Na metade dos anos 1990, Mário Sérgio Pontes de Paiva, um dos craques da camisa 10 na história do futebol brasileiro, atuou como treinador do Corinthians. Além de lançar o jovem Zé Elias como titular, fez ótimo trabalho que culminou na conquista da Copa do Brasil de 1995, ainda que o técnico a partir de certo momento tenha sido Eduardo Amorim. Doze anos depois chegou ao vice-campeonato da mesma competição, desta vez treinando o surpreendente Figueirense, derrotado pelo Fluminense de Renato Gaúcho, que conquistava seu primeiro título como treinador. Paulo Roberto Falcão dizia que Mário olhava para um lado e passava ou lançava para o outro. Eles foram campeões invictos do Brasileiro, pelo Internacional, em 1979.

Como treinador, Mário tinha outra visão, olhava para frente e muitas vezes fora do alcance da maioria. Uma de suas boas assertivas daqueles anos foi comparar o futebol com o basquete, dizendo que o primeiro deveria incorporar mais do segundo. Meu amigo Paulo Capela já havia, aliás, destacado essa ideia. Ele também olhava longe. De certa forma tal incorporação aconteceu de diferentes maneiras, em especial na compactação e na rápida transição, dois mantras de hoje. Há expressões que vêm do basquete que, no entanto, não me agradam, parecem-me modernosas, a exemplo de assistência (e não passe para gol) e minutagem ou ganhar minutos em campo. Não apenas deste esporte importamos práticas e vocabulário, a exemplo de goleiros que defendem em manchete, como líberos do voleibol. Do futebol em quadra, por sua vez, foi trazido o drible curto e, mais recentemente, a capacidade de jogar em pequenos espaços, suportando a pressão do cerco constante. Os esportes coletivos se comunicam.

Gostaria, no entanto, que trouxéssemos do basquete um outro item, um exemplo, e ele se chama Kareem Abdul-Jabbar. Nascido no Harlem, em Nova York, teve carreira longeva nas quadras e um currículo correspondente ao gigantismo de sua presença de quase dois metros e vinte de altura. Entre outros feitos, venceu seis vezes o campeonato da National Basketball Association, a NBA. Cresci nos anos 1980 vendo-o jogar pelas imagens que a Rede Bandeirantes retransmitia, parte das tentativas de Luciano do Valle de emplacar novas modalidades no Brasil, como o football e o basquete jogado nos Estados Unidos, então distinto daquele sob os auspícios da Associação Internacional de Basquete, a FIBA. O astro do Los Angeles Lakers impressionava.

Kareem Abdul-Jabbar. Foto: Divulgação/Lakers.

Há duas semanas deparei-me com um artigo de Kareem Abdul-Jabbar no jornal Folha de São Paulo[1], uma tradução de texto que antes fora publicado no The Guardian. Poucas foram as leituras que nos últimos tempos me deixaram tão contente. O grande jogador escreve sobre a devoção de seus compatriotas (e dele mesmo) aos esportes, e sobre certo rechaço à ciência e ao iluminismo em geral, presente na sociedade estadunidense. Seu texto é um elogio à beleza das ideias e das formas esportivas, e por isso critica os intelectuais que tratam a cultura pop e o esporte com desdém. Faz isso, no entanto, sem antes realizar a devida análise do anti-intelectualismo reinante entre os seus, produtor de sofrimento, estupidez e ressentimento. Para ele, uma descoberta da ciência poderia ser tão comemorada quanto um bonito lance de jogo.

Apontando, com a mesma perícia que manuseava a bola laranja, o Presidente Donald Trump como a figura de proa do culto à irracionalidade, Abdul-Jabbar vaticina que:

Ao mesmo tempo em que abraçamos o esporte, os últimos anos vieram a produzir uma ascensão do anti-intelectualismo, a começar por uma aversão aos fatos, à ciência e à lógica. Os adversários da vacinação, aqueles que negam a mudança do clima e até os proponentes da ideia de que a Terra é plana estão em ascensão.

Parte do motivo para isso é a promoção do raciocínio confuso como uma afirmação política positiva. Todas aquelas pessoas que foram ensinadas na escola que falta qualquer base às suas convicções e que suas opiniões estão repletas de falácias lógicas agora podem se unir na ignorância compartilhada, mas disfarçada em conservadorismo. E, unidas, elas podem expressar seu desprezo pelos pensadores da “elite”.

Kareem Abdul-Jabbar, em 2011. Foto: Wikipedia.

No dia seguinte à instigante leitura, assisti à partida final do Campeonato Paulista de Futebol, um jogo tecnicamente sofrível, mas com alguns lances que, para o padrão atual do futebol brasileiro, foram animadores. Um deles foi o gol decisivo, quando a contenda já se encaminhava para seu epílogo, em finalização precisa de Wagner Love completando lançamento do habilidoso Junior Sornoza. Feita a entrega das medalhas à equipe campeã, coube a Cássio, capitão do Corinthians, levantar a taça. Eis que um indivíduo surge para insistir em erguer o troféu junto com seu legítimo portador. Sem desistir da empreitada, mesmo frente à surpresa do goleiro, o sorridente intruso parecia à vontade. Soube-se depois que se tratava do presidente da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Tão tranquilo quanto ele, parecia estar um Senador da República, medalha de campeão no peito, sentado sobre a grama em frente aos corintianos que comemoravam no palanque. O que faziam ali? Impressiona a desfaçatez dos que detêm algum poder no Brasil.

O impacto do episódio com os dois políticos foi maior depois da leitura tão iluminadora do texto de Abdul-Jabbar, conjunto de ideias que, entre outras coisas, desabona os preconceitos contra os mulçumanos, com frequência vistos como fanáticos. Kareem, que é islâmico, não teve medo de, com respeito, criticar o presidente de seu país, de fazer uma reflexão apurada sobre a sociedade em que vive.

Décio de Almeida Prado, o grande crítico teatral, escreveu diversos textos sobre futebol, todos muito bem articulados. Ele entendia do jogo. Em um deles, usa o basquete para, por oposição, explicar o futebol. O método funciona, apesar de sabermos das similitudes entre os esportes coletivos. Funcionaria ainda mais se Décio tivesse podido comparar Kareem aos futebolistas. Falta ao futebol um tanto de iluminismo. Carecemos de alguém como Abdul-Jabbar.

Coqueiros, Florianópolis, maio de 2019.

 

[1] https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2019/04/visao-que-americanos-tem-de-atletas-e-intelectuais-diz-muito-sobre-o-pais.shtml

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. O futebol precisa de um Abdul-Jabbar. Ludopédio, São Paulo, v. 119, n. 4, 2019.
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