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O futebol como brincadeira e como tema de literatura infantil

Jogar futebol como forma de brincadeira de criança pode ser um problema em alguns edifícios das grandes cidades. Diferente do futebol de rua, em que a criança tem a impertinência dos vizinhos, mas ainda goza de certa liberdade de ocupação do espaço público, ou mesmo no campinho perto de casa, que se torna sempre mais do que um espaço destinado ao futebol; nos edifícios o jogo e a brincadeira estão sob forte vigilância.

Se observarmos os prédios construídos nos fins dos anos de 1970 e ao longo da década de 1980, percebemos que o espaço da brincadeira, o lugar do lúdico para a criança, inexiste. É muito comum nos grandes centros os prédios mais antigos, em especial os dessas décadas, terem garagem para poucos carros e nenhum espaço destinado para a criança. E nesses edifícios, cheios de regras para a preservação dos automóveis dos condôminos, jogar futebol parece um crime.

Esse é o tema do livro infantil Será fusível, escrito por Santuza Abras Pinto Coelho e ilustrado por Edna de Castro, publicado pela Editora Lê em 1985. O livro conta a história de um grupo de garotos e garotas residentes de um edifício típico dos anos de 1980, sem  áreas para o divertimento das crianças, que acabavam transformando a garagem do prédio em campo de futebol. Nesse cenário, a criançada estava sempre a arquitetar artimanhas para driblar o síndico, a voz proibitiva dos adultos, e poder jogar futebol.

O livro começa explicando a escala de vigias, quem compunha que lugar – na arbitragem, na torcida, no jogo – e do corre-corre de que eram acometidos quando o síndico aparecia. Jogar futebol é, na narrativa, o maior crime das crianças. Nas reuniões de condomínio, as limitações ao espaço do jogo são uma constante, recheadas de explicações: proibido porque suja as paredes do prédio, porque estraga os carros e, simplesmente, porque não pode.

Em determinado momento, a narrativa oscila entre a dinâmica constante da tentativa dos garotos de seguirem jogando futebol, mesmo sob a proibição e perseguição do síndico, e os sonhos que tanto o síndico quanto as crianças tinham depois de mais um dia de escalonamento e vigilâncias, de corre-corre dentro do proibido: o das crianças, sempre recheada de proibições e gritos dos adultos, proibindo-os de jogar, e o do síndico, sonhando consigo mesmo criança, jogando futebol livremente nos campos perto de casa. Completa a narrativa as vivas e coloridas ilustrações de Edna de Castro, mostrando o cenário do edifício, os sonhos do síndico, o espaço proibido para as crianças, sonhado como um imenso gramado.

A narrativa termina com o síndico tendo um sonho em que seu coração passa por um reparo elétrico em que o fusível responsável pela infância é diagnosticado como queimado e trocado por outro. Isso permite ao síndico se juntar aos garotos no fim da história, descendo para a garagem para jogar futebol com eles, vestido de goleiro.

Um livro infantil que trate dessa temática, comum na vida de crianças que crescem em prédios sem áreas destinadas ao lazer, é importante em muitos aspectos. Primeiro porque estabelece com o leitor-criança uma relação identitária com sua jornada. É um livro que se preocupa em contar uma dinâmica muito comum em grandes centros e do poder subversivo do esporte, em especial do futebol. Mostra como o futebol, enquanto brincadeira coletiva, é central na vida infantil, em especial para aqueles garotos do prédio, e de qual a distância que existe entre supressão do espaço do lúdico e da valorização do espaço dos carros, dos adultos.

Para uma criança que viva nesse contexto e que leia esse livro, estabelece-se uma relação identitária. Essa relação auxilia na formação do leitor porque traz para o espaço da narrativa a experiência que, cotidianamente, uma criança que viva em prédios desse tipo passa. A fim de entendermos em que medida a relação identitária é importante na formação do leitor, e de que maneira o livro infantil que trate de futebol é relevante para essa discussão, tomamos como base o pensamento de Charles Taylor no livro As fontes do self (1997).

Para o autor, a noção de identidade passa necessariamente pela noção de self. Self pode ser entendido como o agente humano, como uma pessoa. Numa revisitação histórica do conceito, Taylor remete à questão de que a escolha do termo salienta que o agente humano é formado por um conjunto complexo e profundo de escolhas e vontades para ter, ou por estar empenhado em descobrir uma identidade.

