta no Instagram para parabenizar os advogados pelo “brilhante trabalho” de defesa e solicitar à torcida tricolor não repetir os gritos para evitar reincidência e punição severa ao clube.

Fla-Flu na final do Campeonato Carioca de 2017. Foto: acervo pessoal.

No dia 12, outro clássico. Desta vez pela semifinal da Taça Guanabara. A torcida do Fluminense trocou o canto do jogo passado por “paguem as famílias” e a torcida rubro-negra respondeu com “time de viado”, com um agravante que os narradores contratados pelo Flamengo para a FlaTV – canal oficial do clube no YouTube – também fizeram uma série de comentários homofóbicos em direção ao Fluminense. Apesar da reticência da Procuradoria do TJD-RJ, a denúncia foi feita e até o momento que escrevo ainda não houve julgamento. O Flamengo emitiu uma breve nota de repúdio em sua conta do Twitter.

Os clubes de futebol são especialistas em emissão de notas de repúdio. Quando se trata de combater a sério os diversos problemas sociais que atravessam o futebol, não há ação o bastante. Depois do primeiro Fla-Flu, muitos torcedores de Flamengo e Fluminense discutiam nas redes sociais para ver qual torcida era a mais intolerante. Para cada perfil flamenguista atacando o Flu pelo grito de assassino, tinha um perfil tricolor cobrando pelos corriqueiros gritos homofóbicos nos clássicos (que se concretizaria dias depois). Porém, quando as diretorias dos clubes adotam este tipo de conduta, não apenas reforça e legitima tal comportamento como também não ajuda em nada a enfrentar a sério os problemas.

A começar pelo Fluminense. O seu presidente na nota publicada no dia 11 nem se deu ao trabalho de demonstrar uma preocupação que fosse além dos interesses competitivos do próprio clube. A mensagem era clara: não repitam isso para o clube não sofrer punições. Dito isto, de que vale a nota de repúdio do clube, as manifestações do clube em homenagem às vítimas do incêndio e o argumento usado pelos “brilhantes” advogados de defesa?

Mario Bittencourt em outra publicação, esta no dia 14 e após o 2º clássico, escreveu que a nota de repúdio do clube tinha um caráter educativo. Quem leu a nota pôde ver que ali mesmo o Fla-Flu extracampo já começara, com quase metade sendo dedicada a cobrar ações para situações contra a torcida do Fluminense. Para completar, na nota do dia 14 Bittencourt cobrou o procurador André Valentim para efetuar a denúncia, mas sem deixar passar a oportunidade de escrever “estamos esperando seu posicionamento ilustre procurador rubro-negro”.

O Flamengo teve postura abertamente homofóbica através da FlaTV e a única medida sobre o caso foi um curto repúdio no Twitter com a afirmação de que o clube não compactua com qualquer discriminação, algo pouco crível dada as relações amistosas de membros da direção rubro-negra com políticos notoriamente preconceituosos.

Na Gávea a maestria da atual diretoria do Flamengo em fazer grandes contratações e ganhar troféus é proporcionalmente inversa à sua habilidade quanto as responsabilidades sociais do clube. Os gritos de “time de assassino” por mais duros que possam ser, não se equipara à absurda irresponsabilidade do clube do Flamengo com os meninos e suas famílias vítimas do incêndio e da atual diretoria em lidar com isso. A falta de uma resolução justa alimenta provocações como as da torcida do Fluminense no presente e de outras torcidas no passado e outras tantas que virão, fazendo o sofrimento pelo incêndio ainda mais insuportável para todos aqueles que se importam.

A preocupação da diretoria com a situação é tão insignificante que no aniversário desse drama o clube jogou uma partida oficial com naturalidade e barrou a visita de familiares de vítimas ao local do incêndio alegando que não poderia atrapalhar a concentração da equipe para a partida mais tarde. Não poderia deixar de lembrar do posicionamento da diretoria, que falta em transparência e simpatia enquanto excede em cinismo e mesquinharia na condução da situação.

