16.4

O milagre de Santana – Luanda, Angola

O estádio 11 de Novembro, construído para o Copa da África (CAN) 2010, é um primor do modernismo mas bilheteiras é coisa em que não pensaram. Pelo menos não hoje, dia da partida Angola-Malawi, primeira-mão da eliminatória de qualificação para a fase final do CHAN. Há um espaçoso parque de estacionamento, câmaras de vigilância e detector de metais à entrada mas bilhetes só a avulso. Assim, somos obrigados a mergulhar no mercado negro. Aconteceu o que esperava – ainda nem tínhamos visto a bola e já nos tinham “enfiado dois barretes”. Primeiro, percebemos que todos os bilhetes são trocados à porta por uma senha para poderem ser vendidos de novo. Depois, demos conta que comprámos as entradas de 700 kuanzas (quase 7 euros) e não as de 300 (quase três euros) desnecessariamente. Tudo  porque o vendedor nos disse que as mais caras eram para a porta mais próxima quando, na verdade, as secções do piso inferior são todas elas acessíveis por qualquer porta. 2-0, sem esboçar reacção.

Foto: João Henriques.

Entrámos com 30 minutos de jogo e 0-0 no marcador. Como os sectores centrais estavam lotados, a polícia mandou-nos para um dos topos onde, felizmentedr, se encontrava a entusiástica claque dos “Palancas Negras”. Dei uma primeira olhada pelo estádio – bandeiras nacionais e tarjas com a cara do presidente José Eduardo Dos Santos adornam as cabeceiras. 20 mil pessoas preenchem as cadeiras amarelas e torcem pela selecção rossonera. Estava tão perdido a olhar para a atmosfera que nem me apercebi do golo do Malawi até ver a bola no centro. Ninguém emitiu um pio. Pergunto ao meu vizinho do lado: parece que foi de cabeça e que o Joca não estava a marcar o Nyirenda, autor do golo. “Paciência. Já damos a volta”, incentivei.

Foto: João Henriques.

E o meu vizinho até podia ter acreditado nos meus dons premonitórios, não fora David desperdiçar uma grande penalidade nos últimos segundos da primeira parte. “É na segunda parte”, pensei, enquanto um velho atrás de mim gritava repetidamente: “David, és uma merda!”. Durante o intervalo, dei uma volta pela bancada. Junto a mim, estava um chinês com uma máquina fotográfica a disparar o flash indiscriminadamente em todas as direcções. Perguntei-lhe se era jornalista. Respondeu-me que não. Participou na construção do estádio e agora não se cansa de fotografa-lo. Mais á frente, na chefia de claque, deparei-me com três personagens que, tal como no jogo a que assisti em Kinshasa, se encarregam de toda a animação do público da selecção. Um usa uma máscara de ninja vermelha que só lhe deixa visíveis os olhos e o nariz e tem o corpo da largura de um tronco de árvore. Chama-se “Godzilla” e o seu número consiste em soltar grunhidos assustadores e fazer baloiçar os peitorais musculosos. É o mais famoso adepto da selecção. Ao seu lado, está um homem mais idoso com o corpo integralmente pintado de branco e a região púbica coberta por um género de saca de batatas enredilhada. Abana na mão direita um raminho de kissava – planta da mandioca – e murmura palavras mágicas. Quando um jovem se aproxima para falar com ele, um adulto grita-lhe: “Não incomodes. Não vês que estás a tirar a sorte”. Calculei que fosse o feiticeiro. O terceiro cromo desta alegre caderneta era o mais agitado. Vestido de polícia sinaleiro, com pança falsa, óculos sem lentes e um grande chapéu vermelho, tentava com um apito levar a multidão ao êxtase. E conseguiu….no início da segunda parte o público não parou de empurrar a equipa para o empate.

Foto: João Henriques.

Foto: João Henriques.

Os adeptos angolanos são estranhos. Adoram futebol e a selecção mas não marcaram a sua presença na fase fina do CAN, no passado mês de Janeiro. Sobre isso, temos obtido balanços contraditórios. Akwá e outras figuras mais próximas do poder disseram-nos que o CAN trouxe visitantes e melhoria de infra-estruturas. Uma jornalista e muitas outras pessoas disseram-nos que não havia adeptos, que a organização teve de abrir as portas para ter estádios compostos e que agora os recintos estão ao abandono. Hoje tenho uma demonstração de entrega dos fiéis dos Palancas.

