42.4

O futebol de várzea e a várzea do futebol na cidade de São Paulo

Diana Mendes Machado da Silva 12 de dezembro de 2012

Das novidades que chegaram a São Paulo nos primeiros anos do século XX, poucas receberam tanta adesão quanto o futebol. Ele entusiasmou e mobilizou, sem exceção, os mais diversos grupos que compunham a cidade. Nacionais, imigrantes, brancos, negros, pobres e ricos se engajaram, de maneira semelhante, em associações esportivas e passaram a utilizar boa parte de seu tempo para usufruir dessa novidade. Por introduzir uma nova forma de viver o lazer1 na cidade e ao carregar valores novos, “democráticos” em seus modos e fins, o esporte bretão parecia realizar algumas das promessas anunciadas pela modernidade.

Só o tempo mostraria que os ares nacionais acabariam por oferecer uma configuração bastante específica para tais promessas e para o próprio futebol aqui praticado. Em São Paulo, por exemplo, esses valores novos e democráticos se chocaram com o repertório aristocrático da elite cafeeira que se apropriava do esporte como mais um dos elementos que apresentaria sua distinção social. Foi por isso que, tão logo os grupos a ela identificados perceberam que a rápida difusão do futebol entre os mais pobres o levava para além de sua influência; tão logo reagiram dirigindo-lhes um tratamento que visava reafirmar hierarquias. É o que nota Santos Neto ao analisar a incipiente imprensa esportiva nos primeiros anos do século XX2. Para ele, periódicos como O Estado de S. Paulo se referiam ao futebol praticado pelos populares de forma pejorativa expressando uma:

política consciente para separar […] dois universos futebolísticos. Para os primeiros jornalistas esportivos, assim como para os primeiros dirigentes, havia o ‘grande futebol’, o das elites, e o ‘pequeno futebol’ […] Uns eram os dignos representantes do nobre esporte bretão, e os outros não estavam à altura do reconhecimento oficial e da igualdade na forma de tratamento. Os times populares eram vistos como brutos, incapazes de seguir as regras de conduta do futebol e dos gentlemen ingleses, e por várias vezes foram até mesmo ridicularizados pelas folhas como um bando de jogadores que davam chutões para o alto, sendo chamados de ‘canelas negras’3.

Club Athletico Paulistano, em 1901. Foto: autor desconhecido – Wikipédia.

É interessante notar, em consonância com o autor, que os ‘canelas negras’, integrantes dos times pequenos, eram desqualificados em seus gestos quando comparados aos dos aristocráticos sportmen4. Sua suposta e difundida incapacidade de seguir as regras de conduta do futebol sustentava, por oposição, a ideia de que os ‘times grandes’ seriam os legítimos representantes do esporte trazido da Europa, pois apenas os seus gestos estariam em acordo com uma alegada etiqueta e com as regras que organizavam esse esporte. O recurso que lhes parecia necessário, pois se tornava cada vez mais difícil manter as distinções de origem diante do contato regular com os times ‘pequenos’ ao partilharem os mesmos espaços de jogo na cidade. E ele foi utilizado pelo menos até se tornar possível uma concreta segregação espacial em relação aos demais praticantes do esporte. Esse foi o caso do Clube Atlético Paulistano que, já no ano de 1901, promoveu, “em conjunto com a prefeitura municipal, a transformação do Velódromo existente na cidade em campo de futebol”5, evitando, assim, o “indesejável compartilhamento de espaços públicos”6.

É, pois, nesse contexto de progressiva especialização – e separação – dos espaços de jogo dos clubes de elite que “os times populares que permaneceram na várzea do Carmo tornaram-se conhecidos como ‘varzeanos”7. Ou seja, é apenas a partir do progressivo abandono da várzea pelos aristocratas que a locução ‘de várzea’ passou a ser utilizada, servindo a uma espécie de denúncia do estatuto social dos jogadores dos times populares. Não se pode esquecer, ainda, do conteúdo pejorativo já existente em relação aos espaços de várzea da cidade por pertencerem à região suburbana da cidade e quanto por abrigarem as camadas mais pobres da população.

A Várzea do Carmo em 1821, aquarela de Arnaud Julien Pallière, 1821. Ao chegarem do Rio de Janeiro ou de Santos, e já na entrada da cidade pelos lados do Brás, os viajantes tinham o privilégio de observar esta paisagem. Autor: Arnaud Julien Pallière (1784-1862) – Wikipédia.

Curiosamente, esses sujeitos das camadas mais pobres da população – principalmente os varzeanos moradores dos bairros da Barra Funda e do Bom Retiro – não rejeitaram a locução associada ao seu futebol. Ao contrário, ela foi por eles incorporada, tornando-se uma afirmação identitária forte e corrente8. Centenas de associações esportivas foram criadas pelos varzeanos toda a primeira metade do século XX9. Além do futebol, elas promoviam uma série de atividades de lazer e entretenimento envolvendo mulheres, crianças e idosos até, pelo menos, o início da década de 1960. Possuíam também mecanismos de ajuda mútua, o que contribuía para a manutenção dos laços sociais baseados na reciprocidade. Essa dinâmica, criada a partir da vontade e da organização dessas pessoas, sustentava o futebol amador vivido nos bairros populares. E dela derivou a imagem eloquente que associava ‘abnegação’, ‘parceria’ e ‘amor ao clube’ – característicos dos valores que circulavam nesses bairros – a um jogo livre e criativo.