Assim, um fato crucial sobre um self ou pessoa que sobressai de tudo isso é que ele não é um objeto no sentido comumente entendido. Não somos um self da mesma maneira como somos organismos, nem temos um self tal como temos um coração ou um fígado. Somos seres vivos com esses órgãos de uma forma bem independente de nossas autocompreensões ou auto-interpretações, ou dos sentidos que as coisas têm para nós. Mas só somos um self na medida em que nos movemos num certo espaço de indagações, em que buscamos e encontramos uma orientação para o bem (TAYLOR, 1997, p. 52).

Taylor pretende pensar as relações imbricadas que o self tem com as suas formações morais e de que maneiras podemos percebê-las no conjunto de situações identitárias a que ele é vítima. Entendendo o self como “agente humano”, nele estão colocadas as múltiplas flutuações nas suas relações fundamentais e determinantes dentro de um conjunto de interlocutores. O self só pode ser pensado, portanto, dentro das relações identitárias que cria.  

Dito isso, podemos começar a pensar o que Taylor define por identidade. Para ele, a pergunta de onde partimos para entender tal conceito centra-se na velha máxima do “Quem sou eu?”.

Mas esta pergunta não é necessariamente respondida pelo nome e genealogia. O que nos responde de fato essa interrogação é uma compreensão daquilo que tem importância crucial para nós. Saber quem sou é uma espécie de saber em que posição me coloco. Minha identidade é definida pelos compromissos e identificações que proporcionam a estrutura ou o horizonte em cujo âmbito posso tentar determinar caso a caso o que é bom, ou valioso, ou que se deveria fazer ou aquilo que endosso ou a que me oponho. Em outros termos, trata-se do horizonte dentro do qual sou capaz de tomar uma posição (TAYLOR, 1997, p. 43-44).

As identidades estão, necessariamente, ligadas ao lugar discursivo que ocupa o self, onde ele se reconhece e de onde parte a sua formação, seja moral ou política, regional ou nacional. Essa relação identitária é fundamental, pois insere o self em um espaço significativo capaz de esse se reconhecer como parte de um grupo, de uma formação moral, de uma religião, e, portanto, poder dizer “quem é”. Aquilo que forma essa condição do “ser” do self é a capacidade ampla de ligações e de relações que pode tecer de forma identitária.

Nesse sentido, a leitura é parte formadora do self e influencia as decisões morais ou as compreensões de mundo que o ser pode desenvolver ao longo de sua formação identitária. No caso da criança, em que essas formações estão ainda em uma situação inicial, o contato com uma narrativa que traz a dualidade entre o prazer da brincadeira e a proibição impensada pode auxiliar na formação problematizadora do mundo: o que proíbe uma criança de brincar é o esquecimento do que é ser criança, tratado no texto como um fusível queimado no coração de um síndico essencialmente ligado às regras.

Tal representação do mundo nos modelos simples (e não simplórios) do convívio coletivo e da disposição social de seu grupo diante do grupo que estabelece as regras e impõe as normas auxilia na complexidade do pensar o mundo vivido pela criança, muitas vezes imerso num conjunto de regras que ela pouco entende e da sua capacidade de subversão às regras, de entender que nem todas as regras têm um sentido claro e objetivo.

Além disso, o livro coloca o futebol como parte formadora da ideia de grupo. As crianças estão ali, reunidas e unidas por uma causa comum: conseguir brincar e exercer o seu direito de divertimento, independente da situação colocada pelo síndico. Existe na brincadeira o risco e a necessidade constante de se colocar em risco.

Seguindo esse raciocínio, na construção da relação da identidade que a criança pode vir a tecer com o texto por ver nele representado uma angústia sua, um cenário comum e cotidiano seu, criam-se as relações de identidade que ele poderá ter quando alcançar a fase adulta. A identidade, para Taylor, traz ao agente humano ou à pessoa um tipo característico de orientação, podendo determinar as relações morais que podem vir a estabelecer com os demais agentes humanos e com o espaço físico (TAYLOR, 1997). A sua leitura do self e a necessidade da identidade como um direcionamento moral também trazem um novo olhar sobre agente humano. Percebe o autor as particularidades e a multifacetação de cada self, a complexidade que reside na condição de que somos todos moldados por compromissos universalmente válidos – como nossas definições políticas, religiosas; vinculadas, portanto, a pensamentos mais amplos de conduta moral – como também as nossas identificações particulares – presas ao conjunto de informações e de discursos presentes na nossa relação com o lugar onde nascemos, à cidade em que estamos situados –, o que dá a nossa identidade uma profundidade complexa da qual não podemos perceber nas possíveis articulações que com ela tecemos.

