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O papel das torcidas no atual cenário social e político brasileiro

Introdução

As torcidas são as grandes protagonistas do nosso futebol. Se não fosse assim, não seriam tão visadas pelas câmeras de televisão e pelas lentes dos fotógrafos, tanto nos momentos de festa nos estádios, ou quando estão envolvidas em alguma situação de conflito.

Recentemente ganharam mais visibilidade, na medida em que se envolveram em atos políticos. Manifestações políticas das Torcidas Organizadas sempre existiram, mas se evidenciaram a partir de 2013, diante dos protestos contra a realização da Copa do Mundo de Futebol em 2014 no Brasil, se estendendo diante dos fatos que ocorreram no país em 2016, que articularam e executaram o golpe contra o governo  da Presidenta Dilma Rousself. No ano de 2022, o protagonismo político ganha ainda mais espaço, na medida em que algumas torcidas organizadas, em viagens de ônibus para verem seus clubes jogarem em outros estados, foram responsáveis pelas ações que desmontaram os bloqueios realizados nas estradas brasileiras por grupos que não aceitavam a vitória do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais realizadas em outubro desse mesmo ano. Os atos dos grupos de furar os bloqueios em diferentes estradas do país, chamaram a atenção e inúmeros vídeos foram postados nas redes sociais, em especial, Instagram e Twitter, e consequentemente, milhares de comentários, compartilhamentos e curtidas ocorreram.

Esse esporte, desde seu aparecimento em nossas terras enquanto espetáculo, nos primeiros anos do século XX, causou interesse à população, sobretudo das maiores cidades (Drumond, 2020; Souza Neto, 2010, Ribeiro, 2012, Couto, 2012). O que era curiosidade passou a ganhar pertencimento, gerar recursos e a pertencer indústria do entretenimento. Assim como aconteceu na Inglaterra e em outros países da Europa, em menos de duas décadas no Brasil, verdadeiras multidões passaram a acompanhar os jogos dos seus clubes de preferência.

A “febre futebol” iniciada nos primeiros anos do século XX, veio acompanhada do surgimento de clubes por todo Brasil e consequentemente, de campos e estádios. Já em 1919, por conta do Campeonato Sul-Americano de Futebol, tivemos o primeiro grande evento futebolístico registrado em nosso país, mobilizando uma multidão no recém-inaugurado Estádio das Laranjeiras (PEREIRA, 2000). Assim como em outros países, sobretudo na Inglaterra, o crescimento do interesse de público brasileiro em acompanharem as partidas de futebol foi vertiginoso e consequentemente, a necessidade de construção de estádios que dessem conta dessa demanda (MASCARENHAS, 2018).

O surgimento do termo “torcida” não é consenso. A versão mais utilizada é recuperada por Aira Bonfim (2019)[1] através de dados históricos. Afirma a autora que são as mulheres, frequentadoras dos estádios no início do século XX, as responsáveis por tal denominação. Ao serem tomadas pela emoção das partidas, torciam seus lenços e luvas e assim ficaram conhecidas como “torcedoras”.

Apesar do temo “torcidas” ser continuamente generalizado, essas agremiações têm seus sentidos, suas formas de organização e manifestação ocorrendo de formas diversas. A relação dos torcedores com o futebol vem ao longo dos tempos modificando-se, em consonância com o momento vivido. Inicialmente, a presença da mulher ou do homem em um estádio ou em um campo, para assistir uma partida de futebol, tinha como finalidade conhecer aquela novidade que aparecia, sobretudo nas cidades maiores e mais desenvolvidas. Logo, essa assistência se transforma em vínculo de pertencimento por uma determinada agremiação e consequentemente no torcer. Esse torcer, que inicialmente acontece de maneira individualizada, cambia com o crescimento do próprio futebol, em um torcer coletivizado.

As torcidas, sempre cumprindo o dever de realizarem a festa no estádio, já estiveram a serviço dos clubes, na tentativa de controle de sua gente, no caso, as memoráveis Torcidas Uniformizadas (LOPES, 2013) e também já cumpriram (e ainda cumprem) o papel de críticos dos dirigentes, reivindicando melhores elencos e resultados esperados; falamos aqui das famosas Torcidas Organizadas. Contudo, esse espectro de torcedor e torcidas é amplo, acontecendo em diversos lugares, de diversas maneiras e por diferentes grupos. O torcer se expressa desde o conhecido estádio ou nas recentes arenas, na várzea ou mesmo nos calçadões para incentivar aquele time de praia. Isso, sem esquecer da novidade, da relação torcedores e torcidas com seus respectivos clubes, também tem acontecido, de maneira intensa, através das telas dos celulares e computadores.

São, cada vez mais grupos que se constituem em torno da paixão comum por um clube e se reúnem por afinidades, objetivos e formas diversas. As transformações no mundo contemporâneo, como, as inovações tecnológicas que colocam a humanidade conectada em tudo a todo o tempo, tornando-a cada vez mais dinâmica e estas mudanças tiveram impactos também no futebol, vimos surgir outros agrupamentos de torcedores como coletivos e movimentos. Neste novo ambiente de transformações as torcidas organizadas e demais agrupamentos de torcedores ainda são parte importante da cultura do futebol nacional, entretanto, a discussão sobre seu caráter ainda continua.

