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O luto da luta do surf cearense

Fidel Machado 30 de março de 2019

Quarta-feira, 27 de março do ano corrente. O dia começa cedo, pois darei aula na disciplina Fundamentos de Antropologia e Educação Física. Na ocasião, o intuito era problematizar com os alunos sobre o preconceito, o racismo e de como tais comportamentos estão estruturados e estruturam nossas ações a ponto de normalizarmos algumas atitudes no nosso entorno. O racismo estrutural, como tema específico da aula, possui efeitos que, muitas vezes, balizam a racionalidade de muitas relações humanas.

Influenciado na canção dos compositores Seu Jorge, Marcelo Yuca, Wilson Capellette e inspirado na arrepiante interpretação da mulher do fim do mundo, Elza Soares, intitulei a aula: A carne mais barata do mercado (ainda) é a carne negra. Imagens, casos, música, esporte, experiências e tensionamentos. Atenção especial a uma máxima antropológica que nos convida a familiarizar aquilo que nos é estranho e estranhar aquilo que nos apresenta como familiar. A intensidade da aula fez com que, por horas, eu estivesse presentificado naquele espaço-tempo ainda que a temática extrapolasse e versasse sobre muros adentro e afora.

Após 4 horas naquele estado inebriante, pego o celular e subitamente sou bombardeado por mensagens no WhatsApp: “Caiu um raio na praia”; “A Luzimara morreu”; “Tá sabendo, uma atleta de surf foi atingida por um raio e morreu lá na praia que tu surfa”. A morte por mais certa que seja ainda guarda surpresas incontroláveis e evoca sentimentos diversos, muito diversos.

A praia em questão fica bem próxima à casa da minha mãe em Fortaleza-CE. Foi lá que arrisquei e insisto em arriscar algumas remadas. É para lá que sempre volto nas férias. Lá é um dos poucos lugares que me tira da cama cedo, muito cedo para surfar. A Luzimara Souza era uma surfista local, 23 anos, atleta, presença cativa em dias de onda. Atual campeã do Circuito Cearense de Surfe 2018. Havia vencido a segunda etapa do Circuito Cearense de surfe, o “Cumbuco Surf Sound” e semanas atrás, terminou em segundo lugar em outra importante competição. Uma menina que sonhava em ser da elite mundial de surf.

Surfe
Foto: Facebook/Reprodução.

No fatídico episódio, ela estava treinando para o Campeonato Brasileiro de Surf de 2019. Tive a curiosidade de ler todas as reportagens online, nacionais e internacionais que noticiaram o caso e percebi uma recorrência enfática nos títulos e no histórico de vitórias da atleta. Em uma das matérias o apresentador do programa frisa: “Morre uma promessa do surf brasileiro”. Não quero estabelecer juízo de valor sobre as reportagens, mas por trás de todos os títulos mencionados há uma série de questões problemáticas no que diz respeito às condições que essa promessa viveu. NÃO, os títulos da Luzimara não reforçam a lógica meritocrática grosseira que insiste em afirmar: “se ela conseguiu, você também consegue. Basta se esforçar”. Essa falácia é estúpida e só serve para atenuar as responsabilidades dos órgãos, federações, instituições e normalizar as desigualdades. Os títulos da Luzimara refutam e mostram, escancaradamente, a dificuldade de ser uma campeã.

A morte não se esgota em si e nos convida a pensar sobre os cuidados com relação à prática do surf em períodos chuvosos. Contudo, penso que esse episódio tem de extrapolar e ir além, pois deflagra sérias questões do surf amador e profissional no estado. Ressalto a dimensão de ter sido um acidente e, por esse motivo, a procura de culpados é infértil. Responsabilizá-la por imprudência e irresponsabilidade é leviano. A imbricada relação do ris(c)o é uma equação instigante e bastante presente no surf. A chuva, muitas vezes, provoca efeitos incríveis com as ondas e com o mar. Ninguém controla nem tampouco entende a natureza.

O fato é, inquestionavelmente, trágico. Não quero cair em clichês e discursos previamente construídos sobre a morte, o morrer ou sobre a questão de ser uma menina nova e cheia de vida pela frente. O intuito aqui é dar um passo para o lado e tentar enxergar não só o fato em si, mas alguns desdobramentos que dele podem ser evocados e problematizados.

As dificuldades que a Luzimara enfrentou para ser reconhecida e possuir renome no surf regional foram inúmeras. Com vistas a despontar no cenário nacional se submetia para continuar a alimentar o desejo de se tornar uma atleta mundial. Relatos apontam que ela vendia a premiação dos campeonatos para poder ter alguma fonte de renda e lucro com as competições. Essa ação é recorrente entre os participantes. Tal comportamento não pode ser naturalizado. A lógica interna dessa estrutura é perversa, pois os atletas pagam inscrição e, muitas vezes, não conseguem participar de determinadas etapas por insuficiência financeira. A história da Luzimara e de outros muitos surfistas amadores retrata e questiona a máxima que afirma que sonho que se sonha junto se torna realidade. Não quero advogar para a impossibilidade da concretização de alguns sonhos. Contudo, o resultado é fruto de um somatório de fatores que endossam a máxima da exceção que confirma o quão difícil é adentrar à regra.