Esses elementos explicam porque, já em meados dos anos 1920, a experiência varzeana tornou-se incontornável, o que fez com que a imprensa esportiva, agora liderada por A Gazeta Esportiva10, mudasse o tratamento a ela dispensado, oferecendo-lhe outro espaço no universo futebolístico. Juntamente com alguns desses clubes varzeanos, ela esteve à frente, por exemplo, das inúmeras tentativas de criar uma liga esportiva varzeana, num claro movimento de valorização desse futebol. Com a profissionalização do esporte, a partir dos anos 1930, o discurso sobre essa experiência é novamente remodelado e a várzea recebe então a nova alcunha ‘celeiro de craques’, assunto para outro artigo.

Ao entrar em contato com a especificidade desse complexo universo, nota-se que o futebol praticado pelos populares nas várzeas de São Paulo não foi ‘menor’ ou apenas complementar ao futebol oficial, como suas alcunhas querem fazer crer. Ao contrário, foi experiência tão rica e significativa que deixou de designar pejorativamente pessoas e espaços para nomear uma forma de se relacionar com o futebol. Nascida nos bairros suburbanos de São Paulo, essa forma não só permaneceu, a despeito da perda da várzea como um espaço livre11 como se fortaleceu ao espalhar-se por novos lugares da cidade12. Promessas cumpridas?

___________________

OBS: Esse artigo apresenta questões que integram a dissertação de mestrado: A Associação Atlética Anhanguera e o futebol de várzea na cidade de São Paulo (1928-1959) a ser defendida no Departamento de História da Universidade de São Paulo em 2013.

[1] As formas anteriores eram definidas por critérios internos a esses grupos sociais. Um deles era a distinção social, assim, classes sociais diferentes praticavam atividades diferentes.

[2] SANTOS NETO, José Moraes dos. No livro Visão do jogo: primórdios do futebol no Brasil. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

[3] SANTOS NETO, 2002, p.53.

[4] FRANCO Jr., A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 65.

[5] O Velódromo passou a ser utilizado como campo de futebol já nos primeiros anos do século XX. Cf. SANTOS NETO, 2002, p. 49.

[6] Segundo Franco Jr., “o crescimento e a transformação da cidade gerados pela abolição da escravidão, a entrada maciça de imigrantes e a nascente industrialização criavam as possibilidades para alterar as bases de reconhecimento da desigualdade de classe e status até então vigentes”. Ver: FRANCO Jr., 2007, p. 65.

[7] SANTOS NETO, 2002, p.49.

[8] Ao contrário do que ocorreu com a alcunha ‘canelas negras’ que rapidamente caiu em desuso.

[9] Dentre elas: Clube Atlético “Estados Unidos”, Clube “Royal”, Clube “São Geraldo”, Clube “Nacional” do Bom Retiro, “São Cristóvão” Esporte Clube, “Corinthians do Bom Retiro”, Associação Atlética Barra Funda, “Democráticos” Futebol Clube, “XV de Novembro”, “Bola Preta”, “Junqueira”, “Garibaldi” Futebol Clube, “Grajaú”, “Bola Sete”, “Sul Americano”, Grupo Esportivo Carlos Gomes, “Faísca de Ouro”, “Flor do Bosque”, “Santos da Barra Funda”, “Paulista”, “Camerino” e, ainda em atividade, a Associação Atlética Anhanguera e o Clube Nacional do Bom Retiro.

[10] Fundada em 1928, o periódico entrou no mercado editorial como um caderno esportivo semanal de A Gazeta. Já em suas primeiras edições, o jornal trazia páginas inteiras dedicadas ao futebol de várzea.

[11] Processo iniciado pela especulação imobiliária principalmente a partir do final dos anos 1930, com os primeiros trabalhos de retificação do Rio Tietê.

[12] Processo iniciado pela especulação imobiliária principalmente a partir do final dos anos 1930, com os primeiros trabalhos de retificação do Rio Tietê. Além, é claro de espalhar-se até mesmo no interior do futebol oficial, seja pela circulação de jogadores, seja pela circulação de clubes, caso do Sport Club Corinthians. Para uma análise aprofundada sobre a passagem do Corinthians para o futebol oficial, ver: Negreiros, Plínio. Resistência e Rendição: a gênese do Sport Club Corinthians Paulista e o futebol oficial em São Paulo, 1910-1916. Dissertação de mestrado. Pontifícia Universidade Católica, São Paulo,1992.

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Como citar

SILVA, Diana Mendes Machado da. O futebol de várzea e a várzea do futebol na cidade de São Paulo. Ludopédio, São Paulo, v. 42, n. 4, 2012.
Leia também:
  • 178.13

    História e contemporaneidade dos festivais na várzea paulistana

    Alberto Luiz dos Santos, Aira F. Bonfim, Enrico Spaggiari
  • 178.4

    A presença do aguante nos bondes de pista brasileiros

    Fábio Henrique França Rezende
  • 177.29

    Campeonatos e copas: Possibilidades de compreensão do circuito do futebol varzeano de São Paulo (SP)

    Alberto Luiz dos Santos, Aira F. Bonfim, Enrico Spaggiari