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O futebol nos diferentes recantos do mundo: os primórdios rudimentares do desporto

Vinícius Triches 19 de novembro de 2020

Quais foram as principais “formas de futebol” anteriores ao esporte oficial de origem britânica? Qual a relação das suas formas antecessoras com o futebol atual?

Foto: Pixabay

O futebol, da forma que é conhecido nos dias atuais, teve a sua origem na Inglaterra no ano de 1863, de acordo com a maioria dos autores, como, por exemplo, Murad (2012), Dienstmann e Denardin (1999) e Melo (2000). Considerado o maior fenômeno de massas do mundo, o esporte foi exportado para os diferentes cantos do planeta ao longo dos últimos 157 (cento e cinquenta e sete) anos.

Entretanto, deve se ter em conta que existiram diferentes “formas de futebol” anteriores a prática formal de origem inglesa, em que se percebe que “[…] não era futebol exatamente, mas jogos muito antigos, considerados ancestrais deste esporte, porque se chutavam bolas – no caso qualquer objeto redondo, esférico” (MURAD, 2012, p. 64). A própria palavra futebol tem origem na significação inglesa football, que pode ser traduzido com bola no pé ou pé na bola.

Dienstmann e Denardin (1999) afirmam que é do período pré-histórico o registro de desenhos feitos em cavernas há cerca de 7 (sete) mil anos de homens chutando objetos, inclusive crânios humanos. Em período posterior, enquanto os egípcios faziam adoração ao Sol e os povos babilônicos à Lua, outros povos acreditavam que o chute de objetos esféricos era uma excelente maneira de espantar os maus espíritos.

Melo (2000) afirma que muitos são os que afirmam que as origens do futebol acabaram por se perder no tempo. Supostamente, as origens que podem ser destacadas estão, para o autor, entre os maias, os egípcios, os chineses e a antiga Roma.

Uma das primeiras “modalidades de futebol”, de acordo com Murad (2012), teria sido o Tsu (tsu = chutar e tsu/chu = bola). Praticado na China ao redor de 2600 a. c., a atividade era na verdade um ritual de guerra, não tendo relação com jogo ou competição esportiva, sendo uma prática que acontecia quando, após os combates, a tribo vencedora jogava um “futebol” em que as “bolas” eram as sete cabeças dos inimigos derrotados. Para tanto, escolhiam a do chefe e a dos seis melhores guerreiros que haviam vergado em campo de batalha.

Outra modalidade anterior ao futebol propriamente dito dos dias de hoje foi a do Kemary (ke = jogo e mary = pés), de origem japonesa e datada praticamente na mesma época que o Tsu. Com um significado completamente oposto ao primeiro, a prática é considerada um cerimonial de forte teor pedagógico e de reconhecida qualidade estética, sendo ainda praticada nos dias atuais. De acordo com Murad (2012), se trata de uma celebração para o autoconhecimento, o autocontrole e a meditação, usado como preparação para a disciplina e a concentração na escola. Praticado sob o maior silêncio possível, ou seja, o mesmo silêncio que a milenar educação defende para a sala de aula, bem como com extrema delicadeza, “[…] a plasticidade do Kemary é elegante, artística, e a indumentária é refinada e nobre. A marcação de ritmo e movimentos é feita por melodias típicas do folclore japonês, que, ao fundo, discreta e suavemente, ambientam a coreografia (MURAD, 2012, p. 66).

Representação moderna do Kemari no Japão no ano de 2006. Fonte: Wikipedia.

Já o Thachtli foi praticado ao redor de 1500 a. c. nas Américas do Norte e Central com o simbolismo de uma guerra entre o dia e a noite, a luz e a escuridão, adotando a prática de decapitação de jogadores da equipe derrotada, como também acontecia no Tsu. Tal processo acontecia porque havia uma crença de que o sangue, uma vez jorrando, acabaria por divinizar a terra e, desse modo, “[…] o sagrado tentaria controlar o excesso de emoções” (MURAD, 2012, p. 68).

