Uma das marcantes recordações que tenho do mítico estádio do Club Atlético Boca Juniors, La Bombonera, localizado na antiga zona portuária de La Boca, em Buenos Aires, é a de muito papel picado e serpentina no campo de jogo. Era uma partida entre os donos da casa e o Cruzeiro Esporte Clube, pela Copa Libertadores da América, em 1977. Tive a impressão de que Raul Plassmann, o arqueiro celeste que defendia a meta com camisas amarelas, fora atrapalhado, em um dos gols dos xeneizes, pelos papéis espalhados na grande área. A Raposa vencera a competição no ano anterior, mas o bicampeonato não foi possível. Superados em Buenos Aires, os mineiros deram o troco no Mineirão, com golaço do lateral-direito Nelinho, mas perderam a disputa de pênaltis disputada logo depois do empate no terceiro jogo, em Montevidéu.

La Bombonera
Estádio La Bombonera. Foto Wikipedia.

Vencer no Estádio Alberto J. Armando, como é oficialmente chamada la cancha do Boca, é missão das mais difíceis. Que o diga Pelé, o maior de todos, segundo o qual a partida mais difícil de sua vida teria sido lá, na conquista da segunda Libertadores pelo Santos, em 1963. Ou ainda o mais que eficiente Corinthians de Tite, o de 2012, tremendamente pressionado, principalmente no segundo tempo, por um time que não estava à altura dos melhores momentos do clube. Os que assistíamos ao jogo pela televisão estávamos satisfeitos com a derrota parcial pelo placar mínimo, já que ainda havia o segundo jogo da final da Libertadores, no Pacaembu. Mas, como se sabe, o passe de Emerson Sheik encontrou Romarinho, que recém entrara em campo para, em seu primeiro toque na bola, superar o goleiro Orion. O jovem atacante corintiano teria pouco antes da partida dito ao olheiro Mauro, que o indicara ao clube, que não era assim tão difícil jogar em Buenos Aires, se comparado com as partidas da segunda divisão paulista, já que ao menos havia segurança e bom gramado. No jogo de volta, o primeiro título continental do Timão. Ao final do ano, o Mundial.

PaysanduSC
Escudo do Paysandu Sport Club. Fonte: Wikipedia.

Pois bem, em 2003 um time do Norte do país conseguiu o que o alvinegro paulista não alcançara, e o que o Santos do Rei e de seus príncipes lograra com muitas dificuldades. O Paysandu Sport Club, de Belém, fez o que parecia impossível, ao derrotar o Boca, por um a zero, em La Bombonera, em jogo pelas oitavas-de-final pela Libertadores. Na partida de volta, não foi possível segurar o time em que despontava um jovem atacante, depois mundialmente famoso, Carlitos Tévez. Com o então menino nascido na Villa Forte Apache, uma das comunidades mais violentas de Buenos Aires, no banco, o Papão da Curuzu teve em Buenos Aires dois jogadores expulsos, antes que fizesse seu gol. Iarley recebeu no flanco esquerdo da área, tirou dois zagueiros com uma virada de corpo e arrematou sem chances para o bom arqueiro Abbondanzieri. A incrível façanha emudeceu o barulhento alçapão bonaerense e surpreendeu meio mundo. Na verdade, surpreendeu o mundo inteiro que soube do resultado.

O futebol do Norte sempre fora para mim uma realidade distante. Quando criança, lia na revista Placar uma ou outra notícia sobre as equipes paraenses, escutava os resultados dos times locais, em meio às transmissões dos jogos dos times do Sul. Sabia das agremiações mais fortes, a Tuna Luso e o Remo compondo com o Paysandu o trio de adversários, algo não tão comum para um país no mais das vezes acostumado a rivalidades entre dois clubes. Do esporte no Pará eu conhecia a trajetória do meio-fundista Agberto Conceição Guimarães, medalhista pan-americano e finalista olímpico duas vezes. Contra ele eu disputaria uma semifinal de Troféu Brasil de Atletismo, no complexo ano de 1986.

O Paysandu vencera a Copa dos Campeões do Brasil, habilitando-se para a inédita participação internacional. Pela televisão eu acompanhara o time bem organizado, que jogava de forma compacta, à época treinado por Givanildo Oliveira – ele, aliás, havia sido um de meus ídolos do Corinthians vice-campeão brasileiro de 1976, jogando como volante. A hipótese era, no entanto, que o time de Belém, agora sob a direção de Darío Pereyra, faria figuração na competição sul-americana. A presença, por si só, já era gloriosa. Não foi assim, e o time venceu a fase de grupos, caindo apenas diante do poderoso Boca, que derrotaria o Santos para ser campeão.

No triunfo do Paysandu um jogador me impressionou muito. Iarley foi o nome do jogo em Buenos Aires, atuando com coragem e tendo feito o gol da vitória. Depois de tal performance foi atuar no próprio Boca Juniors, onde envergou a camisa dez que fora de Diego Maradona e também de Juan Román Riquelme – que voltaria a envergá-la anos depois. Na final da Copa Intercontinental daquele 2003, contra o poderoso Milan de Maldini, Kaká, Cafu, Dida e Pirlo, o brasileiro ajudaria seu time a chegar ao título. O atacante repetiria a dose pelo Internacional de Porto Alegre em 2006, desta vez no Mundial da Fifa. É notável a trajetória desse cearense com apenas uma convocação para a seleção brasileira, sem que tenha jogado. Dois mundiais entre muitos títulos, com direito à passagem, ainda muito jovem, pelo Real Madrid. E gol da vitória em La Bombonera.

Se o futebolista daqueles dias foi Iarley, um torcedor talvez tenha sido o exemplo marcante daqueles sentimentos que geralmente experimentamos apenas uma vez na vida. Seu Antônio, já entrado em anos, havia vibrado pela vitória na frente da televisão de vinte e quatro polegadas, mas não houve jeito de conseguir ingresso para o segundo jogo, três semanas depois da façanha na capital argentina. Ele não titubeou. Subornou um vendedor de picolés e entrou como se fosse tal, logo devolvendo o pesado isopor ao jovem que pulara o muro do estádio. A derrota por quatro a dois não apagou o brilho dos olhos naquela noite, tampouco agora, quinze anos depois, quando os filhos relembram a aventura. Walter Benjamin ensina que, sim, é possível reviver uma experiência, como recordação e narrativa. E com o mesmo prazer.

Torcedores do Remo, o grande rival, e da Tuna Luso, hoje um time mais acanhado, podem igualmente se orgulhar do Paysandu, que segue com saudade daquela noite épica em Buenos Aires. Não é para menos.

Belém, Ilha de Santa Catarina, outubro de 2018.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. O Pará em La Bombonera. Ludopédio, São Paulo, v. 112, n. 11, 2018.
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