139.48

O Futebol Feminino é realidade no Brasil há mais de cem anos

Caroline Soares de Almeida 26 de janeiro de 2021

No domingo (17/01/2021), em meio a um novo pico de mortes por COVID-19 no país, foi aplicada a primeira etapa do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio). O enunciado da questão nº 10 abordou a discrepância salarial entre homens e mulheres no futebol:

“Neymar e Marta são dois expoentes dessa paixão nacional. Ela já foi eleita cinco vezes a melhor jogadora do mundo pela Fifa. Ele conquistou o terceiro lugar na última votação para melhor do mundo. Mas é na conta bancária que a diferença entre os dois se sobressai”.

Ao ser interpelado por apoiadores no dia seguinte, o presidente Jair Bolsonaro criticou a banca que formulou a prova, chamando de “ridículas” algumas das questões. Bolsonaro ainda emendou:

” […] O banco de questões do Enem não é do meu governo ainda, é dos governos anteriores. Têm questões ali ridículas, ainda. Ridículas, tratando do assunto. Comparando mulher jogando futebol, mulher e homem. Por que a Marta ganha menos que o Neymar? Não tem que ter comparação, o futebol feminino ainda não é uma realidade no Brasil”.

No entanto, ao contrário do que o presidente afirmou, o Futebol Feminino no país é realidade desde, pelo menos, 1913. Embora impreciso, o marco é referente a uma fotografia de um evento ocorrido no Velódromo de São Paulo e publicada na Revista Careta[1]. Obviamente não se descarta a possibilidade de que mulheres tenham entrado em campo antes disso. Afinal, uma partida pode ser realizada com uma bola e um grupo de pessoas interessadas.

Partida de futebol em 1913 (Foto: Revista Careta, 6 de setembro de 1913, p. 39)
Partida de futebol em 1913. Foto: Revista Careta, 6 de setembro de 1913, p. 39

Em 1940, o Futebol Feminino já vislumbrava uma profissionalização. Dezenas de equipes do subúrbio do Rio de Janeiro disputavam partidas entre si e excursionavam para embates em outras cidades. Ingressos eram cobrados. Até se discutia a criação de um campeonato para o ano seguinte. Mas, ao contrário disso, em 1941 foi decretada a proibição às mulheres da prática de esportes que fossem “incompatíveis com as condições de sua natureza[2]”. O Decreto-Lei assinado pelo presidente Getúlio Vargas deu origem ao Conselho Nacional de Desportos (CND) e afastou as mulheres dos gramados até sua revogação, em 1979.

A modalidade só foi regulamentada na CBF em 1983. Foram 42 anos de exclusão do universo simbólico do futebol no país. De lá para cá, acompanhamos diversas interrupções de campeonatos, de equipes nos clubes, de projetos. Nas últimas duas décadas, vimos uma maior estabilidade no Futebol Feminino do Brasil. Muito dessa estabilidade está vinculada à atuação de Marta em campo. Dos seus mais de cem gols pela seleção. A qualidade técnica da atleta influenciou muitas jovens a praticar o futebol.

A realidade é que nenhuma/um outra/o futebolista brasileira/o ganhou tantos prêmios Melhor do Mundo Fifa quanto a jogadora alagoana. Apesar disso, Marta personifica a situação laboral de muitas mulheres no mundo, que exercem as mesmas funções e que apesar do rendimento superior, como no exemplo envolvendo Marta e Neymar na questão do ENEM, os ganhos são bem inferiores. Era dessa dupla realidade – da desigualdade salarial entre homens e mulheres e da construção histórica que favoreceu a invisibilidade do Futebol Feminino por décadas país – que falava a questão.

 

Notas

[1] Autoria desconhecida 1913, Careta em S. Paulo. Revista Careta, 6 de setembro de 1913, n. 275, p. 39.

[2] BRASIL, Decreto-Lei nº 3.199, de 14 de abril de 1941. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/del3199.htm. Acesso em: 18 de janeiro de 2021.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Caroline de Almeida

Doutora e Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina. Possui Graduação em História também pela Universidade Federal de Santa Catarina e Bacharelado em Educação Física pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Desde 2011, é pesquisadora do Núcleo de Antropologia Audiovisual e Estudos da Imagem (NAVI/UFSC), atuando, principalmente, nas áreas de esporte, globalização e gênero.

Como citar

ALMEIDA, Caroline Soares de. O Futebol Feminino é realidade no Brasil há mais de cem anos. Ludopédio, São Paulo, v. 139, n. 48, 2021.
Leia também:
  • 178.22

    De beijos forçados a desequilíbrios de poder, a violência contra as mulheres no esporte é endêmica

    Fiona Giles, Kirsty Forsdike
  • 177.31

    A necessidade de se provar: misoginia e racismo no futebol

    Nathália Fernandes Pessanha
  • 177.30

    Marielle, Robinho, Daniel Alves e a eternização do machismo estrutural brasileiro

    Leda Costa