Em seu último romance, Marrom e amarelo (Companhia das Letras, 2019), o gaúcho Paulo Scott faz uma breve e sutil, mas nada invisível, menção ao Grêmio de Football Porto-alegrense. O livro tematiza algumas das tensões étnico-raciais no Brasil, o que inclui as novas formas de organização e as demandas de grupos sociais historicamente marginalizados. Nas recordações de Federico, personagem central da trama, emerge um conflito que começa com uma cena de injúria proferida pela moça branca contra a congênere negra em uma longa fila de espera para uma festa em um clube de elite, e termina em morte e prolongado ressentimento. A agressora e o grupo que a acompanha estão, quase todos, com camisetas do Grêmio, porque é véspera do primeiro aniversário do título da Copa Intercontinental, conquistada em 11 de dezembro de 1983. Um dos rapazes, sem participar da agressão – ao contrário, seu movimento é o de apaziguar as coisas –, veste uma camisa polo com o símbolo do tricolor gaúcho bordado nas mangas. A diferença na roupa sugere o toque de civilidade que faz lembrar o caráter aristocrático do esporte, já que não se trata do uniforme de jogo, mas de traje mais adequado para o gentleman que leva consigo, fora do campo, a paixão pela agremiação.

A menção ao time feita no livro de Scott remete à identificação de classe e etnia que se atribui ao Grêmio, quadro desenhado em contraposição ao arquirrival Sport Club Internacional. Tal relação se dá nas origens dos clubes, mas não resiste, pelo menos não em sua maior extensão, ao desenvolvimento histórico. É certo que todos os estratos sociais se veem representados em ambas as torcidas que dividem o Rio Grande do Sul quase ao meio. De qualquer forma, permanece no imaginário (o que não é pouco) algo dessa distinção.

Por sua vez, o Grêmio da minha infância é o que perdia para o Inter, octacampeão gaúcho entre 1969 e 1976. Quão surpreendente foi, portanto (não era fácil lidar com a mudança de direção das coisas), que o vencedor do campeonato gaúcho de 1977 não fosse o Colorado, mas o time do Olímpico, que não só quebrou uma sina de tantos anos, como deu início a um ciclo bastante vencedor em sua história. Seis anos depois daquele título, foi a primeira equipe brasileira a vencer as Copas Libertadores e Intercontinental, depois dos triunfos do Santos Futebol Clube, de Pelé e cia, em 1962 e 1963.  

Grêmio
Torcida do Grêmio apoia o time em partida pelo Campeonato Brasileiro de 2021. Foto: Lucas Uebel/Grêmio FBPA.

Por falar no Peixe, naquele mesmo time de Pelé, mas entre 1965 e 1975, jogou o florianopolitano Oberdan Vilain, ele que, em final de carreira, foi para o Olímpico a convite do técnico Telê Santana para ser o xerife da defesa do Grêmio campeão de 1977. Alto, forte e com grande impulsão (vez por outra marcava seus gols de cabeça), foi responsável pela neutralização de uma das armas mais mortais do Inter, o jogo aéreo que se concluía com Escurinho, atacante suplente que com frequência entrava durante a partida para defini-la com suas cabeçadas. Naquele mesmo 1977, conheci, pela leitura de Placar, a existência da Coligay, torcida uniformizada gremista formada por homossexuais que marcou presença corajosa e prazerosa nos jogos no Olímpico. A repressão política era intensa e um dos seus alvos prediletos eram os comportamentos considerados socialmente inadequados. Não foi pouco o que fizeram aqueles rapazes[1].

Crescendo na cidade de Florianópolis, acostumado aos times alvinegro (Figueirense Futebol) e azul e branco (Avaí Futebol Clube), era-me estranha a combinação de cores do Grêmio: preto, azul e branco, como se vissem somadas as duas forças futebolísticas de Florianópolis. Viria daí a força do tricolor em comparação aos times da capital catarinense? Claro que não, mas a coloração sugeria superioridade.

Em 1979 ela foi testada no Orlando Scarpelli, estádio do Figueira, que saiu perdendo o jogo pelo Campeonato Brasileiro: escanteio cobrado pelo ponta-esquerda Éder Aleixo, gol de cabeça de Baltazar, o “artilheiro de Deus” que chegaria a máximo goleador da Espanha na temporada de 1988/1989, com trinta e cinco gols em trinta e seis partidas. Parecia tudo tranquilo para uma vitória acachapante dos gaúchos naquela tarde de domingo primaveril, mas o alvinegro tinha Balduíno no meio-de-campo, e o armador, que já fora ídolo no rival Avaí, se consagrou comandando a virada por 2 a 1. O destaque na peleja o levou a atuar por um curto período de tempo no próprio Tricolor, logo voltando para Floripa para ser o que sempre foi: um craque local. Trinta e cinco anos depois, o Grêmio não só venceu no mesmo estádio o mesmo adversário, como lhe aplicou a maior goleada que o time do Estreito tomou em campeonatos brasileiros: 7 a 1.

Havia outra esquisitice no Grêmio, que me desconcertava quando eu era pequeno. Como ao Sport, de Recife, ao Atlético, de Belo Horizonte e ao Athletico, de Curitiba, ao Tricolor não nos referimos pelo nome principal, mas por aquilo que lhe é complementar: o fato de ser uma associação (um grêmio, um clube esportivo ou atlético). Ninguém chama o Figueirense de Clube ou o Corinthians de Sport. Sim, é o costume e a língua viva que se espalha, as pessoas produzem os sentidos das palavras. Talvez o esquisito seja eu.

O Grêmio acaba de descender para a Série B do Campeonato Brasileiro, derrota que pela terceira vez experimenta em sua história. O campeão da Libertadores (por três vezes), da Copa Intercontinental, de torneios nacionais por diversas vezes, uma das sensacionais forças do futebol brasileiro, onde brilharam Éder, Baltazar, Ancheta, Manga, Ortiz, De León, Paulo Cezar Lima, Mário Sérgio, Everaldo, Tarciso, Luan, Arce, Paulo Nunes, Roger, Emerson, Assis, entre tantos que vi jogar, vai tentar, em 2022, voltar à elite do futebol brasileiro. O time em que Renato Portaluppi é o ídolo maior, onde Ronaldinho Assis foi formado jogador, enfrentará a dura disputa da segunda divisão. O acesso deve vir, mas não deve ser fácil.

Boa sorte ao Grêmio, que mereça ascender. Como sempre, o seguirei de longe.

Ilha de Santa Catarina, dezembro de 2021.


[1] Sobre o tema vale a leitura do livro Coligay: tricolor e de todas as cores, de Léo Gerchmann (Editora Libretos, 2014).

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. O Grêmio, visto de fora. Ludopédio, São Paulo, v. 150, n. 27, 2021.
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