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O pioneirismo das mulheres no jornalismo esportivo cearense 

O jornalismo esportivo é um espaço hegemonicamente masculino, que alijou por décadas a presença feminina dos quadros profissionais dos veículos de comunicação tradicionais e alternativos. Nesse ambiente, de fortes traços histórico-culturais de machismo e sexismo, era “praticamente impossível ver mulheres no esporte até o início dos anos 1970”, como pontua Coelho (p. 34, 2003).

Esse cenário de exclusão e invisibilidade só começa a mudar a partir dos anos 1980, período que, não coincidentemente, é marcado pela revogação do decreto editado pelo então presidente Getúlio Vargas, em 1941, que proibia mulheres praticarem futebol e outras modalidades esportivas “incompatíveis com as condições de sua natureza, devendo, para este efeito, o Conselho Nacional de Desportos baixar as necessárias instruções às entidades desportivas do país”. Uma medida que perdurou por 38 anos. Argumentava-se, por exemplo, que o futebol era um “esporte violento que prejudica a maternidade”. 

E foi nesse contexto de restrições, impedimentos e preconceitos do tipo “esporte não é coisa para mulher” e “mulher não entende de futebol’’, que Elas foram, aos poucos, ocupando e marcando presença onde, até então, apenas o discurso de homens tinha vez, na programação esportiva escrita e falada. No estado do Ceará, o primeiro registro de uma mulher atuando na imprensa esportiva data do início dos anos 1980. Coube a Marilena Lima a primazia de se tornar a primeira mulher repórter esportiva do Estado. 

O caso de Marilena, contudo, foi pontual para sua época, já que a participação feminina na mídia esportiva cearense só começou a deslanchar, de fato, no final da primeira década dos anos 2000, quando outras profissionais começaram a ganhar oportunidade e destaque em veículos de rádio, TV, jornal e portal, como Manuella Viana, Débora Britto, Isabella Cavalcanti, Denise Santiago, Ana Cláudia Andrade, Ana Flávia Gomes, Germana Pinheiro e Thaís Jorge, ocupando diferentes funções no meio, sejam elas como repórteres, comentaristas, editoras/chefes de equipe e, mais recentemente, narradoras. 

Nesta coluna da Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte (ReNEme), destacamos os pioneirismos da mulher no jornalismo esportivo cearense, elencando profissionais que quebraram barreiras e influenciaram as gerações seguintes.  

a) A 1ª repórter esportiva

Marilena Lima foi repórter de esporte no início dos anos 1980. Foto: Ademar Santos.

A precursora da presença feminina na imprensa esportiva cearense é Marilena Lima, que, no início da década de 1980, fez sua estreia na Rádio Iracema, de Maranguape, como repórter esportiva. De lá, recebeu convite para a rádio Dragão do Mar, de Fortaleza, onde teve a oportunidade de cobrir jogos e treinos dos clubes cearenses, lidando em sua rotina com jogadores, técnicos, dirigentes e sendo uma exceção em meio a tantos colegas de profissão, todos homens. Em entrevista à jornalista Raísa Martins, no podcast Fora o Baile, Marilena detalhou sua passagem pelo jornalismo esportivo, que não durou muito tempo, até que sua carreira tomasse outros rumos.   

b) A 1ª editora de esportes 

Ana Flávia Gomes foi editora de esportes do O POVO entre 2013 e 2018. Foto: Reprodução/Facebook/O POVO.

Em fevereiro de 2013, a jornalista Ana Flávia Gomes fez história ao se tornar a primeira mulher editora de um caderno de Esportes dos jornais do Ceará. Em mais de cinco anos à frente do cargo de editora de esportes do jornal O POVO, Ana Flávia liderou a equipe que realizou as três principais coberturas esportivas que o veículo (de 93 anos de história) realizou até hoje: a Copa das Confederações de 2013, a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos Rio-2016. Profissional versátil, Ana Flávia fez carreira no meio esportivo ainda como repórter, apresentadora, editora de programas esportivos de TV (Grande Jornal de Esportes, Trem Bala e É Gol!) e foi colunista de automobilismo do jornal impresso. O exemplo de Ana Flávia inspirou outras profissionais a ocuparem cargos de liderança e edição, caso de Thaís Jorge (atual editora do site Globo Esporte CE) e Germana Pinheiro (hoje repórter e editora do programa Trem Bala, da TVC). Ambas trabalharam com Ana Flávia no O POVO. 

c) A 1ª bancada 100% feminina 

Isabella, Manuella e Débora, em registro de gravação com Adílson, então goleiro do Ceará.

As mesas-redondas esportivas, consagradas no rádio e na TV, são espaços historicamente ocupados quase que integralmente apenas por homens, ao longo dos tempos. Em 2006, uma nova história começou a ser escrita na imprensa esportiva cearense com o surgimento do programa de rádio Futebol de Salto Alto, composto por uma bancada 100% feminina, com três mulheres: Manuella Viana, Débora Britto e Isabella Cavalcanti. Entre 2006 e 2009, o programa passou por quatro emissoras de rádio do Ceará: Transamérica FM, Cidade AM, Tropical FM e Expresso FM. O exemplo pioneiro do Futebol de Salto Alto não é um caso isolado na imprensa local. Em janeiro de 2021, a rádio Clube AM lançou o Mulheres em Campo, também com bancada exclusivamente feminina, formada por Débora Arruda, Josie Freitas e Paula Barrosa. Também em janeiro deste ano, a rádio Assunção estreou o programa “Driblando as diferenças”, apresentado por Cristine Martins, jornalista que também atua como comentarista nas transmissões de jogos de futebol da emissora. 

