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O Napoli campeão é a vitória do dionisíaco

Jorge Santana 22 de maio de 2023

A Sociedade Esportiva Napoli sagrou-se campeã do campeonato italiano de futebol temporada 2022-2023, uma campanha para lá de encantadora, após três décadas de insólito jejum de títulos. Uma festa sem tamanho, sem fim e sem ordem tomou conta das ruas, repletas de citadinos celebrando efusivamente. Alguns dizem que o título é um presente dos céus de um semideus ou até Deus que dá nome ao estádio. 

Nápoles é a cidade astral mais importante da Península Itálica, contudo marcada pelo estigma e pelo imaginário negativo propagado pelas cidades nortistas como Milão, Turim, Florença, entre outras. Ao pensar em Nápoles, pensamos mais na Camorra (máfia) do que nas belas praias, mais na pobreza do que na vitalidade do povo napolitano, mais na suposta desordem do que na Universidade de Nápoles (sétima mais antiga da Europa). As marcas do preconceito propagado pelo Norte são pegajosas e apagam aquilo que a metrópole banhada pelo mar Tirreno tem de melhor. Nessa visão discriminatória, os sulistas são supostamente poucos afeitos ao trabalho, preguiçosos, festeiros, emotivos, desordeiros e ignorantes, enquanto os nortistas são trabalhadores, racionais, ordeiros e civilizados.  

Nápoles e Monte Vesúvio
Nápoles e Monte Vesúvio. Foto: valipatov/Depositphoto.

O filósofo Friedrich Nietzsche desenvolveu uma concepção dual do mundo a partir da filosofia e da mitologia grega, em que o mundo se divide em razão/ordem/equilíbrio (apolíneo) e prazer/desordem/paixão (dionisíaco), o primeiro representado a partir do Deus grego Apolo e o segundo pelo Deus Dionísio. Na prática, pode-se aplicar essa divisão do filósofo na divisão racista da Itália em que os nortistas detêm as características do apolíneo e os sulistas as características do dionísico – claro, os segundos com características negativas. 

Entretanto, preconceitos regionais não são apenas uma dádiva negativa da Itália, mas também de outras nações. Como no Brasil a abjeta discriminação que os “sudestinos ” praticam contra os nordestinos ou nos Estados Unidos em que os ianques do Norte gozam e insultam os sulistas. Quase todo país tem uma região que é vítima de preconceito.

As desigualdades econômicas e sociais existem em todos territórios ou nações (ou comunidades imaginadas como nomeou o historiador Benedict Anderson), pois nenhum país é homogêneo. Entretanto, tais desigualdades não podem estar à serviço do preconceito e do racismo. Em 2023, na partida Milan X Napoli, pelas quartas de final da Champions League, os torcedores milaneses ergueram uma faixa com os dizeres ” Água e Sabão ” insinuando que napolitanos são porcos e não tomam banho. Outra faixa tinha a seguinte mensagem: “Mais títulos do que dedos” acusando os napolitanos de terem mais títulos nacionais (2 títulos) do que dedos nas mãos. Alguns cânticos dizem que seria ótimo o Vesúvio (vulcão nas redondezas de Nápoles) entrar em erupção para varrer os napolitanos da terra. Um dos cânticos contra a torcida do maior time do Sul da Itália diz:

Sintam o cheiro

Até os cachorros fogem 

Estão chegando os napolitanos 

Os coléricos 

Filhos do terremoto

Quase nunca se lavaram com sabão 

Merda de Napoli

O preconceito aberto contra os italianos do Sul faz com que compreendemos melhor um episódio marcante do futebol mundial. Na semifinal da Copa do Mundo 1990, enfrentaram-se Itália e Argentina, no estádio de Nápoles, parte dos napolitanos torceram pelas sul-americanas, devido a Maradona – pois a Azzurra, apesar de ser a seleção nacional, é aquela que os torcedores xingam os sulistas. Nesse sentido, torcer por Diego Armando, pela Argentina, era torcer pelo homem que liderou o triunfo do primeiro título de um clube ao Sul de Roma, o impávido Pibe que amassou milaneses, florentinos, genoveses, etc. 

