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O Maracanã como espaço de resistência e encantarias

Leandro Dias de Oliveira 20 de abril de 2023

Resenha de: Maracanã: quando a cidade era terreiro, de Luiz Antônio Simas. Rio de Janeiro: Mórula, 2021.

Para todos que gostam de futebol, especialmente aqueles que valorizam mais o talento genuíno dos craques que a disposição tática matematizada e preferem a emoção das goleadas à burocracia tática de esquemas “reativos”, “Maracanã: quando a cidade era terreiro” é um livro imprescindível. Luiz Antônio Simas, historiador que tem publicado uma série livros encantados e encantadores, mais uma vez trilha um caminho virtuoso, desconcertante e rico: ele apresenta a história do Estádio Jornalista Mário Filho, mundialmente conhecido como Maracanã, a partir da vida cotidiana do Rio de Janeiro, conjugando as mudanças no projeto de cidade (e de país) com as próprias alterações no estádio de futebol.

O Maracanã é o grande terreiro que a cidade do Rio de Janeiro inventou, vaticina o autor (SIMAS, 2021, p. 107). A cidade burguesa é marcada por conflitos territorializados, cujo planejamento visa o controle das mentes e corpos do proletariado urbano. Todavia, é na impossibilidade do controle absoluto de corpos e mentes que nasce a insubmissão festiva, a apropriação do espaço por festas, lazeres e culturas dissonantes. A festa é o espaço de subversão de cidadanias negadas, já afirmava Luiz Antônio Simas em “O corpo encantado das ruas” (2019, p. 122), e é a cultura de fresta que dribla o padrão normativo e canônico na sobrevivência urbana (SIMAS, 2019, p. 27). O terreiro é o lugar do encanto, da dança dos deuses, da cultura de síncope, dos rituais de saberes não-hegemônicos, da invenção constante da vida cotidiana. E o estádio do Maracanã, afinal, pode ser apropriado como espaço de festa, com as comemorações por uma vitória, ou espaço de contestação, com as vaias e apupos para o time que não corresponder às expectativas da torcida, conforme ensinou o saudoso Gilmar Mascarenhas (2018).

Aliás, o Maracanã, conforme remonta Luiz Antônio Simas, não foi somente o palco privilegiado de golaços de bicicleta, voleio, com drible elástico em zagueiros ou de chutes do meio-campo, nem o local de desfile de gênios da bola como Pelé, Garrincha, Rivelino, Zico ou Romário, mas também foi sede de espetáculos diversos, shows de bandas de rock, eventos gospels, católicos e de umbanda e jogos festivos de outras modalidades. O Maracanã já foi reverenciado no cinema, na música, na literatura e nas artes plásticas, assim como já foi objeto de pesquisas acadêmicas (Ver: CASTRO, 2016; FERREIRA, 2017) e até já recebeu multidões de candidatos inscritos em concursos respondendo suas questões com a ajuda de pranchetas.

Nesta verdadeira geografia da cidade, a terra-território, que é mercadificação do solo urbano e criação das engrenagens negociais de poder no espaço, cede lugar à terra-terreiro, que é o espaço das festas, dos encantos e da subversão da ordem dominante. E, neste aspecto, o Estádio do Maracanã é o gramado sagrado, o terreiro maior, o espaço das hierofanias do futebol e do próprio carioca; se os jogadores portam mantos sagrados, por conseguinte o estádio é templo, é espaço de divindade, é terreiro. O futebol é o reencanto pela subalternidade que, ao contrário do samba – nascido entre os pobres e que transbordou para as camadas mais ricas –, surgiu entre os ricos da Zona Sul carioca e percorreu o caminho inverso, atingindo as massas suburbanas. A geografia do nosso futebol é, ao final, uma grande aula de formação socioespacial do Brasil.

O livro “Entradas e Bandeiras: A conquista do Brasil pelo futebol” (Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014), escrito por Gilmar Mascarenhas, já havia nos convencido definitivamente que o futebol é capaz de explicar o Brasil. Gilmar Mascarenhas, que é inclusive homenageado e citado na obra aqui resenhada, mostra  que não somente é possível interpretar os desdobramentos históricos do mundo a partir dos últimos cento e cinquenta anos de existência oficial deste esporte, como sua prática também serve como compreensão e mesmo apelo à sociabilidade urbana em um rico e prazeroso exercício coletivo (OLIVEIRA, 2014).

Assim, “Maracanã: quando a  cidade era terreiro” remonta desde a origem do nome – que remete a maracá, espécie de chocalho na língua tupi – e a construção do gigantesco estádio de acordo com os padrões estéticos e pedagógicos do varguismo e do fascismo (SIMAS, 2021, p. 45), até as alterações atuais, que são resultado da transformação do futebol em negócio e integram a agenda de conversão da cidade do Rio de Janeiro em “balneário de megaeventos” (SIMAS, 2021, p. 176). Mobilizando autores como o geógrafo Neil Smith (1996), Simas fala em gentrificação do estádio do futebol (SIMAS, 2021, p. 187), que tenta ser disfarçada pelos jargões ecológicos – já tratamos nesta coluna sobre a construção do Maracanã Sustentável! (OLIVEIRA, 2022) –  e pela defesa da viabilidade e responsabilidade financeira, sempre tendo a população mais pobre como alvo dos cortes de gastos.