d) A 1ª comentarista de TV 

Karine Nascimento em ação na sua estreia como comentarista em transmissão de jogo profissional na imprensa cearense. Foto: Reprodução

Até 2020, jogos de futebol profissional em emissoras de TV no estado do Ceará eram comentados exclusivamente por homens. Até que Karine Nascimento quebrou esse monopólio, ao atuar como comentarista na transmissão feita pela TV Jangadeiro entre Vitória e Fortaleza, na primeira rodada da Copa do Nordeste de 2020. Nos meses seguintes, ela também marcou presença em outras transmissões de jogos, tanto na TV quanto na rádio Jangadeiro Band News. Ainda no telejornalismo, vale destacar os trabalhos pioneiros de apresentação de programas esportivos e reportagem de campo de profissionais como Ana Cláudia Andrade (em passagens pela TV Cidade e Jangadeiro) e Denise Santiago (TV Diário). Ambas, seguem atuando no meio esportivo, com uma trajetória consolidada de mais de uma década de atuação profissional no jornalismo esportivo.  

 e) a 1ª narradora 

Patrícia Castro (à direita) ao lado de Paula Barroso. Foto: Arquivo Pessoal

A mais recente barreira quebrada na imprensa esportiva cearense foi na narração esportiva. Em outubro de 2021, a radialista Patrícia Castro se tornou a primeira mulher a narrar um jogo de futebol profissional no Ceará. O feito se concretizou no jogo entre Fortaleza e Guarany de Sobral, válido pela abertura do Campeonato Cearense feminino deste ano e que foi transmitida pela FCF TV, web-TV da Federação Cearense de Futebol. Apesar de recém-chegada à narração, Patrícia tem bastante experiência, onde atua há vários anos como locutora de rádio. Além disso, ela integra a equipe de transmissão da FCF TV desde que o projeto foi fundado, em 2013, ocupando anteriormente a função de repórter de campo, cinegrafista e produtora, como contou em texto recente assinado por Crisneive Silveira (2021), publicado aqui no Ludopédio.  

Considerações finais 

Trajetórias de profissionais como Marilena Lima, Manuella Viana, Débora Britto, Isabella Cavalcanti, Karine Nascimento, Ana Flávia Gomes e Patrícia Castro se destacam em meio ao ineditismo de seus feitos, mas é preciso ponderar que a presença de mulheres no jornalismo esportivo cearense (e brasileiro) ainda segue lidando com uma série de desafios, sofrendo com violência física e simbólica, sobretudo com o olhar preconceituoso, machista e sexista quanto à presença feminina no esporte. Isso, tanto por parte de muitos profissionais do meio quanto de parte considerável do público ouvinte/leitor/espectador, que, diga-se: é também formado majoritariamente por homens, pensados como público-alvo do segmento. 

Como bem observa o sociólogo inglês Eric Dunning (apud PACHECO; SILVA, 2020), o meio esportivo é marcado por práticas e discursos que produzem e reproduzem crenças e comportamentos que favorecem as masculinidades consideradas como hegemônicas frente a outros atores que interagem nesse meio. Algumas dessas práticas começam a mudar, como o claro aumento de mulheres narrando, reportando, comentando e chefiando equipes esportivas. Mas ainda há muito no que se avançar, até que possamos falar em tratamento igualitário e equiparação de oportunidades entre homens e mulheres, de forma que fique enraizado  na mente de todos que “lugar de mulher é onde ela quiser”. 

Referências

COELHO, Paulo Vinícius Coelho. Jornalismo esportivo. São Paulo: Contexto, 2003. 

PACHECO, Leonardo Turchi; SILVA, Silvio Ricardo da. Mulheres e jornalismo esportivo: possibilidades e limitações em um campo masculino. Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 28, n. 3, p. 1-14, 2020.

SILVEIRA, Crisneive. “A voz”: Patrícia Castro é a primeira mulher a narrar jogo oficial de futebol no Ceará. Ludopédio, São Paulo, v. 149, n. 28, 2021. 

 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Bruno Balacó

Jornalista, cronista esportivo e pesquisador. Doutorando em Comunicação na Universidade Federal do Ceará (UFC), mestre em Comunicação pela UFC, especialista em Comunicação e Marketing em Mídias Digitais pela Estácio e graduado em Jornalismo pela Universidade de Fortaleza. Membro do grupo de pesquisa PraxisJor (UFC) e da Rede nordestina de estudos em Mídia e Esporte (ReNEme). Pesquisa rádio e mídias sonoras, com ênfase em produções nas áreas de radiojornalismo esportivo e podcasts. Atua no mercado como jornalista e produtor de conteúdo no Grupo Cidade de Comunicação. Edita e produz o PapoCom, podcast vinculado ao Práxisjor. É editor dos livros 'Arena Castelão: templo do futebol cearense' (Fundação Demócrito Rocha - 2014) e "Leão 100 anos", o livro do centenário do Fortaleza Esporte Clube (O POVO - 2019).

Como citar

BALACó, Bruno. O pioneirismo das mulheres no jornalismo esportivo cearense . Ludopédio, São Paulo, v. 150, n. 10, 2021.
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