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O hexa não veio (e nem virá!): ainda sobre a despolitização (sem fim) da seleção brasileira

Fabio Perina 19 de janeiro de 2023

“Ronaldo é oficialmente um magnata da bola, com tudo o que isso tem de ruim. Os campeões do penta, convidados da Fifa e/ou do Emir para assistir aos jogos, se revelaram pessoas apequenadas de caráter e nos obrigam a fazer o ingrato exercício de separar o ídolo da pessoa. Nossa seleção, como previsto pelos mais atentos, não teve uma liderança madura e, sem jogar nada de bola, foi eliminada muito antes do que gostaria a maioria. (…) A galera brasileira presente à Copa foi basicamente composta por uma “start-up” de torcida que desconhece o que seja apoiar autêntica e apaixonadamente uma camisa, protagonizando um espetáculo tão miserável quanto deprimente”.

Esse novo texto emerge como uma articulação de outros dois anteriores escritos alguns meses atrás enquanto produtos de longas reflexões sobre processos ao longo de duas décadas. Em um, tratei de algumas gerações da “boleiragem” (ou “broderagem”?) já com mais de 30 anos: Neymar, Ronaldinho e até Ronaldo. Já em outro, tratei da seleção brasileira no pós-2002 com ênfase em outros sujeitos “desde cima” (investidores e “cartolagem”) e “desde baixo” (“torcedores”). Ambos serviram de premissas para esboçar hipóteses que justamente nos últimos dois meses foram radicalmente condensadas e principalmente confirmadas para entendermos um pouco mais dessa identidade “canarinha” (daqui para frente em aspas mesmo em todo o seu sentido pejorativo), inclusive se deslocando entre os sujeitos principalmente jogadores e ex-jogadores mas também poderia ser ampliado a treinadores, jornalistas, “influencers”, políticos, etc. Muito além de mera coincidência ou criatividade de algum “roteirista”, nada melhor que a história e a realidade para escancararem em nossas caras as lições mais sagazes e brutais! (ou “surras” maiores que o 7 a 1!)

O caminho da seleção brasileira na Copa do Mundo do Catar é recente e, portanto, conhecido por todos dentro de campo: na fase de grupos, vitórias por 2 a 0 na Sérvia e 1 a 0 na Suíça e derrota dos reservas para Camarões por 1 a 0. Depois, nas oitavas de final, goleada tranquila por 4 a 1 na Coréia do Sul (sendo 4 a 0 apenas no primeiro tempo). E por fim, nas quartas de final, derrota nos pênaltis para a Croácia com os famosos e infames 4 minutos da prorrogação em que não se soube sustentar a vantagem de 1 a 0 e se permitiu um empate. Ainda sobre o dentro de campo, uma breve menção sobre 2018 à luz de 2022 no qual o tão premiado e elogiado treinador Tite foi incapaz de conduzir um bom desempenho e um bom resultado na reta final, apesar de elogios abstratos ao “ciclo” pré-Copa do Mundo com seus números enganosos, o que o credencia a ser o principal responsável por mais essa eliminação. E também breve menção sobre o pós-2006 à luz de 2022 em que pela 5ª vez seguida (sendo a 4ª nas quartas de final) a seleção brasileira não consegue superar um adversário europeu valendo eliminação direta: França, Holanda, Alemanha, Bélgica e agora Croácia. Em suma, uma “surra” de realidade em que para muitos cresce o duro diagnóstico que o perfil qualitativo e quantitativo dessas derrotas não permite mais colocar a seleção brasileira entre as protagonistas. Um duro abalo na identidade nacional em que futebol e política parecem sucumbir juntos, tema que retomarei no final do texto. (Obs: ora, não irei agora tratar de criticar a sempre desprezível “mídia leifertizada” e sua cumplicidade com a boleiragem “canarinho”, mas notem o abismo dela passar 4 anos insuflando o vira-latismo e a cópia de um modelo de futebol europeu para depois em apenas 1 mês tentar redimir isso insuflando o ufanismo patriótico “canarinho”. Quanto cinismo hein?!).

Brasil dança
Jogadores do Brasil comemoram com dança mais um gol da seleção contra a Coreia do Sul. Foto: Lucas Figueiredo/CBF.

