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O futebol de fronteira: caminho para a América

Assim como nos jogos da Libertadores e nas temporadas de verão, argentinos e uruguaios invadiram Porto Alegre no principal torneio do futebol sul-americano de seleções

 

 

A cada veraneio, milhares de argentinos atravessam a fronteira com o Rio Grande do Sul e percorrem a paisagem bucólica da BR-290, em que predomina a vegetação do Pampa, as plantações de soja e as criações de gado, rumo às praias de Santa Catarina. Nos seus mais de 700 quilômetros de extensão, a rodovia parte de Uruguaiana, no extremo oeste do estado gaúcho, e segue até Osório, porta de entrada para o litoral gaúcho e o catarinense.

Antes de Osório, porém, está Porto Alegre. Torcedores argentinos acostumaram-se a fazer a viagem para assistir aos confrontos dos seus clubes contra Grêmio e Internacional. Mas em 2019, pela primeira vez, os hermanos percorreram o trajeto para assistir a um jogo de Copa América da sua seleção. Isso porque, apesar de todos os laços que ligam o futebol gaúcho e argentino, dentro e fora de campo, Porto Alegre sedia pela primeira vez a competição continental de seleções, com cinco partidas programadas para a Arena do Grêmio.

Na primeira fase da Copa América de 2019, o contraste entre as arquibancadas vazias e os recordes nas cifras das rendas das partidas reacenderam uma série de discussões relativas ao perfil do torcedor que tem frequentado os jogos de futebol nos maiores eventos esportivos do mundo.

Tite na estreia da Seleção contra a Bolívia. Ao fundo, muitos espaços nas cadeiras. Foto: Lucas Figueiredo/CBF.

O jogo de estreia da seleção Brasileira na competição foi um exemplo. Os cerca de 47 mil torcedores presentes no estádio do Morumbi, protagonizaram cenas no mínimo inusitadas para um jogo de futebol. Nos 90 minutos de bola rolando, um estranho silêncio chamava atenção. Durante a partida, equipes de reportagem flagraram um torcedor que dormia, outros cantavam isoladamente cânticos à revelia. Concatenadas, apenas as vaias, símbolo do processo de arrefecimento entre torcida e    seleção brasileira.

Na Arena do Grêmio, quando o Brasil enfrentou o Paraguai, o processo não foi muito diferente. A presença de Everton (jogador do Grêmio) e Alisson (ex-Inter) animou os torcedores dos dois clubes, que passaram a gritar cânticos relativos às torcidas porto-alegrenses. No tenso momento anterior aos pênaltis, a voz de Luiz Caldas cantando Tieta do Agreste no sistema de som ressoava muito mais alto que qualquer grunhido das arquibancadas. A catarse só veio mesmo com a vitória.

A distância que cresce entre torcida e time é agravada pelos maus resultados do escrete canarinho dentro de campo, mas os resultados por si só não explicam tudo. Em situação esportiva pior, a seleção argentina ainda preserva características únicas em sua relação com o torcedor, assim como a torcida uruguaia. Nos dias de jogo, os argentinos invadiram a cidade de Porto Alegre e produziram um cenário e uma atmosfera futebolística contrastante com os demais jogos da Copa América.

Dados da Polícia Rodoviária Federal apontam que os argentinos chegaram por todas as partes da fronteira. Nos dias 21 e 22 de junho, 332 torcedores entraram por Porto Xavier, 664 pelo Porto Mauá, 4.183 por Uruguaiana, 1.487 por São Borja, 647 por Livramento, 32 por Jaguarão e 73 pelo Chuí, que se somaram aos 282 que entraram no país pelo aeroporto.

Hector Bessone é um desses torcedores. De carro, com mais quatro amigos saiu do sul de Santa Fé para ver a seleção, mas sobretudo para acompanhar o seu ídolo maior, Lionel Messi.

“Sigo Messi desde que era pequeno. Nos mundiais, em todos os jogos possíveis. Eu não posso acreditar no gol que ele errou hoje. É um carma”, afirma o torcedor argentino, ainda incrédulo com um lance no qual, de frente para o gol, o craque chutou de canela. Posteriormente, ele culpou o gramado.

Ainda rouco, depois de cantar durante toda a partida, Hector comparou a paixão pelo futebol do torcedor argentino com a do brasileiro, mas ressaltou a relação única que a torcida de seu país construiu com a sua seleção.