Crianças brincam de futebol. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Nossa identidade é aquilo que nos permite definir o que é e o que não é importante para nós. É ela que torna possível essas discriminações, inclusive aquelas que dependem de avaliações fortes. Logo, não pode prescindir por inteiro dessas avaliações (TAYLOR, 1997, p. 47).

Dessa forma, a narrativa aponta também como determinados espaços não são pensados para as crianças e para as brincadeiras, como se no jogar futebol um número enorme de atividades de formação cognitiva também não estejam em ação – o uso da abstração infantil de se pensar jogando em um espaço diverso daquele onde de fato se joga, o de transformar uma garagem de prédio em um estádio lotado, com torcida e arquibancada. Em espaços como esses, residuais e específicos, “as próprias crianças constroem seu mundo de coisas, um microcosmos no macrocosmos”, como explica Walter Benjamin (1994).

Além disso, como o livro coloca, o futebol é uma atividade constantemente repetida contra um limite, um regra, uma proibição. Mesmo com todas as  interrupções do síndico e todas as proibições às crianças, elas sempre repetem o futebol, se reúnem para arquitetar novas formas de burlar as regras. Afinal, “a repetição é para a criança a essência da brincadeira, que nada lhe dá mais prazer como ‘brincar outra vez’. […] A essência da representação, como a brincadeira, não é ‘fazer como se’, mas ‘fazer sempre de novo’, é a transformação em hábito de uma experiência devastadora” (BENJAMIN, 1994, p. 252).

Nesse sentido, o brincar de jogar futebol é repetição constante na vida da criança. Seu poder de subversão está no seu lugar de brincadeira, que, como tal, precisa sempre, e cada vez mais, ser repetida. Nela, os elementos formadores estão presentes. São elementos constituintes das formações identitárias do self. É preciso representar-se como o jogador de sua predileção, imitar a jogada vista na televisão, aprender os elementos que a brincadeira propicia: ao representar o mundo adulto repetidas vezes, o mundo adulto se explica à criança no seu microcosmos.

O livro traz esse tom para a discussão, lembrando-nos a importante relação que existe entre o jogar e o ler. Além disso, aproxima a criança que vive esse tipo de desafio infantil – a necessidade de burlar as regras para se divertir de forma saudável e livre, jogando futebol – no espaço fechado e cheio de regras do mundo dos adultos.

Assim, Será fusível?, mesmo no tempo dos jogos virtuais e das brincadeiras cada vez menos coletivas e de diversão, dá importância e valoriza do futebol como brincadeira. Realça o seu lugar subversivo no espaço das regras punitivas, do amor que leva as crianças a passar sempre e repetidas vezes pela adrenalina do proibido, do desafiar as regras, do sujar se preciso as paredes do prédio com marcas de bola pelo prazer do jogo, pela diversão do brincar todos os dias de jogar futebol. Além disso, é o livro um instrumento fundamental de formação identitária daquele que vivencia essa experiência: ver-se na narrativa é entender a extensão de suas relações e vivências com um mundo maior e compartilhado de situações similares.  

Dessa forma, a narrativa traz ao centro da cena o quão importante é não perder de vista que o futebol é, também, uma brincadeira infantil. E de que as memórias da infância devem sempre prevalecer como forma de manter viva uma experiência e para que o adulto seja capaz de, diante do duro mundo das regras, ser flexível e lembrar-se de que o lúdico é fundamental para a formação de um ser humano saudável.


Referências

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Trad. Ségio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.

COELHO, Santuza Abras Pinto. Será fusível? Ilustrações de Edna Castro. Belo Horizonte: Ed. Lê, 1985.

TAYLOR, Charles. As fontes do self. Trad. Adail Ubirajara Sobral, Dinah de Abreu Azevedo. São Paulo: Loyola, 1997.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Danilo Barcelos

Professor de Teoria da Literatura na Universidade Estadual de Montes Claros, Doutor e Mestre em Letras pela Universidade Federal do Espírito Santo, graduado em Letras pela Universidade Federal de Ouro Preto.

Como citar

BARCELOS, Danilo. O futebol como brincadeira e como tema de literatura infantil. Ludopédio, São Paulo, v. 129, n. 2, 2020.
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