A partir de agora nesse texto a dimensão dentro de campo passa de protagonista a coadjuvante para não permitir que sejam esquecidos os recentes absurdos nos quais a geração 2022 (principalmente Neymar mas também Daniel Alves e Thiago Silva) se fundiu com a geração 2002 (principalmente Ronaldo mas também Kaká, Roberto Carlos e Rivaldo). Tendo como chave de leitura em comum a despolitização, e indiretamente a internacionalização, no sentido de ambos processos se afastarem da cultura popular. Ora, embora a Copa tenha começado apenas 1 mês depois das eleições presidenciais, com vitória apertada e histórica de Lula sobre Bolsonaro, era esperado que as menções explicitamente políticas de jogadores e outros protagonistas fossem discretas (Envergonhados? Arrependidos? Ou apenas indiferentes?). Diante da narrativa de tentar reunificar o país através da seleção brasileira com a possível conquista do hexa. O que na verdade é muito conveniente para a reprodução comercial (principalmente televisiva) ao sempre tentar despolitizar o ambiente do futebol tal qual uma ligação direta da FIFA pra Globo. Vide o treinador Tite já ter reforçado um claro posicionamento, independente de título ou fracasso, que não seguiria no cargo de 2023 em diante e principalmente que não aceitaria visita oficial de nenhum presidente no retorno ao Brasil.
Porém é preciso a ressalva que a política vai muito além da dimensão institucional e de apoio a algum candidato A ou B, mas diz respeito à forma mais cotidiana de se posicionar na esfera pública, principalmente entre sujeitos públicos. Ora, as disputas discursivas são tão cotidianas que a boleiragem “canarinha” tenta emplacar uma narrativa de vítima e qualquer questionamento do outro lado é rebatido pelo argumento (ou “arJumento”?) ora do “futebol” (“invejosos”, “ganharam o que?!”), ora da “política” (“petistas”, “comunistas”, “vendidos pra globolixo”, etc). Quando na verdade estão muito mais preocupados em rebater ataques pessoais e alimentar um “espírito de grupo” binário (“nós” x “eles”) ao invés de tentar entender os argumentos que recebem para elaborar outros melhores como réplica.

Indo direto aos fatos, terei como principais companheiros nessa reconstituição e indignação diária os blogueiros do UOL Esporte: principalmente Menon, Casagrande e Milly Lacombe. E para não deixar meu texto saturado de muitos links e referências deixarei em alguns casos apenas o título das manchetes para se ter uma noção das palavras duras, porém necessárias. Primeiro tratando da dimensão “desde cima”, ou seja, a boleiragem “canarinha” mergulhada em sua bolha de autoelogio e autoproteção. Com a lesão de Neymar logo na estreia e, portanto, seu desfalque por toda a fase de grupos ficou suspensa a expectativa se ao fazer um gol ele iria comemorar ou não com um gesto de “22” com os dedos em apoio a Bolsonaro conforme prometera na véspera da eleição. A partir de então a boleiragem “canarinha” emplacou uma narrativa delirante que a esquerda comemorou a lesão de Neymar e, pasmem, cunhar a pérola que “o Brasil não merece Neymar!”. Propagada pelo “menino” Raphinha, um dos jovens integrantes do elenco que faz questão de declarar que Neymar é uma liderança para todos e indiretamente dessa forma também “cavar sua vaga” como um dos próximos bajuladores-bajulados. Parecendo uma adaptação atual à pérola conservadora de longa data que: “cada povo tem o governo que merece”, no fim das contas uma forma de culpar mais o próprio povo por suas mazelas do que a elite. Como réplica, imediatamente diversos blogueiros trataram de listar brasileiros de fato muito maiores que Neymar no futebol e principalmente na cultura popular (tema que retomarei nas últimas linhas) e com isso recolocar as coisas em seus lugares contra qualquer “terraplanismo” futebolístico.