“Conheço muitos argentinos que venderam seus carros, seus bens para vir ver o jogo no mundial  e para vir agora. Na estrada a gente via carros de 1979, de 1974. Fazemos de tudo para acompanhar o time. São sacrifícios.”, ressalta.

A paixão do povo argentino e uruguaio por suas seleções se comprovam não só pelos depoimentos, mas também pelos números. Dos seis maiores públicos registrados na primeira fase da Copa América, três envolveram jogos da anfitriã, a outra metade envolvia ou a seleção uruguaia ou a seleção argentina. Destes três jogos, dois foram realizados em Porto Alegre. Neles a Arena do Grêmio teve um público quase três vezes superior ao jogo de estreia do estádio na competição.

Embalado pelo reggae

A comemoração dos argentinos após a vitória contra o Catar terminou embalada ao som da cumbia na esplanada da Arena do Grêmio. Mas foi o reggae que inspirou a viagem da família Sosa, da pequena San Francisco, na província de Córdoba, até Porto Alegre.

Versos retirados da música “La suerte”, do músico argentino Dread Mar I, estampam uma bandeira com o rosto de Lionel Messi, trazida a Porto Alegre por Alejandro Sosa, 46 anos, e família. O trecho da música, segundo os autores da homenagem, pode ser associado à personalidade do jogador: “nunca pensé en retirarme, no llevo un alma cobarde” (nunca pensei em me aposentar, não tenho uma alma covarde). Messi já chegou a anunciar a aposentadoria pela seleção, porém permaneceu na equipe e teve atuação discreta na tarde de domingo contra o Catar – o que em nada diminui o entusiasmo dos hermanos com o craque.

O rosto do jogador fora desenhado por um amigo, enquanto que a inscrição “Messi te amamos” resumia bem a idolatria dos argentinos. Enquanto garantiam as entradas para a partida no Centro de Distribuição de Ingressos, muitos torcedores argentinos aproveitaram para posar para fotos ao lado bandeira.

Alejandro Sosa foi com a família a Porto Alegre para assistir a Messi, que leva na bandeira. Foto: Danton Júnior e Pedro Vasconcelos Costa e Silva.

Foi pensando em ver Messi – e se possível, fazer com que a homenagem chegasse até ele – que Alejandro Sosa e a família deixaram a província de Córdoba na manhã da última sexta-feira. “Messi está em sua última etapa pela seleção. Não sabemos se chega ao Mundial”, justifica o torcedor. E não vale argumentar que o craque não joga tudo o que sabe quando veste a albiceleste. “Uma coisa é Messi, outra é a seleção. O time não está bem. Messi segue sendo Messi, mas não pode ganhar sozinho”, resume o torcedor.

No primeiro trecho, foram cerca de sete horas de viagem até a aduana, e então mais seis horas pela BR-290 até São Gabriel, no Rio Grande do Sul, onde hospedaram-se para recomeçar a jornada no dia seguinte.

Se por um lado a paisagem, com as extensas criações de gado de raças britânicas e a vegetação composta por gramíneas, típica do Pampa, agradou aos visitantes, por outro as estradas foram alvo de reclamação. “Algumas são muito lindas, mas outras estão bastante destruídas. Acho que o Brasil, por ser um país deste tamanho, deveria ter melhores estradas do que tem”, afirma Sosa.

Após dois dias, o grupo chegou a Porto Alegre, percorrendo um total de 1,2 mil quilômetros. Mas o planejamento começou bem antes, em fevereiro, quando uma amiga sugeriu a ideia a Sosa e família. Em princípio, quatro pessoas viriam a Porto Alegre, mas o grupo aumentou para nove, que cruzaram a fronteira em dois automóveis. No último domingo, o grupo saiu satisfeito da Arena do Grêmio, após a Argentina bater o Catar por 2 a 0 e conquistar uma vaga nas quartas de final. A comemoração teve continuidade nos dias seguintes, já que, a exemplo do que fazem muitos dos seus compatriotas a cada ano, Sosa e família esticaram a viagem e seguiram pela BR-101 até Florianópolis, para um período de férias.

Peregrinação uruguaia

Assim como um grande contingente de compatriotas, o uruguaio Juan Pablo Daguirre, 46 anos, percorreu de carro os 800 quilômetros entre Montevidéu e Porto Alegre para assistir à partida contra o Japão. A opção foi considerada a mais viável financeiramente, já que o grupo contava ao todo com cinco pessoas. O excesso de caminhões na BR-116, no trecho a partir de Pelotas, no entanto, fez com que os cuidados na direção tivessem de ser redobrados. No momento, a rodovia passa por obras visando a sua duplicação.

