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O futuro trans do esporte

Wagner Xavier de Camargo 21 de novembro de 2021

A opinião pública tem sido impactada, de todos os lados e por todas as vias, sobre questões relativas a pessoas trans no esporte de competição, particularmente esse que vemos na TV e que é considerado de matriz espetacular, ou seja, amplamente divulgado como espetáculo. Muito se fala sobre as pessoas trans como atletas, porém pouco se pergunta para elas o que pensam de tudo isso e se, de fato, o esporte é uma questão fundamental em suas vidas.

A partir disso que tem ocorrido, gostaria de defender um futuro trans do esporte! E digo que tal futuro não se restringirá às pessoas trans/transgênero, isto é, àquelas que não concordam com o gênero atribuído no nascimento; este novo futuro libertará geral para que corpos possam competir sem exceção de prerrogativas, sem limites ou regulações, sem ter que se encaixar nas já velhas e carcomidas categorias “masculino” e “feminino”.

Laurel Hubbard foi a “primeira mulher trans” a participar, oficialmente, do levantamento de peso, na recém-finalizada edição dos Jogos Olímpicos, um megaevento que é vitrine do esporte moderno e lugar de atenção dos meios de comunicação em todo o planeta. Contudo, ela abriu uma porta não só para atletas trans, mas para os corpos não bináries, não conformes, não cisgêneros, não heterossexuais, não usuais.

Laurel Hubbard
Laurel Hubbard. Fonte: Wikipédia

Claro que o Olimpismo é a trajetória dos que chegam ao posto de semideusas/semideuses por vias bastante particulares. Nem todas as pessoas conseguem participar como atletas de Jogos Olímpicos/Paralímpicos e pouquíssimas sobem ao Olimpo para receber a medalha conquistada. Todavia, digo que a prerrogativa aberta por Hubbard vai atuar como ondas reverberando num mar, gerando tsunamis (de distintas intensidades e magnitudes) por todas as partes em que houver um grupo praticando esporte e uma regulamentação arregimentando-o. Hubbard será forever!

Ela foi registrada oficialmente nos Jogos, porque foi inscrita como atleta selecionada pelo comitê nacional da Nova Zelândia (seu país natal) e não simplesmente convidada a participar, ou algo similar. Hubbard faz história dentro da História. Há atletas que vieram antes dela e que eram dissidentes matriz cis-hetero-normativa de sexo-gênero. Mas correram, nadaram, lutaram ou jogaram como quaisquer outros corpos. Isso não anula a importância de suas participações e nos mostra o tamanho do incômodo que Hubbard provocou (e continuará provocando) nos órgãos de controle no futuro.

Numa entrevista no site Huffpost, ela disse:

Minha participação não deveria ser algo histórico. À medida em que avançamos a um mundo novo e mais compreensivo, a gente se dá conta de que pessoas como eu são simplesmente pessoas. Somos seres humanos. E espero que apenas estar aqui seja suficiente (…). Não penso que eu deva ser um exemplo a ser seguido. Espero que, pelo fato de estar aqui, eu possa providenciar algum tipo de encorajamento. Se há pessoas que estão sofrendo ou enfrentando dificuldades, não necessariamente relacionadas ao esporte, que tudo isso lhes sirva de exemplo para que vejam que há oportunidades no mundo, oportunidades para viver como somos.

Pois digo a Hubbard: não estamos caminhando para um mundo mais compreensivo e tolerante, pelo contrário. Há dados de aumento de desigualdade em todos os continentes; aumento da pobreza absoluta e falta de recursos básicos; as recentes Conferências sobre economia e clima deste ano mostraram que estamos em franca extinção, se não controlarmos nossa pusilânime força autodestrutiva. Portanto, Hubbard: você é, sim, um exemplo a ser seguido enquanto ainda temos um mundo no qual possamos viver. E há também o exemplo de outras pessoas.