Aqui é preciso um posicionamento firme para apontar como a narrativa da “polarização” (o discurso vago e abstrato de “ódio dos dois lados”) foi deslocada covardemente da política para o futebol diante da troca de contexto da eleição para a copa. Sobre a vitória de Lula sobre Bolsonaro, nunca foi “uma escolha muito difícil”. E sobre a lesão de Neymar, apesar de todo seu próprio esforço para se associar com Bolsonaro, nunca ele foi vítima de ódio implacável como ele e seus “parsas” bajuladores deliram acreditar. O que acontece foi uma “surra” de realidade que, ao ser tão indiferente por tanto tempo pelas vítimas reais do bolsonarismo, o próprio Neymar acabou sendo tratado com indiferença por muitas pessoas quando lesionado (o que aliás reforça a pérola conservadora de longa data que “jogador só quer dinheiro”). Inclusive daí emergiu uma hipótese estritamente futebolística que uma equipe sem ele poderia ter mais liberdade tática e menos peso psicológico para poder render melhor, conforme a experiência de outras lesões podiam confirmar. Além da hipótese que ele não é perseguido dentro de campo mas sim seu estilo de jogo por ser individualista fica mais sujeito a receber mais faltas que os demais jogadores. (Obs: direto das manchetes de alguns blogs sobre esse fato: “Neymar terá que lidar com o fato de defender um país que não gosta dele”; “Imprensa precisa parar de reforçar a idéia de que Neymar é vítima do ódio”; “Ronaldo, ninguém é obrigado a gostar de Neymar bolsonarista”).

Deixo como reflexão adicional que a boleiragem “canarinha” procura se apropriar de outra pérola conservadora de longa data que “o Brasil não respeita seus ídolos” (declarada por Kaká e pelo visto aceita pelos demais em cumplicidade) apenas como fachada para escolher muito seletivamente a dedo o status de ídolo entre seus semelhantes. Apenas para renovarem o salvo-conduto de seguirem com toda a permissividade fora de campo por saberem contar com uma legião de bajuladores. Já a geração de 2022 não obterá esse salvo-conduto (ainda bem!)

(Obs: ora, levantando hipóteses, talvez exista alguma autodefesa inconsciente na geração de 2002 que um título mundial da geração de 2022 poderia levar a seu rápido esquecimento, por isso deixam essa mão permanentemente estendida para a bajulação. Assim como talvez exista alguma autodefesa inconsciente em diversas gerações recentes de evitar o destino trágico de gerações passadas de muito sucesso dentro de campo, mas depois esquecimento e até pobreza fora dele. Ou talvez indo além do futebol e pensando na geração populacional seja apenas uma simples tentativa de “driblar” o envelhecimento e a desocupação e dessa forma se sentirem “meninos” para sempre ao terem a percepção de não estarem completamente distantes dos gramados. Mas isso dificilmente sairíamos do “talvez” para ter indícios mais plausíveis enquanto não aceitarem dialogar mais abertamente para públicos maiores além de seus semelhantes e, principalmente, aceitarem falar não apenas de suas vitórias, mas de suas dificuldades e até angústias.)

Ora, se durante a fase de grupos o fora de campo já foi bastante agitado, na véspera do mata-mata os contrastes ficaram ainda mais gritantes. Não somente pela treta permanente entre comentaristas x jogadores e ex-jogadores ter se ampliado para a treta entre ex-companheiros de Rede Globo: Casagrande x Tiago Leifert (um “Kaká sem chuteiras”). Dois quem por sua vez mais personificam politização x despolitização do futebol. Para surpresa de ninguém o embate de valores ficou nu e cru entre de um lado um “drogado” (conforme sempre acusado pela boleiragem “canarinha”) e de outro lado um “herdeiro” da Rede Globo, a personificação do discurso meritocrático televisivo, como defensor de primeira hora nesse “looping infinito” entre bajuladores e bajulados. Mas principalmente através de um fato novo: o encontro das gerações de 2002 e 2022 na ostentação de se alimentarem de carne folhada a ouro. Em casos assim não bastam relativizações do tipo que outros jogadores de outras seleções fizeram o mesmo ou do tipo que a ostentação de negros é criticada enquanto a ostentação de brancos é tolerada. Seriam distrações para mistificar um debate necessário ao tornar visível apenas suas falsas polêmicas. Nesse sentido a blogueira Milly Lacombe (“O problema não é ir comer carne com ouro; o problema é esse lugar existir”) faz mais do que um desabafo, mas uma análise profunda sob a premissa que é mais produtivo criticar o sistema do que as pessoas, sendo casos assim como o bife de ouro apenas “a ponta do iceberg”. Em outras palavras, como outra breve menção teórica, acrescento que a questão de cor nunca pode ser desvinculada da questão de classe se a evidência nesse caso da boleiragem “canarinha” é de meninos que nasceram pobres, porém enriqueceram tão rapidamente que logo se esqueceram de suas origens, por isso tanto insisto nessa chave de leitura de internacionalização-despolitização (Obs: e aqui poderia acrescentar mencionar outra de hiper-individualização e “teologia da prosperidade” neopentecostal, embora não arriscarei desenvolvê-la; assim como talvez fique para outra oportunidade tentar desenvolver o que a boleiragem “canarinha” pensa sobre democracia e liberdade de expressão diante dos usos seletivos que faz dos valores conforme a conveniência de cada situação e de cada interlocutor).