Para as diferentes gerações de uruguaios que estiveram na Arena, ver a Suárez e Cavani em campo tinha significados distintos. Torcedor do Peñarol, Daguirre tem bem viva na memória a lembrança dos últimos títulos da Libertadores da América conquistados pelos carboneros (1982 e 1987) e do Mundial Interclubes de 1982, na final contra o Aston Villa. O grande rival, o Nacional de Montevidéu, também conquistara na mesma década duas vezes a competição continental (1980 e 1988) e uma vez o Mundial (em 1988, contra o PSV).

“Vivemos muito intensamente a década de 1980, com Peñarol e Nacional sendo campeões da Libertadores e do mundo. Agora as coisas mudaram, por razões econômicas, e os nossos melhores jogadores vão jogar no exterior”, descreve o torcedor. Tanto é assim que, do time que entrou em campo na Arena, nenhum jogador atua no futebol uruguaio.

Juan Pablo Daguirre, 46 anos, percorreu de carro os 800 quilômetros entre Montevidéu e Porto Alegre. Foto: Danton Júnior e Pedro Vasconcelos Costa e Silva.

Se por um lado é mais difícil que os uruguaios vençam uma Libertadores na atualidade – após 1988, o país esteve presente em apenas uma final, com o Peñarol, em 2011 -, por outro coube à seleção comandada por Óscar Tabárez resgatar o orgulho nacional pela Celeste, que havia sido abalado pela ausência nas copas do mundo de 1994 e 1998. As novas gerações uruguaias têm orgulho em vestir a camiseta celeste. Por isso, não foi difícil a Daguirre convencer o filho Gaél, 8 anos, a enfrentar a estrada para assistir ao segundo jogo da seleção pela Copa América.

“A nível de clubes, nos custa muito ganhar a Libertadores, por exemplo, mas nós já vivemos isso. Nossos filhos agora estão vendo isso com a seleção uruguaia, que graças ao maestro Tabárez voltou a ser o que fomos, retomando essa mística e essa paixão”, resume o entusiasmado torcedor. Ao mesmo tempo em que as crianças estão aprendendo a torcer pelo seu país, os adultos aproveitam para se engajar novamente.

“Proporcionalmente, somos o país que mais conquistas tem”, gaba-se Daguirre, referindo-se ao número de habitantes, os dois títulos mundiais e as 15 copas América. “Por isso creio que os nossos títulos têm mais valor do que os de outros países”.

Da experiência em Porto Alegre, a única reclamação – além do resultado em campo – ficou por conta da visão que teve do jogo. Daguirre comprou um dos ingressos mais caros (R$ 350, equivalente a uma cadeira no nível do gramado), mas considera que entradas com valor mais baixo teriam garantido um lugar melhor na Arena. Além disso, ficou separado dos demais companheiros de viagem.”Não sei se é aleatório ou como fizeram, mas não gostamos nada”, protestou.

O empate contra o Japão em 2 a 2 frustrou os planos de quem ansiava por uma vitória celeste. O resultado levou o Uruguai a enfrentar o Peru em Salvador, na Fonte Nova, no sábado (29). Com três gols anulados por impedimento e mais vários outros perdidos na frente do gol, o time teve que enfrentar o Peru em uma disputa de pênaltis — e perdeu, com Suárez errando o chute decisivo. O sonho de ver o time ser campeão da América pertinho de casa será adiado.

Relatos de viagem

A presença de argentinos na Arena do Grêmio fez com que a seleção de Messi ficasse praticamente em casa no jogo contra o Catar. Os gritos de “Vamo, vamo seleccion, hoy te vinimos a alentar”, lembravam um cântico normalmente entoado pela torcida gremista, que copiou as músicas de várias hinchadas argentinas. O clima era de grande decisão, apesar do estádio não estar completamente lotado — a Argentina precisava vencer os convidados do Oriente Médio para se classificar.

Para o torcedor Ariel Soto, que veio de Ituzaingo, na província de Corrientes, com três amigos, a atmosfera e o resultado em campo ajudaram a elevar o ânimo do time para o restante da competição. “Kun Agüero foi o máximo. Messi ainda não está se entendendo no jogo, mas ele é assim. Um dia surpreende e resolve o jogo”, resumiu.

