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O futebol como religião

Fernando José Lourenço Filho 10 de julho de 2009

Muito se fala do futebol enquanto uma paixão nacional e, sem correr o risco de exagerar, é totalmente verossímil dizer que esse mesmo futebol é uma paixão mundial, ou ainda, que é uma religião. A única religião verdadeiramente universal existente no mundo atual. Exagero? Talvez, mas o fato é que é inegável a propagação dessa atividade lúdica pelos quatro cantos do globo e a presença de traços eminentemente sagrados neste esporte.

A principal característica de uma religião é a criação de limites dividindo o mundo sagrado do mundo profano. A questão fica ainda mais clara ao vislumbrarmos o papel dos ídolos, as origens e significados do termo em si, e transportando-os para o universo do futebol.

“Ídolo” vem da palavra grega eidolôn, que pode ser traduzida como imagem e, em alguns casos, como fantasma. O fato é que com a cristianização da Europa Ocidental e o conseqüente predomínio da tradição judaico-cristã sobre o Ocidente – tradição essa baseada, entre outras referências, no Velho Testamento e em seus 10 Mandamentos – a idéia de ídolo ficou associada às religiões pagãs. Diz o Segundo Mandamento: “Não farás para ti esculturas, nem figura alguma do que está em cima nos céus, ou embaixo sobre a terra, ou nas águas, debaixo da terra; não te prostrarás diante delas e não lhes prestarás culto”. Qualquer comparação com a idolatria em torno dos grandes jogadores de futebol não é mera coincidência.

Segundo Émile Durkheim, em seu clássico “As Formas Elementares da Vida Religiosa”, no qual trata das religiões de tribos da Polinésia, existem certos traços que são universais a todas as religiões, não importando o grau de complexidade de cada uma delas e, dentre essas características, ele aponta para existência do Maná, como algo que distingue os seres divinos dos demais mortais. Referências às habilidades sobrenaturais dos jogadores, por parte da crônica esportiva ou dos torcedores, são uma constante: “Pelé é um gênio”; “São Marcos”; “Garrincha, o anjo de pernas tortas”; “Ademir, o Divino”; “Zidane é um mago do futebol”; “Aquele ponta está endiabrado”; “Edílson, o Capetinha”; “Gol espírita”; “Deus dos Estádios”, entre muitas outras.

Assim sendo, é possível afirmar que os ídolos são construídos como seres sagrados, ou imagens sagradas dotadas de uma série de características que os distinguem dos demais seres humanos; logo, divinos. Talvez isso fique mais claro se centrarmos nossas atenções sobre um ídolo em especial, talvez o maior de todos, ou pelo menos aquele que é considerado o maior jogador de todos os tempos: Pelé.

Pelé foi nomeado pelas narrativas que constituíram sua idolatria como “Rei do Futebol”. O próprio termo “rei” já remete a uma idéia religiosa, pois essa palavra vem da expressão latina rex imago Dei, a real imagem de Deus. Durante a Baixa Idade Média, forjou-se que o rei seria um representante de Deus na Terra e, por isso mesmo, um ser divino e dotado de poderes sobrenaturais, como os Reis Taumaturgos da França e da Inglaterra Medievais que, segundo a tradição popular, seriam capazes de curar doenças ou de salvar colheitas perdidas pelo simples toque de suas mãos.

Segundo Jacques Le Goff, historiador medievalista, existem três características que justificam a figura do rei, ou que afirmam um rei enquanto tal. A primeira diz respeito à linhagem, ou seja, para um rei ser rei é necessário que ele seja filho de outro monarca ou tenha alguma origem especial que o diferencie. A segunda diz respeito ao território sobre o qual o mesmo deve exercer o seu poder: todo rei deve ter o seu reino. E a terceira diz que os reis têm natureza, habilidades e poderes especiais ou divinos que os tornam diferentes dos demais mortais. Se nos voltarmos para a narrativa que é construída sobre a vida de Pelé, por meio da idolatria, fica nítido como esses traços constitutivos da imagem de um monarca são recorrentes, seja na grande imprensa ou nas próprias palavras do ex-jogador em questão.

Freqüentemente, ouvimos da boca do próprio Pelé que quem jogava bola mesmo não era ele, e sim seu pai. Seja em entrevistas, ou mesmo nas suas duas autobiografias – “Eu sou Pelé”, de 1961 ou “Pelé: A Autobiografia”, de 2006 – sempre é dito como Dondinho foi um grande jogador e que, por um azar do destino, viu-se impossibilitado de brilhar ainda mais nos campos devido a uma lesão no joelho. Ao referir-se dessa maneira a seu pai, Pelé repete um discurso tão antigo quanto a história ocidental: os reis justificando suas origens e linhagens, como faziam os césares romanos, os carolíngios e os bourbons.

No que diz respeito ao território, o próprio fato de darem o título de “Rei do Futebol” a Pelé deixa claro que o seu reino é, justamente, o campo do jogo, o gramado, o estádio, onde o jogo, tal qual um ritual religioso, desenrola-se. Quanto às habilidades especiais, seus próprios feitos – o milésimo gol; o quase-gol mais bonito da história contra o Uruguai na Copa de 70; o gol de placa; o gol da Rua Javari; os títulos – e o modo como são narrados desenhando um Pelé com dons sobrenaturais e mágicos servem para comprovar seu caráter divino.

Talvez o maior exemplo dessa narrativa possa ser encontrado nas crônicas de Nelson Rodrigues, tais como “A Realeza de Pelé”, em que, além de ser chamado pela primeira vez de rei, aparece como um jogador que, além de ser dotado de uma habilidade extraordinária, revelaria plena noção de sua superioridade em relação aos demais: “O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: – a de se sentir rei, da cabeça aos pés”. Ou seja, o melhor é aquele que possui um algo a mais que o singulariza.

Retomando o nosso tema principal, por meio da idolatria e dos ídolos do futebol – por si sós conceitos ligados ao mundo das religiões – nota-se como é viável a utilização de ferramentas metodológicas para compreender esse esporte como uma religião, dentro da perspectiva da chamada história cultural ou da cultura, pois, a partir disso, é possível perceber aspectos em comum entre essas duas manifestações humanas aparentemente (e só aparentemente) tão distantes uma da outra. Vale ressaltar que a idolatria é apenas um dos vieses pelos quais podemos analisar o futebol enquanto religião: elementos como a própria dinâmica de uma partida e o comportamento dos torcedores dentro e fora do estádio também fornecem pistas que levam à essa análise. Basta segui-las.

Bibliografia

DURKHEIM, E. As Formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo, Editora Martins Fontes, 2003.

ELIADE, M.(org.). The Encyclopedia of Religion. Verbetes: Idolatry e Kingship. New York, Macmillan Publishing Company, 1987.

LE GOFF, J./ SCHMITT, J.(orgs.). Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Verbete: Rei. Bauru/ São Paulo, Edusc/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2002.

NASCIMENTO, E. A. Eu sou Pelé. São Paulo, Livraria Francisco Alves, 1961.

________________. Pelé: A Autobiografia. São Paulo, Editora Sextante, 2006.

RODRIGUES, N. À Sombra das Chuteiras Imortais. Companhia das Letras, 1993.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

FILHO, Fernando José Lourenço. O futebol como religião. Ludopédio, São Paulo, v. 01, n. 3, 2009.
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