Ainda nas Américas, mais especificamente na América do Sul, remonta uma tradição dos povos indígenas no período de 1000 a. c., o Matanaaríti. Jogado com uma bola de mangabeira (borracha) que era revestida de caucho, um tipo de madeira leve, a prática permitia o uso das pernas, costas e nádegas para o controle da bola, embora a disputa quase sempre se desse através de cabeçadas.

O Matanaaríti tinha, enquanto sua finalidade, um sentido educacional, principalmente para as crianças e jovens, visto que destacava como uma de suas regras principais o respeito pelo jogo e pelos demais participantes durante a prática. Tornou-se, assim, uma das formas rudimentares da expressão que hoje é conhecida como o fair play, ou seja, uma atuação esportiva que destaca a necessidade de respeitar as regras, o adversário e o público como pressuposto fundamental do esporte.

Em um período mais recente destacam-se a prática do Epyskiros e do Harpastum. O primeiro, de origem grega e praticado ao redor do século IV a.C., e o segundo, oriundo de Roma no período de I a.C., foram praticados no contexto de florescimento máximo das culturas destas civilizações.

Ambos eram jogados com elegância e disciplina quase que exclusivamente pelas camadas mais elevadas da sociedade, ou seja, a nobreza, sendo estes os cidadãos da polis (cidade-estado) grega, ou os aristocratas, conhecidos como patrícios, no Império Romano. Já quando praticados por gente do povo, a atividade tornava-se mais livre e solta, o que deixava a mesma mais bonita e espontânea, mas ao mesmo tempo mais vigorosa e, em certos momentos, violenta, de acordo com Murad (2012).

O antecessor imediato do futebol foi o Calcio ou Gioco del Calcio e sua primeira aparição foi no século XIV na Itália. Teve como seu primeiro campo de prática desportiva a superfície congelada do Rio Arno, em Florença, onde foi fácil fazer com que a bola deslizasse, embora manter o equilíbrio fosse quase impossível. Tal aspecto é importante quando se pensa as características do jogo de futebol atual, dado que essa condição particular acabava fazendo o jogo, a princípio, “[…] exigir do praticante mais equilíbrio, mais habilidade corporal e, por isso, sua prática se tornava mais elegante e coreografada. Por outro lado, também exigia muito preparo físico dos jogadores, que se empenhavam na ginástica. Portanto – interessante! – mesclava técnica e força, habilidade e preparação física”(MURAD, 2012, p. 71).

Calcio fiorentino em 1688. Fonte: Wikipedia.

Com a popularização da atividade esportiva, no momento em que essa passou a ser jogada nas ruas, tornou-se mais competitiva e menos controlada por regras e normas, momento em que o número de jogadores e de torcedores tiveram grande crescimento, fazendo com que as partidas começassem a ser aguerridas tanto dentro e como fora de campo.

Considerando essas formas rudimentares de práticas de atividades antecessoras do futebol que são caracterizadas por uma ambiguidade entre a arte e a violência, o que se verifica é que estas características sempre acabaram por permear o esporte em sua fase antiga e a atual.

Referências Bibliográficas

DIENSTMANN, C.; DENARDIN, P. E. Um século de futebol no Brasil: do Sport Club Rio Grande ao Clube dos Treze. Porto Alegre: APLUB, 1999.

MELO, V. A. de. “Futebol: que história é essa?!”, In: CARRANO, P. C. R. (org.). Futebol: paixão e política. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

MURAD, M. A violência no futebol. São Paulo: Saraiva, 2012. (Coleção para entender).


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Vinícius Triches

Bacharel em Ciências Econômicas e Mestre em Economia. Doutorando em Psicologia Social, com a tese desenvolvida na área da "Identidade Social, Representações Identitárias, Torcidas de Futebol e dupla Gre-Nal". Atualmente também cursa Licenciatura em Sociologia.

Como citar

TRICHES, Vinícius. O futebol nos diferentes recantos do mundo: os primórdios rudimentares do desporto. Ludopédio, São Paulo, v. 137, n. 37, 2020.
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