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O futebol brasileiro e a CBF não merecem Formiga

Quem estuda e/ou trabalha com futebol feminino sabe que a trajetória dessa modalidade no Brasil (e em vários outros países) foi marcada por pressão. A pressão de servir como espetáculo enquanto outros começavam a tratar o esporte como profissão, a pressão governamental de não poder praticar o esporte durante 40 anos e a pressão de conquistar resultados, mesmo sem estrutura, para que as futuras gerações possam desfrutar do esporte com um pouco menos de pressão.

No caso do futebol feminino brasileiro, a maior representante desta luta é Formiga. Ainda em plena atividade e alto nível aos 43 anos, ela vai deixar o Paris Saint-Germain e voltar a jogar nos campos de seu país-natal. Ela volta para o São Paulo para, segundo as matérias publicadas sobre o assunto, organizar a carreira fora dos campos por aqui.

Foto: Danilo Borges/Brasil2016.

Além de ter passado por boa parte destas pressões internas e externas – por ser uma mulher de origem humilde, negra, lésbica, baiana e que vive do futebol -, a volante Miraildes Mota faz jus ao apelido dentro de campo. Formiga é conhecida assim porque, como diz a lenda, sempre se dedicou bastante em campo, uma trabalhadora incansável. E, muito provavelmente, viveu a vida inteira no futebol precisando se dedicar 120% para melhorar as próprias condições e as de outras tantas mulheres que têm o sonho de ser e crescer como ela.

A trajetória de Formiga no futebol se mistura com a trajetória do próprio futebol feminino no Brasil após a proibição. Recordista de jogos com a seleção e de participações em Copas do Mundo e Olimpíadas, ela começou a defender a canarinho na segunda metade dos anos 90, quase dez anos depois da primeira formação de um selecionado feminino no país. Ainda assim, sua história é muito parecida com a das nossas pioneiras.

O livro “Fazendo gênero e jogando bola: Futebol feminino na Bahia nos anos 80-90” é uma etapa do doutoramento da pesquisadora e professora Enny Moraes, realizado entre 2008 e 2012 na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Na tese “As mulheres também são boas de bola: histórias de vida de jogadoras baianas (1970 – 1990)”, que deu origem ao livro lançado em 2014 pela Edufba, Enny cita o nome de Formiga apenas uma vez. O período trabalhado por ela precede, em sua maior parte, a chegada da volante à seleção. No entanto, a história de mulheres baianas que enfrentaram diversos preconceitos de classe, região, raça, gênero e sexualidade para se dedicar ao futebol acontece desde antes de Formiga chutar a primeira cabeça de boneca.

No capítulo 2 do livro, intitulado “Sonhos possíveis”, Enny fala sobre a formação da seleção brasileira no início dos anos 1990 através do ponto de vista de Solange, conhecida como Soró, zagueira que defendeu a amarelinha entre 1991 e 1998. A passagem de Soró pela seleção e sua participação no primeiro Mundial feminino de futebol da história em 1991, ao lado de outras das jogadoras das primeiras seleções, ajudou a formar o cenário que vemos agora de maior visibilidade.

“Solange é uma mulher, até hoje, apaixonada pelo futebol e pela vida e, provavelmente por esse motivo, uma pessoa que tem muitas lembranças e muitas histórias para contar”, descreve Enny na página 42. Através dessas lembranças, o leitor tem acesso a momentos de descontração, às críticas que ela faz à gestão do futebol feminino da época e aos comentários sobre a pressão de conseguir resultados, caso contrário a modalidade estaria acabada. Um exemplo é a disputa do Sul-Americano de 1995, realizado em Uberlândia (MG).

“Porque quando a gente estava no vestiário, os caras falavam assim ‘pra’ a gente: ‘Ó, é ganhar e o futebol feminino no Brasil muda’. Então você não ‘tava’ jogando ‘pra’ você, a gente ‘tava’ buscando o esporte ‘pro’, ‘pro’ país inteiro! E isso é uma pressão, ‘né?’ (sorri) É uma boa pressionada!” (MORAES, p. 104)

Enny fala que a consciência das mulheres da seleção brasileira, de lutarem pelos resultados positivos porque aí sim teriam condições de exigir melhorias, foi o que motivou o desempenho daquelas seleções dos anos 1990. Anos depois, nos Jogos Pan-Americanos de 2007, no Rio de Janeiro, ainda se podia ver a mesma motivação no pedido por respeito ao receberem as medalhas de ouro. Em 2019, na Copa do Mundo da França, o discurso de Marta mostrou o mesmo incentivo na eliminação para a França. Formiga vem ao Brasil para encontrar um cenário muito diferente, mas com alguns dos mesmos problemas.