Um dos estudos pioneiros no Brasil sobre assunto foi realizado por Pimenta (2000), onde o autor indica as variantes existentes nas motivações para as violências advindas das relações entre as Torcidas Organizadas no Brasil, sendo afetadas por fatores como os efeitos da má distribuição de renda, criminalidade, gozações dos adversários, falta de emprego e outras. Lopes e Hollanda (2018), apontam o processo de resistência em vários âmbitos sociais das torcidas organizadas, como a ocupação de um espaço nas novas arenas de futebol, formas de associação entre as torcidas organizadas para a defesa legal do direito de existência, tal como, a fundação da Associação Nacional das Torcidas Organizadas do Brasil (Anatorg), em 2014.

Torcida
Foto: Fabio Soares/ Futebol de Campo

De tempos em tempos, as maiores Torcidas Organizadas brasileiras, assumidamente, de pista[2], sofrem com perseguições, proibições e punições das autoridades que controlam o futebol estadual e nacional. No contexto carioca, a Força Jovem do Vasco, por exemplo, ficou banida por nove anos, desde o confronto contra Os Fanáticos do Athletico Paranaense na última rodada do Campeonato Brasileiro de 2013[3]. Já a Young Flu, foi banida em 2015 por participações corriqueiras em atos violentos em torno do futebol e por desrespeitar decisões judiciais. As Organizadas do Flamengo (Raça e Jovem) e a Fúria Jovem do Botafogo, também se encontraram punidas por pelo menos cinco anos dos estádios brasileiros, devido à confrontos ao longo dos anos.

Contudo, com a tramitação do Projeto de Lei 6.118/2022 na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), as referidas Torcidas Organizadas foram beneficiadas e autorizadas a retornarem com suas atividades nos estádios brasileiros por 60 dias pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ). A volta das torcidas foi ordenada pelas autoridades cariocas, após reuniões e negociações entre a Anatorg, os órgãos públicos e as lideranças das Organizadas em questão. Foi exigido que as cinco torcidas mencionadas realizassem um recadastramento dos seus membros e enviasse os cadastros para o MPRJ e para o Batalhão Especializado em Policiamento em Estádios (GEPE). Em conjunto com este recadastramento, suas respectivas lideranças foram pressionadas a assinarem um novo Termo de Ajustamento de Conduta (TAC)[4] que tem como finalidade, aumentar os aparatos de controle do Estado, frente às Torcidas Organizadas cariocas em questão. O que nos mostra que as autoridades em sua maioria, não acreditam em um diálogo de caráter horizontal com as organizadas, mas sim, em estratégias de repressão e criminalização frente aos membros desses grupos. O que desvaloriza a complexidade das Torcidas Organizadas, destaca apenas protagonismos negativos para esses grupos e generaliza as mesmas com análises simplistas que os colocam como violentos e baderneiros[5].

Recentemente, em 13 de março de 2023, as Torcidas Organizadas citadas foram, novamente, criminalizadas no Rio de Janeiro, onde alguns de seus respectivos representantes legais da Young Flu, Força Jovem do Vasco, Torcida Jovem do Flamengo e Raça Rubro-Negra tiveram a prisão decretada pela justiça do Rio de Janeiro[6]. A ação foi tomada como medida de punição ao evento que levou a morte uma pessoa no dia do clássico carioca entre Vasco e Flamengo. Cabe destacar que esta característica não é exclusiva do RJ, inclusive é parte de um senso comum nacional em que se busca punir a entidade, ao invés das pessoas responsáveis, pelos atos violentos.

Esta ação trouxe várias manifestações contrárias de entidades envolvidas com o futebol, ao passo, que não havia nenhuma investigação fechada a respeito dos crimes que foram utilizados como ponto de partida da ação judicial. Lopes e Prioli (2010), afirmam que, historicamente, as Torcidas Organizadas foram colocadas de fora do debate acerca da formulação de políticas públicas e leis específicas que visam diminuir/extinguir a violência no futebol brasileiro. Leis estas que tratam, especificamente, da atuação das Torcidas Organizadas dentro e fora dos estádios, por isso a importância de as mesmas serem ouvidas e colocadas em uma posição de protagonismo nas discussões das ações estabelecidas. Em nossa perspectiva acreditamos que seja necessário a criação de fóruns de discussões que envolvam toda sociedade do futebol, como as torcidas organizadas, representantes do estado, polícia, comerciantes, clubes de futebol e afins.

Assim, poderemos caminhar para a construção de políticas públicas que atendam um limite razoável entre estes entes. As modificações do estatuto do torcedor, por exemplo, poderiam ser discutidas com base na legislação específica. Percebemos a necessidade de ampliação do diálogo com as torcidas organizadas, a partir de conversas com seus membros. Há uma recorrente queixa da falta de atenção para com as reinvindicações e anseios desses grupos. [7]. A participação de diversas entidades na formação de políticas públicas sobre o torcer é necessária para auxiliar na mudança de perfil do protagonismo desse torcedor organizado. O seu protagonismo não deve ser como o de costume, o envolvimento em situações de conflito, e sim a festa que fazem nos estádios, assim como suas respectivas ações sociais. Assim haverá contribuições relevantes no desenvolvimento do futebol nacional.