Papa Francisco, Messi e Evita Perón na bandeira. Foto: Danton Júnior e Pedro Vasconcelos Costa e Silva.

De Posadas, na província de Missiones (vizinha à região gaúcha das Missões), até Porto Alegre, o argentino Sebastian Torres percorreu cerca de 800 quilômetros de automóvel. A estrada já é conhecida, uma vez que ele, a esposa e os três filhos costumam veranear em Torres, no Litoral Norte do Rio Grande do Sul, ou nas praias de Santa Catarina.

O jogo contra o Catar teve um significado especial para a família, já que o grupo esteve em Porto Alegre durante a Copa do Mundo de 2014 para assistir ao jogo da albiceleste contra a Nigéria (vitória argentina por 3 a 2). Porém, na ocasião, Torres não conseguiu ingressos e ficou com receio de comprar dos cambistas. Por fim, assistiu ao jogo na “fan fest”, então localizada no Anfiteatro Pôr do Sol. Cinco anos depois, Messi e companhia chegam à Copa América com uma expectativa bem diferente de quando foram vice-campeões do mundo. Pelo menos desta vez, Torres e a família puderam assistir à vitória dentro do estádio.

Antes do jogo, o torcedor lamentava a falta de entrosamento da equipe atual, mas mantinha a confiança no seu maior craque. “É o maior do mundo. Se ganharmos hoje, podemos pensar em título”, disse.

O argentino Sebastian Torres percorreu cerca de 800 quilômetros de automóvel. Foto: Danton Júnior e Pedro Vasconcelos Costa e Silva.

Assim como muitos argentinos, o advogado Miguel Henrosa, 46 anos, conhece bem a BR-290, já que há dez anos utiliza a rodovia para viajar a Florianópolis ou a Bombinhas no verão. Diferente da autopista que utilizou até Uruguaiana, na fronteira com o seu país, a estrada brasileira recebeu críticas do viajante por seu estado de conservação.

Após dez horas de estrada, o grupo, que totalizava 11 pessoas em três automóveis, encontrou dificuldades para localizar o hotel em que ficariam hospedados. Foram encontrados pela reportagem em frente à Arena do Grêmio, na Zona Norte de Porto Alegre.

“Acredito que todos devem ter a mesma paixão pelo seu país. Mas não creio que vamos chegar à final, porque estão jogando mal”, confessou o torcedor. Além do preço dos ingressos, que considerou caros – pagou R$ 350 cada – , Henrosa não fez críticas à maneira com que os argentinos foram recebidos na capital gaúcha. Mas fez um pedido, já pensando no próximo veraneio: “Tomara que dupliquem a BR-290”.    

Miguel Henrosa, 46 anos, veio com 11 amigos em três automóveis. Foto: Danton Júnior e Pedro Vasconcelos Costa e Silva.

Caracterizados com máscaras inspiradas no Carnaval, os amigos Hector Saballa, Veronica Lescano e Celina Navarro estiveram em todos os jogos da Argentina na primeira fase. Após assistirem à derrota para a Colômbia na Arena Fonte Nova e ao empate com o Paraguai no Mineirão, tiveram mais sorte com a vitória sobre o Catar em Porto Alegre. “Nos sentimos em uma festa”, resumiu Veronica.    

Hector Saballa, Veronica Lescano e Celina Navarro, vestidos com máscaras de Carnaval. Foto: Danton Júnior e Pedro Vasconcelos Costa e Silva.

Na terça-feira, a mobilização albiceleste se transfere para Belo Horizonte. No mesmo palco onde a Seleção Brasileira perdeu (por 7 a 1) a classificação para a final da Copa de 2014, acontecerá o clássico das Américas entre Brasil e Argentina. Como a próxima partida na Arena do Grêmio é o clássico andino entre Chile e Peru, as equipes platinas não voltarão tão cedo para o Rio Grande do Sul.


Durante a Copa América, Puntero Izquierdo e Ludopédio publicam uma série de reportagens sobre a história e a atualidade da competição.

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Danton Júnior

Jornalista nascido em Porto Alegre, graduado pela Universidade de Cruz Alta (Unicruz). Admirador do futebol aguerrido. Doutorando em Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

Como citar

SILVA, Pedro Vasconcelos Costa e; DANTON JúNIOR, . O futebol de fronteira: caminho para a América. Ludopédio, São Paulo, v. 121, n. 1, 2019.
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