No final, flamenguistas cantaram “time de viado” e tricolores “paguem as famílias” ao invés de “time de assassino”. Apesar das aparências, não houve mudança real. As palavras mais dóceis dos tricolores apenas fizeram a intenção provocativa mais mascarada. A mídia tem também um papel fundamental aí, pois no dia seguinte do primeiro jogo se preocupou muito mais em condenar o canto para amenizar a dor das vítimas, do que usar dele para reforçar a urgência para entender o problema e resolvê-lo de uma vez por todas. É ilustrador que Marcelo Barreto no Redação SporTV do dia 8 de fevereiro de 2020 disse que os acordos do clube com as famílias ainda nãos estarem fechados seja “algo incômodo”. Também parece ser incômodo para os clubes ter que fazer notas de repúdio ou a procuradoria do TJD-RJ realizar a denúncia. Ainda é pouco.

Jogadores do Flamengo comemoram gol no clássico contra o Fluminense em 2020. Foto: Alexandre Vidal/Flamengo.

A incomodidade é tolerável. No futebol poucas ações vão além do incômodo. Nesse constante processo de lavar as mãos, as denúncias contra racismo, homofobia e misoginia seguem crescendo, assim como a violência física. Esse fenômeno não é uma surpresa, essa tolerância é paternalista com o que é intolerável.

Condenar o “time de assassino” e ao mesmo tempo achar que a falta de resolução da diretoria do Flamengo é incômoda são para Slavoj Žižek, fenômenos conectados. As regras não ditas da ética da vida social sobre o que pode ser dito e feito – Sittlichkeit, para Hegel – estão se desintegrando. A necessidade de uma regulação caracteristicamente pós-modernista, que é o politicamente correto se dá conforme a Sittlichkeit se rui, sendo então parte deste processo.

Muitos termos e condutas tradicionais são transformados de forma problemática, como “favela” virar “comunidade” e, neste caso, “time de assassino” virar “paguem as famílias”. De fato, a violência simbólica foi reduzida, mas absolutamente nada aconteceu em relação à violência Real para com as vítimas. Na verdade, no mesmo programa do Redação SporTV, a bancada justificava a dispensa dos sobreviventes do incêndio pelo Flamengo no início de 2020 a partir de justificativas “racionais”, supostamente técnicas, como se aqueles meninos fossem apenas mais outros entres as dezenas de jogadores na base do clube. Theodor Adorno e Max Horkheimer escreveram em Dialética do Esclarecimento sobre o discurso modernista da racionalidade:

“Para o esclarecimento, aquilo que não se reduz a números e, por fim, ao uno, passa a ser ilusão […] O mito converte-se em esclarecimento, e a natureza em mera objetividade. O preço que os homens pagam pelo aumento de seu poder é a alienação daquilo sobre o que exercem o poder. O esclarecimento comporta-se com as coisas como o ditador se comporta com os homens.”  

Existe um problema real na moderação “racional”. Combater o racismo, misoginia, homofobia, xenofobia e outras discriminações, injustiças e violências deve ser tratado pelas instituições envolvidas com o esporte, principalmente pelos clubes, de forma séria e que superasse as fronteiras clubísticas, afinal o futebol é um fato social total no Brasil, ou seja, que comporta ao mesmo tempo diversas instituições sociais, políticas, econômicas, familiares, judiciais e estéticas da sociedade. Essa é uma responsabilidade social dos clubes que é frequentemente ignorada.

Por fim, vale lembrar que o clássico entre Flamengo e Fluminense é muito maior que essa pequenez que ambas diretorias fazem com ele. O Fla-Flu é o maior clássico do Rio de Janeiro e o talvez mais charmoso do Brasil, e suas torcidas são muito melhores do que qualquer diretoria.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Gabriel Said

Formado em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestrando em Antropologia pela UFF e aluno da Associação de Treinadores do Futebol Argentino (ATFA). Participa do grupo de estudos de Futebol e Cultura, do LEME/UERJ; do grupo de Futebol e Humanidades da Universidade do Futebol e do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Esporte e Sociedade (NEPESS), da UFF. Além de escrever a coluna Danúbio Azul no Ludopédio, também escreve para a Universidade do Futebol. E-mail: [email protected]

Como citar

SAID, Gabriel. O Fla-Flu das prevaricações. Ludopédio, São Paulo, v. 128, n. 21, 2020.
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