Notas

[1] Disponível em: https://www.torcedores.com/noticias/2019/09/torcer-origem-palavras-futebol. Acesso em: 26 mar. 2023.

[2] Categoria nativa utilizada para nomear aqueles torcedores que possuem pré-disposição para confrontos contra rivais.

[3] Para mais detalhes, ler: https://ludopedio.org.br/arquibancada/os-fanaticos-x-forca-jovem-do-vasco-um-confronto-que-marcou-o-campeonato-brasileiro-de-2013/.

[4] Disponível em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2022/10/30/liberdade-pra-torcer-torcidas-organizadas-voltam-aos-estadios-no-rj.htm. Acesso em: 27 mar.2023.

[5] Para mais detalhes, ler: LOPES, Felipe Tavares Paes. Dimensões Ideológicas do debate público acerca da violência no futebol brasileiro. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, São Paulo, v. 27, p.597-612, out-dez. 2013.

[6] Disponível em: https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2023/03/14/chefes-de-torcidas-organizadas-do-rio-que-tiveram-prisao-temporaria-decretada-sao-considerados-foragidos.ghtml. Acesso em: 26 mar.2023.

[7]Pesquisa em desenvolvimento pelo Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas com financiamento do Projeto Academia e Futebol do Ministério do Esporte.

Referências

COUTO, Euclides de Freitas. Os primórdios do futebol em Belo Horizonte: Aspectos do pertencimento clubístico (1908-1927), in: O futebol nas Gerais / Silvio Ricardo da Silva, José Alfredo de O. Debortoli, Tiago Felipe da Silva, organizadores. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. (pág. 111-128).

DRUMOND, Maurício. “Entre Políticos e Paredros: as relações políticas do Futebol Brasileiro na primeira metade do século XX”.  O Futebol nas Ciências Humanas no Brasil / organização Sérgio Settani Giglio e Marcelo Weishaupt Proni. – Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2020. (pág. 44-61).

LOPES, Felipe Tavares Paes. Dimensões Ideológicas do debate público acerca da violência no futebol brasileiro. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, São Paulo, v. 27, p.597-612, out-dez. 2013.

LOPES, Felipe Tavares Paes; HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. “Ódio eterno ao futebol moderno”: poder, dominação e resistência nas arquibancadas dos estádios da cidade de São Paulo. Tempo, v. 24, 2, p. 206–232, maio 2018.

LOPES, Felipe Tavares Paes; CORDEIRO, Mariana Prioli. Torcidas organizadas do futebol brasileiro: singularidades e semelhanças com outros grupos de torcedores da América do Sul e da Europa. Revista Espaço Acadêmico, Maringá, n. 104, p. 75-83, jan. 2010.

MASCARENHAS, Gilmar. Um jogo decisivo, mas que não termina: a disputa pelo sentido da cidade nos Estádios de futebol. Cidades, Volume 10, Número 17, 2018. p.142-170.

PEREIRA, Leonardo. A. M. Footballmania – Uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

PIMENTA, Carlos Alberto Máximo. Violência entre torcidas organizadas de futebol. São Paulo em Perspectiva, v. 14, n. São Paulo Perspec., 2000 14(2), p. 122–128, abr. 2000.

RIBEIRO, Raphael Rajão. O futebol em Belo Horizonte e a constituição do campo esportivo (1904-1921) in: O futebol nas Gerais / Silvio Ricardo da Silva, José Alfredo de O. Debortoli, Tiago Felipe da Silva, organizadores. – Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012, pág. 91-110.

SOUZA NETO, Georgino Jorge. A invenção do torcer em Belo Horizonte: da assistência ao pertencimento clubístico (1904 – 1930). Dissertação (Mestrado em Lazer) – Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010.

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Danilo da Silva Ramos

Secretário do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Estudos do Lazer - PPGIEL da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional - EEFFTO da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG desde 2017 e mestrando deste mesmo programa (turma 2020). Concluiu o ensino médio no Colégio Estadual Américo Pimenta (2006). Possui graduação em Licenciatura em História pelo Centro Universitário Geraldo di Biase - UGB (2011), Membro dos Grupos de Pesquisa: História do Lazer (HISLA), Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Raça/Etnia e Sexualidade (NEPGRES) e Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT).

Fábio Henrique França Rezende

Bacharel em Educação Física pela Universidade Federal de Minas Gerais. Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do Grupo de Estudos em Sociologia e Pedagogia do Esporte e do Lazer (GESPEL/UFMG). Membro do Grupo de Estudos Sobre Futebol e Torcidas (GEFUT/UFMG).

Como citar

RAMOS, Danilo da Silva; REZENDE, Fábio Henrique França. O papel das torcidas no atual cenário social e político brasileiro. Ludopédio, São Paulo, v. 166, n. 14, 2023.
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