Ora, se para muitos não é fácil usar questões sociais e políticas como entrada para lidar com essas polêmicas, eu ao menos uso uma questão estritamente futebolística para dar o pontapé inicial na discussão: que a auto-declarada confiança da boleiragem “canarinha” foi na verdade arrogância ao antecipar a comemoração de uma conquista já tida como inevitável (vide a foto de Neymar com um calção com 6 estrelas). Sendo que ela possui um somatório de bajulação entre seus semelhantes e desprezo a todos os demais. Vide outro blogueiro que mesmo tratando muito mais de futebol do que política vieram a nosso auxílio, Renato Maurício do Prado, ter se indignado que a FIFA promoveu uma homenagem a Pelé por conta de sua debilidade física e na qual compareceram vários ex-jogadores, exceto os brasileiros! De alguma maneira acompanhado pelo blogueiro Menon (“Bife de ouro, pensão atrasada, esquecimento de Pelé, a seleção dá nojo”) em que pela somatória de casos lamentáveis não parece sobrar nada defensável dessa boleiragem “canarinha”.

Ainda sobre a prévia da partida contra o coreanos, enquanto Neymar se preocupava em exibir seu corte de cabelo novo para seu retorno (assim como seu botox também foi mais comentado do que nunca), é então que surge o empresário Ronaldo (e pelo momento e lugar que ocupa é mais do que nunca um empresário do que um ex-jogador), em seu “stand-up de coach motivacional”. Ao justificar que o acontecimento do bife de ouro poderia influenciar pessoas que se tivessem muito esforço também teriam essa recompensa… Como diz o provérbio popular: “a emenda saiu pior do que o soneto”. Evidente que muitos recordaram sua pérola de cerca de uma década atrás que “não se faz copa do mundo com hospitais…”. Afinal, como outra breve menção teórica, a meritocracia é uma imensa farsa, vide um lixeiro ou um padeiro terem na prática relação tão desproporcional entre muito esforço, porém muito pouca recompensa. Em outras palavras foi o que disse o blogueiro Casagrande (“Brasileiro não trabalha para comer churrasco com ouro; trabalha para comer”) em seu legítimo desabafo e uma “surra” de realidade que o povo brasileiro trabalha pensando em ter 3 refeições básicas diárias.

carne de ouro
Fonte: reprodução redes sociais/Poder360

Acelerando a reconstituição dos fatos, em poucas horas a caso “bife de ouro” (em contraste pornográfico com o Brasil real da “fila do osso”) potencialmente foi esquecido diante da fácil goleada contra os coreanos e as fartas comemorações com dancinhas. E com isso reavivando narrativas de alegria nas pernas, futebol-arte, ninguém segura o Brasil, reunificar o país (zzz…). Ora, mesmo evitando falar sempre de política nesse texto, evidente que entre novembro e dezembro esteve latente na minha mente e de muitos a necessidade de reparação histórica com o julgamento e prisão de Bolsonaro logo ao deixar a presidência. Sem poder evitar misturar isso tudo cheguei nessa pérola: “o Brasil não é o país da alegria, é o país da anistia!”

“O futebol brasileiro hoje representa o Brasil oligárquico, careta e covarde e, em campo, joga como – e para – ele. Aos poucos, vamos morrer. Transformar tudo em SAF, entregar o poder a meia dúzia de Ronaldos ou de Corporações gringas com sede em Miami, e, despacito, acabar.”