O Maracanã foi reconstruído com menor capacidade de público, com arquibancadas alongadas e mais caras e cheio de telões, sofrendo forte dessacralização. O estádio almejou se converter em um espaço disciplinar (MASCARENHAS, GAFFNEY, 2006), acompanhando o futebol moderno, que inclui a transformação das camisas dos times em outdoors e os clubes em empresas. O Estádio do Maracanã foi profanado pelo neoliberalismo tupiniquim com base em megaprojetos urbanos e corrupção desenfreada por meio de Parcerias Público-Privadas com o objetivo de surrupiarem verbas públicas, e convertido em estádio-arena. E, como dito por Luiz Antônio Simas e reforçado na apresentação do livro de Silvio Almeida – atual ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil –, estádio-arena é como a birosca de esquina transformada em boteco gourmet, como o espaço vip inserido em bloco de carnaval ou como o camarote incrustado no sambódromo, onde o espetáculo fica em segundo plano e os likes nas redes sociais são mais interessantes que o mundo em movimento.

Assim como para o Luiz Antônio Simas, o Maracanã também me parecia até recentemente desencantado. Aliás, entre o primeiro gol do Brasil na história das copas, de autoria do atacante  tricolor Preguinho, filho do ilustre Coelho Neto, e o futebol praticado atualmente pela seleção brasileira, havia o gosto amargo de uma geração paradoxalmente menos talentosa e mais abastada e famosa. Não se tratava somente do fato do Maracanã arenizado lembrar um cinema de shopping, mas pelo motivo do próprio jogo praticado por essas paragens também aparentar ter perdido um pouco de sua magia.

Mas, com a devida licença do autor, o encantado Fluminense, (bi-)campeão do Campeonato Carioca de 2023, me fez esquecer o léxico do futebol neoliberalizado, que renomeia craques como “jogadores diferenciados”, e no qual reservas são “peças de reposição”, passes são “assistências” e torcedores se tornam “clientes” (SIMAS, 2021, p. 187). No tradicional clássico que começou quarenta minutos antes do nada e que sempre faz com que os vivos saiam de suas casas e os mortos de suas tumbas (RODRIGUES, 2002), pude confirmar, com rara precisão, como o Maracanã é terreiro, é templo sagrado, é espaço de encantarias. Isso ficou perceptível na gira do futebol guerreiro e na dança encantada dos ainda meninos André e Alexsander, dos dribles arteiros e artísticos do colombiano John Arias, do desejo incansável de balançar as redes do argentino Germán Cano, da elegância magistral e dos passes desconcertantes de Paulo Henrique Ganso. Mas, no Maracanã-terreiro que nem o empreendedorismo urbano neoliberal (HARVEY, 1996 [1989]) foi capaz de profanar, são as imagens do craque Marcelo celebrando com a torcida em êxtase o seu gol e a cambalhota ao final do jogo, num capoeiríssimo movimento de contagiante felicidade do técnico-poeta-revolucionário Fernando Diniz, que confirmei o momento de sublime reencanto. Não somente o Maracanã, mas o bom futebol permanece vivo!

Referências Bibliográficas

CASTRO, Demian Garcia. “O Maraca é nosso!”: da “monumentalidade das massas” ao “padrão-FIFA” – neoliberalização da cidade, elitização do futebol e lutas sociais em torno do Maracanã. Tese (Doutorado em Geografia), Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.

FERREIRA, Fernando da Costa. O estádio de futebol como arena para a produção de diferentes territorialidades torcedoras: inclusões, exclusões, tensões e contradições presentes no novo Maracanã. Tese (Doutorado em Geografia), Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

HARVEY, David Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio (Do original: From Managerialism to Entrepreneurialism: The Transformation in Urban Governance in Late Capitalism). Espaço & Debates – Revista de Estudos Regionais e Urbanos, nº 39, São Paulo, 1996 [1989], p. 48-64.

MASCARENHAS, Gilmar; GAFFNEY, Christopher. The soccer  stadium as  a disciplinary  space. Esporte e Sociedade, v. 1, p. 1, 2006.

MASCARENHAS, Gilmar. Entradas e Bandeiras: A conquista do Brasil pelo futebol. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014.

MASCARENHAS, Gilmar. Maracanã: um rio que virou represa. Ludopédio, São Paulo, v. 104, n. 22, 2018.

OLIVEIRA, Leandro Dias de. Por uma geografia do futebol. Lições de política, economia, cidade e cultura. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 25 abril 2015, Vol. XX, nº 1118.

OLIVEIRA, Leandro Dias de. Futebol, cidade e sustentabilidade (Parte II). Ludopédio, São Paulo, v. 160, n. 4, 2022b.

RODRIGUES, Nelson. O profeta tricolor: cem anos de Fluminense. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

SIMAS, Luiz Antônio. O corpo encantado das ruas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.

SIMAS, Luiz Antônio. Maracanã: quando a cidade era terreiro. Rio de Janeiro: Mórula, 2021.

SMITH, Neil. The New Urban Frontier: Gentrification and the Revanchist City. Londres/ Nova Iorque: Routledge, 1996.

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Leandro Dias de Oliveira

Graduado, mestre e doutor em Geografia e pós-doutor em Políticas Públicas e Formação Humana. Professor Associado II do Departamento de Geografia da UFRRJ, campus-sede, e docente dos quadros permanentes do Programa de Pós-Graduação em Geografia e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Humanidades Digitais. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, Nível 2, e Jovem Cientista do Nosso Estado, FAPERJ.

Como citar

OLIVEIRA, Leandro Dias de. O Maracanã como espaço de resistência e encantarias. Ludopédio, São Paulo, v. 166, n. 20, 2023.
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