Foto: João Henriques.

Do lado onde me encontrava, o esquerdo do ataque angolano, um jogador quebrava a um ritmo estonteante os rins dos adversários. Ostentava o número 7. De cada vez que a bola lhe chagava aos pés, gingava para a esquerda, gingava para a direita e metia a bola para a frente deixando o defesa estatelado no chão com dores na espinha. Outras vezes, era travado com veemência em falta. Pudera…mas quem é este craque?  “É o Job e joga no Petro. Fala-se que vai para Portugal”, esclareceu-me outro vizinho de bancada. “Se o Job continuar assim, o golo vai surgir”, respondi-lhe. E o Job tentava, cruzando consecutivamente para a cabeça dos avançados. Mas, caprichosamente, a bola recusava-se a entrar. O sufoco era tanto que as bancadas se transformaram numa pista de discoteca. Interessante esta faceta do povo angolano; quando está entusiasmado, não salta nem bate palmas – dança. É frequente observar um adepto estático que, de repente, quando a equipa faz uma boa jogada, dá dois ou três passos de kuduro. Pára mais um bocadinho…e volta a carga com mais um show de semba. Assim, o jogo inteiro.

Foto: João Henriques.

92 minutos. O jogo aproximava-se do fim. Pela primeira vez, senti a esperança no empate desvanecer. Desesperados, os angolanos bombeavam a bola para a área do Malawi. Até que um dos defesas faz um passe rasteiro longo para a corrida do avançado Santana Carlos. Este vence a corrida contra o central malawiano e, já dentro da grande área, rodopia, colocando a bola com o pé esquerdo junto ao poste, no canto inferior direito. Golo! Subo para cima de uma cadeira para assistir à festa. A multidão contorce-se de júbilo como se estivesse a sofrer um ataque epiléptico. Abraçam-se desconhecidos, soltam-se os neros contidos e aproveita-se para bailar mais um pouco. As minhas previsões falharam e o golo só surgiu quando já nem eu esperava. O golo no último minuto é o grau máximo de adição de um adepto de futebol. Funciona como uma mão milagrosa que nos arranca do fundo do mar quando nos estamos prestes a afogar e nos aplica uma injecção de dopamina, que nos ergue até ao clímax sensorial.

Tiago Carrasco, João Henriques e João Fontes foram de Portugal à Àfrica do Sul no projeto Road to World Cup. Foi mantida a grafia original, de português de Portugal.
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Tiago Carrasco

Tiago Carrasco é jornalista e tem 34 anos. Publicou dois livros, centenas de reportagens nos mais prestigiados órgãos de comunicação social portugueses e é autor de dois documentários. Em 2013, ganhou o Prémio Gazeta Multimédia, da Casa de Imprensa, com o projecto "Estrada da Revolução". Com uma carreira iniciada em 2014, tem assinatura em trabalhos exibidos pela TVI e RTP, e impressos pelo Expresso, Sábado, Sol, Record, Notícias Magazine, Maxim e Diário Económico, para além dos alemães Die Welt e FAZ. Em 2010, desceu o continente africano de jipe num projecto que daria origem ao livro "Até lá Abaixo" (na terceira edição) e a um documentário com o mesmo nome. Em 2012, fez a ligação terrestre entre Istambul e Tunes durante a Primavera Árabe, que originou o livro "Estrada da Revolução" e o documentário homónimo. Foi responsável pelos conteúdos do documentário "Brigada Vermelha", sobre a luta de um grupo de adolescentes indianas pelos seus direitos enquanto mulheres. Cobriu importantes eventos internacionais como a guerra civil na Síria, o pós-revolução no Egipto, Líbia e Tunísia, o Mundial de futebol em 2010, a anexação da Crimeia por parte da Rússia, o referendo pela independência da Escócia, o movimento de independência da Catalunha, a crise de refugiados na Europa e a crise económica na Grécia e em Portugal. Muito interessado em desporto, esteve presente no Mundial'2010 e no Euro'2016 e já entrevistou grandes figuras do futebol: Eusébio, Madjer, Paulo Futre, Rivaldo, Deco, Roger Milla, Abedi Pelé, Basile Boli, Ricardo, Abel Xavier, Scolari, Chapuisat, Oscar Cardozo.

Como citar

CARRASCO, Tiago; HENRIQUES, João; FONTES, João. O milagre de Santana – Luanda, Angola. Ludopédio, São Paulo, v. 16, n. 4, 2010.
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