De forma complementar irei tratar agora da segunda dimensão “desde baixo”, ou seja, os “torcedores” “canarinhos”. Mais do que nunca emergiu o problema de mais de uma década pelo qual se as dificuldades para formar um escrete competitivo eram imensas, já para formar uma torcida vibrante eram (e ainda são) quase impossíveis! Em um torneio em que o fora de campo ficou cheio de artificialidades, essa “start-up” de torcida que é o Movimento Verde e Amarelo (MVA) foi mais uma delas. A tal ponto de boa parte dos blogueiros não poder mais seguir com indiferença ou invisibilidade sobre o tema. Tanto é que o próprio UOL Esporte buscou dar representatividade a essa discussão com uma reportagem necessária por partir de um incômodo (ao invés de qualquer tipo de bajulação automática) e por desenvolver um paralelo parcialmente correto de apresentar os dois lados. Porém ainda insuficiente: seja por abrir um espaço de voz para as lideranças de torcidas organizadas cada vez mais ocasional e seja por incitar uma falsa polêmica com o título “Não tem negros”. Embora a conclusão dos depoimentos das torcidas organizadas é outro: de que os membros do MVA não possuem inserção no dia-a-dia das arquibancadas dos clubes. Quando digo falsa polêmica retomo a breve menção teórica que não se pode desvincular questão de cor com questão de classe e, acrescento, com questão de arquibancada. Afinal quando a questão de cor é isolada em uma bolha com um palavreado de representatividade isso a torna superficial, bastando logo a seguir uma inserção artificial de meia dúzia de negros para se afastar de um questionamento também muito superficial. Tanto é que a réplica dos próprios membros do MVA foi de uma espécie de meritocracia “torcedora” (portanto estritamente individual) pela qual fizeram sim esforços individuais para estarem ali presentes (zzz…).

Felizmente essa minha preocupação com reinserir a questão de classe junto da questão de arquibancada foi contemplada pelos blogueiros como Milly Lacombe (“Para voltar a vencer precisaremos refundar o futebol brasileiro”) e Casagrande (“A relação entre a seleção brasileira e o povo precisa mudar. Para melhor!”). Em outras palavras, mais importante do que resgatar os títulos ou esse tal vago e abstrato “futebol-arte”, é preciso resgatar esse espaço e essa função democrática do futebol, inclusive rearticulando o dentro com o fora de campo com a proximidade da torcida (seja a massa ou seja um grupo organizado) com a seleção em treinos e principalmente em partidas aqui mesmo no Brasil. E felizmente ainda mais após a derrota para a Croácia do que antes dela, como forma de tentar esboçar que, oposto ao infame 7 a 1 de 2014, alguma reconstrução deveria não ser “desde cima” (como trazer um treinador estrangeiro), mas sim “desde baixo” e, portanto, radical, no sentido de ir até a raiz.

Avançando nas camadas para desbravar do superficial ao mais profundo dessa entidade, felizmente emergiu aqui mesmo no Ludopédio uma análise que busca entende-la desde dentro e suas relações de bastidores com outras entidades. O título de Alexandre Meirelles é por si só sintomático e deve ser reproduzido na íntegra: “O Movimento Verde e Amarelo: uma nova forma de elitismo ou a Seleção Brasileira tem a torcida que merece?”. Sua pesquisa revelou que a MVA é herdeira de atléticas universitárias e criticou que nelas tradicionalmente o esporte serve como fachada à frente do entretenimento. Assim como pega emprestado do dia-a-dia dos clubes apenas a fachada de sócio-torcedor enquanto um “serviço de vantagens” em que basta pagar para acessar. Tanto é que aparenta ser um movimento maior que na última Copa do Mundo de 4 anos atrás ao ter aumentado suas fontes de financiamento através de grandes empresas e grandes “influencers” e, portanto, de membros. Ao dar ênfase na chave de leitura entre futebol e política, ele constata que não é uma organização bolsonarista, embora com grande afinidade eletiva com sua despolitização.

