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O futebol brasileiro precisa voltar a ser Macunaíma

Mário de Andrade tentou, nos anos 1920, representar o povo brasileiro com seu livro “Macunaíma”, criando um herói maroto para nos diferenciar dos padrões europeus. Aprendendo com a proposta desse clássico, tentarei explicar porque precisamos recuperar o tão falado “DNA brasileiro” no futebol.

Cassimano
Garotos, com e sem chinelo, testam os dribles no campinho de terra do Parque Raposo Tavares que fica na Favela do Jardim Jaqueline. São Paulo, Brasil, 2007. Foto: Cassimano

Já faz muitos anos que o público amante do futebol, mesmo que não entenda tanto do esporte em termos técnicos e táticos, reclama que o jogador brasileiro perdeu o seu brilho e que já não se fazem mais craques como antes.

E isso é verdade. Nossos atletas perderam o estímulo ao imprevisível. O futebol brasileiro, com o tempo, perdeu sua principal característica, que o fez sobrepor-se aos gigantes mundiais: atrair, enganar e superar. Nossa imprevisibilidade em campo, construída através da diversidade do futebol de rua e da liberdade com a bola, era um reflexo do que era ser brasileiro.

Mas afinal, como se pode definir um povo tão diverso como o brasileiro emum retrato? Foi isso que Mário de Andrade tentou fazer com a publicação de Macunaíma, em 1928, enquanto outros autores propuseram mais padrões - irreais - do que era o brasileiro.

Macunaíma
Capa da primeira edição de Macunaíma, livro de Mário de Andrade. Fonte: Wikipédia

Macunaíma, o herói sem caráter

A obra-prima de Mário de Andrade nasceu durante a fase heroica - a primeira - do modernismo. Nesse período, muitos autores tentavam criar uma identidade ideal para o povo brasileiro, como uma representação nacionalista.

Dentre esses autores, José de Alencar descrevia o personagem Peri, de seu livro “O Guarani”, como um herói de causas nobres, valente e justo. Esses padrões estavam arraigados na literatura heroica europeia, principalmente, a lusitana. Já Mário de Andrade propôs uma síntese completamente diferente: o inverso de Peri, Macunaíma, o herói sem caráter.

Por que sem caráter? Macunaíma tinha como suas principais características a preguiça, a mentira e a enganação. Suas ações são inconsequentes e movidas pelo prazer, pelo instinto. Talvez, para aquela fase modernista, essa tenha sido a representação mais plausível do nosso povo.

Nossa gente se construiu sobre uma grande miscigenação cultural e o nosso futebol também, mas assim como a sociedade brasileira desenvolveu sua excepcionalidade. O futebol do Brasil também encontrou o que o tornava único e os dois campos estão conectados com toda a certeza.

Garrincha
Garrincha usa sua excepcionalidade, o drible contra jogador da União Soviética, na Copa de 1958. Foto Reprodução Facebook

O DNA do futebol brasileiro e a sua queda

O jogo de bola que dominou o mundo e o encantou vestindo verde, azul e amarelo tinha várias características ímpares, mas a principal delas era o fato de que as ações de atletas brasileiros eram imprevisíveis e difíceis de explicar. O drible de Garrincha, o giro de Zico, o controle de Ronaldo e muito mais.

A explicação de tudo isso estava no futebol de rua, mas perdemos essa prática com a modernização das cidades e dos costumes. O autointitulado autor József Bozsik definiu esse como o primeiro passo para a perda do brilho do futebol canarinho em seu texto “A Excepecionalidade do Futebol Brasileiro” (2020).
Em termos de jogo, a princípio, o encurtamento dos campos de futebol, de acordo com o autor, tirou a liberdade do pensar o jogo para torná-lo mais técnico, onde os movimentos importam mais. Isso desfavoreceu o estilo livre que tivemos nas gerações de ouro.

Há também dois choques culturais: primeiro o fato de que, socialmente, perdemos a inocência, e isso reflete no futebol. Segundo, começamos a imitar o que era considerado inovador na Europa e o que dava certo lá, abandonando as raízes e deixando de lado possíveis desenvolvimentos da excepcionalidade do nosso esporte.

Uma busca por um dito “futebol moderno” se agarrou a nossa escola de futebol no geral, na base e no profissional. Nesse ponto eu concordo completamente com o que “Jószef” opina: poderíamos aprender com o que é feito lá fora, mas deveríamos colocar nossos esforços no que é particularmente nosso e não na imitação.

Imitar não vai nos fazer superar as outras potências, pelo contrário, isso só desvalorizou o futebol brasileiro enquanto as escolas europeias se desenvolveram continuamente. Agora, os jovens craques em potencial saem a cada vez mais cedo para serem maturados na Europa.

Vinicius Jr.
Vinicius Jr. Foto: Wikipédia

O futuro do futebol brasileiro

Com a desvalorização não só da nossa cultura de futebol, mas também do país do ponto de vista socioeconômico, estamos perdendo os nossos jovens jogadores. Um grande exemplo disso é Vinícius Júnior, que tinha números incríveis nas categorias de base e foi comprado muito cedo, sendo levado para amadurecer em Madrid.

As médias de dribles por jogo do ex-flamengo caíram de 2,3 para 1,0 e ele deixou de ser o jogador mais driblador da equipe. Até o Jornal “Marca”, da Espanha, alega que o atleta perdeu o seu brilho. Outro exemplo claro é Douglas Luiz, que ainda é um excelente volante, mas deixou de ser imprevisível e de jogar para frente, arriscando dribles, para ser um atleta moderado com jogo mais horizontal.

A situação financeira dos clubes e a desvalorização da nossa moeda tem potencializado ainda mais a compra de jovens jogadores. O Fluminense, por exemplo, que viveu anos com as contas na garganta, precisa vender as crias da base para sustentar o clube. Recentemente, vendeu Kayky, uma de suas joias, para o Manchester City.

Como isso impacta o jogador? No último jogo pelo profissional, ele deu um drible inesperado pra linha de fundo num tipo de lance em que voltaria para trás, deu uma assistência com um passe cortando as linhas defensivas do Boa Vista e ainda deixou sua posição para apoiar no meio. Agora, ele vai para uma base inglesa, numa cultura diferente, de um time que desde cedo estimula o jogo posicional.

É triste que esses meninos não tenham a chance que Neymar teve, de desenvolver-se como jogador no Brasil e de jogar com a liberdade que as crianças têm nas peladas de rua. Acredito que recuperar essa cultura nas categorias de base seja o primeiro passo para o nosso futebol voltar a agradar.

Precisamos aprender com Mário de Andrade que nós não precisamos nos adequar ao europeus, nós precisamos ser brasileiros, precisamos jogar mais “Macunaíma”. Não quero dizer que as características devam ser as mesmas, mas a enganação do drible e o instinto de buscar o gol, de fazer diferente do que se espera, podem ser uma chave para que a camisa amarela choque o mundo de novo.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcus Arboés

Acadêmico em jornalismo na UFRN, narrador esportivo em formação e apaixonado por um futebol bem jogado e com aproximações, no melhor estilo latino! Atuo no Universidade do Esporte.

Como citar

ARBOéS, Marcus. O futebol brasileiro precisa voltar a ser Macunaíma. Ludopédio, São Paulo, v. 141, n. 61, 2021.
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