Há Caster Semenya, uma corredora sul-africana multi-medalhista de provas de velocidade (400 e 800 m) e de meio fundo (1500m), que é uma pessoa que apresenta variação intersexo. Até aí, nada errado com ela, a não ser sua condição de hiperandrogênica, ou seja, produtora em excesso de testosterona. Semenya tem sido perseguida há mais de uma década, vilipendiada em seu direito de simplesmente correr e pressionada a se manter sob controle de remédios para se “adequar”. Semenya: você não precisa se adequar e sabe disso!

Caster Semenya
Caster Semenya. Foto: Wikipédia

De onde vêm as supostas vantagens que mulheres trans e hiperandrogênicas que tanto se alude aqui e ali? De suas produções de testosterona? De suas estruturas ósseas? De suas vivências prévias como “homens”, particularmente no caso das mulheres trans? Nenhuma resposta pode ser dada com certeza, exatamente porque tudo ainda é especulação de uma visão cisgênera, de uma ciência cisgênera parcial e de argumentos que tomam a cisgeneridade como norma. Não se pode olhar para o diferente e pedir “coerência” a partir do que se acha correto, sendo que o correto é questionável se virarmos o caleidoscópio.

E de onde vem Semenya, há outras atletas meio-fundistas também afetadas, como Francine Niyonsaba (de Burundi) e Margaret Wambui (do Quênia); e, recentemente duas velocistas dos 400 m da Namíbia, Christine Mboma e Beatrice Masilingi, de apenas 18 anos. Todas banidas do esporte ou impedidas de competir por apresentarem testosterona em excesso. Os órgãos de controle de drogas justamente exigem que tais atletas tomem drogas para suprimirem os níveis hormonais que seus próprios corpos produzem, o que é um absurdo frente ao pressuposto do que justifica suas existências.

Para quem acompanha os desdobramentos do segundo século de existência do esporte moderno, talvez possa entender que mais do que em momentos anteriores, o panteão dos deuses olímpicos (particularmente composto por homens e brancos) tem se sentido ameaçado não tão somente pela presença de mulheres, e sim por mulheres trans, negras, pobres e com variação intersexo de países africanos e asiáticos. Então, além da parcialidade na generificação dos argumentos científicos para justificar incoerências e injustiças contra corpos de supostas “mulheres de verdade”, isso é racismo e xenofobismo velado.  

Mulheres sempre foram perseguidas no percurso deste esporte moderno, desde seu berço. Não seria diferente com mulheres trans e com as que apresentam variação intersexo. Ainda vivemos a tal “caça às bruxas” às mulheres na trajetória machista e masculinista deste esporte bicentenário. Que tal nós o trans-formarmos?

Atletas de outras modalidades e países, como Quinn, no futebol (do Canadá) e Alana Smith, no skate (dos EUA), impuseram uma necessidade sem precedentes à imprensa jornalística, particularmente à brasileira: a necessidade de incluir outros pronomes de tratamento para pessoas não bináries ou não orientadas cisheteronormatividade (e por pronomes ele/dele, ela/dela). Elus mostraram que outras existências são possíveis, no rol das incompreensões generalizadas e controles rígidos.

Alana Smith
Alana Smith. Foto: reprodução Facebook

Apesar de minha empatia com o discurso de Hubbard em sua entrevista e do qual segmentei apenas um pequeno trecho aqui (no Youtube se pode conferi-lo na íntegra), não tenho dúvidas de que o registro de sua participação foi histórico e sem precedentes (ao contrário do que ela reconheceu em seu discurso), independente do que acontecer no futuro talvez por políticas de retaliação dos órgãos de controle, que começaram a ser arquitetadas antes mesmo dos Jogos de Tóquio-2021 terminarem.

Para que atletas e outras pessoas envolvidas no campo esportivo possam compreender que há um futuro trans, pessoas trans, pessoas com variação intersexo, as não bináries, entre tantas outras possibilidades de seres humanos (como a própria Hubbard frisa), devem se mostrar, fazerem-se visíveis, para que haja exemplos a serem seguidos. Como ela, Quinn, Alana, e outres que ou estão por aí ou logo aparecerão no spotlight olímpico/paralímpico e trarão não simplesmente o futuro do esporte, mas sim o esporte do futuro.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. O futuro trans do esporte. Ludopédio, São Paulo, v. 149, n. 24, 2021.
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