“É um momento especial e a gente tem que aproveitar. Digo isso no sentido de valorizar mais. Valorize! A gente pede tanto, pede apoio, mas a gente também precisa valorizar. A gente está sorrindo aqui e acho que é esse o primordial, ter que chorar no começo para sorrir no fim. Quando digo isso é querer mais, treinar mais, estar pronta para jogar 90 e mais 30 minutos e mais quantos minutos forem necessários. É isso que peço para as meninas. Não vai ter uma Formiga para sempre, uma Marta, uma Cristiane. O futebol feminino depende de vocês para sobreviver. Pensem nisso, valorizem mais. Chorem no começo para sorrir no fim.” (Marta em entrevista após a final da Copa do Mundo de 2019)

Logo antes da única citação a Formiga na tese, Enny explica que logo antes de Solange decidir deixar a seleção, o futebol feminino passava a ser um pouco melhor organizado. Dez anos depois da formação da primeira seleção, em 1998, começa uma etapa de renovação das atletas. Soró, na época, precisava escolher entre viajar com a seleção para um torneio internacional ou ficar no Corinthians para disputar a fase final do Campeonato Paulista. Com compromissos financeiros a cumprir e com medo de perder o contrato com o Corinthians, ela teve que desistir da sua última viagem com a seleção.

A motivação de jogadoras para viver do futebol não era pensando em grandes fortunas, mas em viver da sua paixão e dar melhores condições para as suas famílias. Solange conta que, na época da seleção, ganhava R$ 20 em diárias da seleção, o equivalente a 10% da seleção masculina. Essa realidade só mudou em 2020, quando a CBF anunciou que finalmente teria uma igualdade de diárias entre as seleções.

Segundo Enny, na época, o principal problema era um ciclo vicioso no futebol feminino. Elas viviam em uma invisibilidade “quase absoluta”: a modalidade era pouco divulgada, patrocinadores não investiram, os jogos não tinham audiência e a imprensa assumia que a falta de público era por pouco interesse, interrompendo a divulgação. Hoje em dia, com transmissões de campeonatos na TV e na internet, aumentou o interesse de marcas em patrocinar e do público em assistir. Formiga em campo poderá ser vista por milhares de pessoas em torneios como o Campeonato Paulista, o Campeonato Brasileiro, a Libertadores, as Olimpíadas e a Copa do Mundo – se ela decidir continuar jogando.

Em 1994, Soró e as jogadoras da seleção feminina foram patrocinadas pela marca Maizena. Há pouco menos de uma semana, o grupo Neoenergia anunciou que será patrocinador exclusivo das seleções brasileiras femininas de futebol. Atletas que antes tinham que sair do país para serem valorizadas na modalidade conseguem voltar a jogar no Brasil e ter apoio da torcida, cobertura na imprensa e um calendário mais organizado.

No entanto, Formiga, consagrada com a camisa do PSG e da seleção, vem para um país que segue matando os seus cidadãos com uma doença para a qual uma vacina já está disponível. Vai entrar em campos sem público para acompanhar devido ao péssimo gerenciamento da pandemia pelo governo. Vai disputar campeonatos organizados pela CBF, entidade cujo presidente foi afastado após ser acusado de assédio sexual por uma funcionária – que afirma que os outros diretores da entidade sabiam das agressões. E que ofereceu R$ 12 milhões para que ela se calasse.

O futebol brasileiro, infelizmente, não merece Formiga, mas precisa dela. Precisa que ela, a incansável trabalhadora da bola, invista tempo e energia no futebol brasileiro, para inspirar outras meninas. Mesmo conhecendo melhor a história, os percalços e as conquistas da modalidade até agora, ainda há muito a ser feito. Essa pressão, infelizmente, continua sobre ela – e sobre as próximas gerações.

Referências

MORAES, Enny Vieira. As mulheres também são boas de bola: histórias de vida de jogadoras baianas (1970-1990). Diss. Tese de Doutorado. Pontifícia Universidade Católica De São Paulo, 2012. Acesso em: 07 de junho de 2021.

MORAES, Enny Vieira. Fazendo gênero e jogando bola: futebol feminino na Bahia anos 80-90. Salvador: EDUFBA, 2014.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Júlia Belas

Jornalista pela Universidade Federal da Bahia, mestre em Jornalismo Esportivo pela St. Mary's University, Chevening alumna 2015-16.

Como citar

BELAS, Júlia. O futebol brasileiro e a CBF não merecem Formiga. Ludopédio, São Paulo, v. 144, n. 16, 2021.
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