A ausência de patrocinadores também não pode ser normalizada. O bastidor da vida de atletas como a Luzimara não é glamouroso nem tampouco atrativo. Conciliar trabalho, treinos, viagens, sobrevivência e vida é tarefa árdua e arenosa. Ademais, Luzimara carregava no corpo alguns signos estereotipados e estigmatizados perante a sociedade: mulher, surfista, lésbica, oriunda de região periférica entre outros. Como a própria atleta relatava, a dificuldade de patrocínios era alicerçada por outros fatores e critérios ilógicos que, privadamente, ainda atravessam e marcam esse cenário. Como exemplo, temos a inadequação aos padrões idealizados e buscados no modelo de surfista. No interior dessa lógica cristalizada, geralmente as mulheres são objetificadas, sexualizadas e o desempenho e a qualidade técnica perdem relevo para atributos corporais. Tal estrutura tóxica e excludente precisa ser revista para ser alterada. As características de um sistema marcado pelo patriarcado e operacionalizado pelo machismo insistem em manter alguns ideais utilitaristas de feminilidade. Pensemos não mais no surf feminino, mas no surf de mulheres no plural. Permaneçamos assim com a célebre frase de Beauvoir (1980) quando a autora faz a distinção entre gênero e sexo e profere que não se nasce mulher, mas, a partir de um caldeirão de fatores, torna-se mulher.

Sei que a temática é profunda e complexa. Sei também que, infelizmente, esse não é um problema local e circunscrito ao litoral cearense. Compreendo que dentro do sistema é impensável todos possuírem patrocínio. Contudo, o descaso com os atletas é desrespeitoso, pois a preocupação com os títulos e a cobrança são vigentes e impiedosos. Já vi atletas, na mesma praia em questão, desistirem da vida competitiva por falta de estrutura. Já ouvi relatos de outros tantos surfistas que afirmam não mais participar de competições por estarem cansados de ganhar bermudas. Hoje, em Fortaleza, há um movimento sintomático de surfistas e ex-surfistas profissionais que estão montando suas próprias escolinhas de surf para cobrirem custos e sobreviver.

Surfe
Foto: Facebook/Reprodução.

A premiação de muitos campeonatos é inferior ao próprio valor pago para participar. O lucro em cima do sonho de pessoas que, muitas vezes, não possuem condições para pagar inscrições caras é escuso. Uma desestrutura lucrativa. Uma desigualdade de chances e arrisco a dizer que o sonho de meninas e meninos se tornou moeda. A forma da morte de Luzimara nos mostra de forma crua o quão curta pode ser a vida, mas também nos mostra o quão efêmero e ilusório pode ser o sonho de um atleta.

Espero que esse episódio não se perca dentro de uma estrutura mercadológica e os órgãos responsáveis pelo surf cearense revisem a sua estrutura de campeonato, lutem pelo respeito dentro e fora da água. Ampliem a visibilidade da modalidade sem distinção de sexo e combatam determinados preconceitos camuflados de brincadeiras. A morte da Luzimara, como já mencionei, apresenta-se como um convite a revisitar a isonomia de premiação e a valorização das mulheres em modalidades hegemonicamente masculinas.

Adotemos o convite do verso e passemos a dar flores não só aos mortos, mas, sobretudo, aos vivos e assim florescer. Idolatrar depois de morta é fácil e, minimamente, oportunista. As homenagens não podem esgotar em ramos de flores, orações ou notas lançadas na mídia. Penso que a valorização do surf cearense, a legitimação e o respeito ao surf feminino são urgentes. A própria WSL (World Surf League) já se colocou como protagonista nessa temática.

Compreendo que alguns problemas mencionados são anteriores à morte da Luzimara e só agora resolvo expressar tais pensamentos. Sei também que os desejos aqui anunciados flertam com premissas, supostamente, tidas como utópicas, mas nada impede de sairmos do luto com a luta para adentrarmos na luta com o luto. Façamos da morte da Luzimara força motriz para a potencialização do surf cearense e mote para estranhar tudo aquilo que nos apresentam como familiar.


Referência:

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo, v.I, II. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Fidel Machado

Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestre em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Filosofia e Estética do Movimento (GPFEM - Unicamp).

Como citar

MACHADO, Fidel. O luto da luta do surf cearense. Ludopédio, São Paulo, v. 117, n. 35, 2019.
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