Movimento Verde e Amarelo
Fonte: reprodução

A partir de agora para o desfecho irei escalar em campo dois historiadores junto dos blogueiros citados antes. Irei juntar elementos implicitamente em comum entre esse último texto de Alexandre Meirelles e outro texto de Fábio Barbosa: “A globalização estragou nosso futebol – e o neoliberalismo, os jogadores”.  Ambos com a imensa contribuição diante da visão de processos mais amplos das últimas duas décadas: no futebol o êxodo do pé-de-obra (e portanto do ídolo) e sobretudo arenização elitista e na política o encontro do neoliberalismo com neofascismo. Ora, se esses dois fenômenos políticos podem encontrar expansões infinitas em redes transnacionais (como os magnatas do mundo, sejam cristãos ou muçulmanos, reunidos no Catar), mais cedo ou mais tarde surgiria como funcional uma “start-up” de torcida a favor de alguns modelos de torcer e pertencer em detrimento de outros. Do pontual ao estrutural, enquanto o primeiro afirma que o MVA sufoca outros verdes-amarelos populares, o segundo afirma que a dinâmica sociológica do século 20 de antropofagia foi radicalmente trocada no século 21 para a autofagia: ”Como fazer uma nação, quando a nossa sociabilidade está atravessada por lealdades que se fortalecem com as fraturas? Neste mundo em que não cabem as pessoas, atravessado por identidades que se alimentam das exclusões que ele produz, o que ainda nos une como país?”. O que envolve enormes e permanentes abalos na identidade nacional por estar mais excluindo do que incluindo, tal qual a geração 2002-2022 tanto faz e tanto as torna cada vez mais indistinguíveis. Em suma, mais importante do que resgatar os títulos mundiais e as grandes vitórias contra os europeus, o fundamental é resgatar a relação orgânica entre povo-torcida-seleção. Mais do que isso, indo além de um discurso saudosista vago e abstrato, é preciso refundar essa relação de forma muito mais radical do que já se atingiu mesmo nos anos dourados desse tal “futebol-arte”. Talvez à partir desse momento ganhar dos europeus a cada 4 anos felizmente já não faria mais diferença se eles deixassem de ser a nossa referência diária…

(Obs: como nota de conjuntura não tão breve e resgatando a dialética da antropofagia, encerro e encaminho esse texto logo após o velório de Pelé e a indignação de cerca de um mês atrás sobre a indiferença principalmente da geração de 2002 se confirmou e se generalizou a diversos blogueiros nos primeiros dias de 2023. O que mais uma vez confirma a máxima marxista que a realidade é o critério da verdade. Ou seja, Kaká e os demais com sua pérola que “o Brasil não respeita seus ídolos” confirma o provérbio popular que “a língua é o chicote do corpo”. E essa última menção à morte de Pelé ocorreu como um capricho do destino nos dias finais do “governo” Bolsonaro nos quais tantos artistas e ídolos morreram e não tiveram despedidas e homenagens dignas. Como Beth Carvalho, Moraes Moreira, Aldir Blanc, Flávio Migliaccio, Elza Soares, Gal Costa, Rolando Boldrin e tantos outros. E principalmente serve para lembrar que o texto tratou do Esporte enquanto uma permanente disputa entre a sobrevivência da Cultura contra a apropriação do Entretenimento. Ficando o desejo que a transição de Bolsonaro para Lula possa ser uma revigoração para torcedores-jogadores-artistas, ou um pouco dos três tudo junto e misturado, e se possível um improvável começo de superação da despolitização da boleiragem “canarinha”. Por falar em Esporte, é promissor o início de trabalho da nova ministra Ana Moser, assim como outras ministras Margareth Menezes e Sonia Guajajara, criando pontes para furar bolhas como as criticadas ao longo do texto. Além de um alívio ver os protagonistas entre futebol e política desde 2016 saindo de cena um a um: o treinador Tite e principalmente o dirigente Rogério Caboclo e claro o líder neofascista Bolsonaro).

Posse Lula
Foto: Lula Marques/Fotos Públicas
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Fabio Perina

Palmeirense. Graduado em Ciências Sociais e Educação Física. Ambas pela Unicamp. Nunca admiti ouvir que o futebol "é apenas um jogo sem importância". Sou contra pontos corridos, torcida única e árbitro de vídeo.

Como citar

PERINA, Fabio. O hexa não veio (e nem virá!): ainda sobre a despolitização (sem fim) da seleção brasileira. Ludopédio, São Paulo, v. 163, n. 18, 2023.
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