No verão de 1984, quando Diego estreou pelo time napolitano, logo entendeu que não era apenas futebol. Porque em uma partida no Norte do país deparou-se com uma faixa direcionada a sua equipe com as seguintes palavras ” Bem-vindos à Itália “. Segundo o eterno ídolo argentino, ali ele soube que eram os racistas do Norte contra os pobres do Sul, era luta de classes e de identidade regional que tinha como uma das arenas de combate os gramados.

O primeiro caneco nacional não poderia ter outro protagonista que não fosse Dieguito, que trazia em seu sangue o espírito de um garoto de vila portenha (menino de favela). Maradona era boquirroto, falador, sanguíneo, polêmico, exagerado, emotivo e extremamente dionisíaco. Como disse o velho escritor Eduardo Galeano “Diego é o mais humano dos Deuses” e tomo a liberdade para acrescentar o mais napolitano das divindades. Os sulistas encontraram nele um Brancaleone para comandar a esquadra napolitana que, pela primeira vez, abateu os elitistas do Norte e levou a taça para o Sul. Para Itália negada pelos Italianos. A festa realizada na cidade, nunca antes vista no país, ficou conhecida como “a louca tarantela”.

Napoli
Nápoles, Itália – 5 de maio de 2023: Os torcedores do time de futebol de Nápoles celebram a vitória do campeonato italiano na rua. Pessoas eufóricas se reúnem nos bairros espanhóis em frente ao mural de Maradona. Foto: Polifoto/Depositphoto.

A história, como gosta de brincar e surpreender, traz novamente um protagonista do Sul global para liderar a esquadra italiana em mais um triunfo. O nigeriano Victor Osimhen de apenas 24 anos. Um jovem atacante versátil, com faro de gol apurado, que não foi apenas o melhor jogador do Calccio como o artilheiro. Para azar dos racistas do Norte sempre afeitos a defender a deportação dos africanos que chegam em condições trágicas nas praias italianas em busca de refúgio.  

Esse ano, os ricos times do Norte sucumbiram diante do Napoli, liderado por um nigeriano. Ou seja, o prazer venceu a razão, a pólis dionisíaca sublevou os apolíneos nortistas. Se o Sul está feliz, a festa está garantida, ” a louca tarantela ” é reeditada para celebrar uma vitória contra o racismo, o preconceito e a discriminação. Fogos irrompem na noite escura de Nápoles, que iluminada vira dia, Dionísio se deleita com garrafões de vinho a beira do Vesúvio, que repousa tranquilo, Maradona celebra no céu e Victor Oshimen é coroado em terra. O Napoli campeão é sempre dionisíaco.

“Havia uma bola ao pé da estátua de Dante e o tritão da fonte vestia a camisa azul do Nápoles. Havia mais de meio século que o time da cidade não ganhava um campeonato, cidade condenada às fúrias do Vesúvio e à derrota eterna nos campos de futebol, e graças a Maradona, o sul obscuro tinha conseguido, finalmente, humilhar o norte branco que o desprezava. Campeonato atrás de campeonato, nos estádios italianos e europeus, o Nápoles vencia, e cada gol era uma profanação da ordem estabelecida e uma revanche contra a história. Em Milão odiavam o culpado desta afronta dos pobres que deixaram seu lugar, chamavam-no presunto cacheados.” GALEANO, Eduardo.  Futebol ao sol e à sombra. LM& Pocket.

Fonte:

Podcast Copa Além da Copa – Nápoli: a cidade, o time, o Maradona, o novo-scudetto- Copa Além da Copa #61

 

Este texto foi originalmente publicado no Blog Comunicação, Esporte e Cultura.

 
 
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

SANTANA, Jorge. O Napoli campeão é a vitória do dionisíaco. Ludopédio, São Paulo, v. 167, n. 23, 2023.
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