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O que esperar dos Gay Games em 2018?

Wagner Xavier de Camargo 5 de agosto de 2018

De 04 a 12 de agosto deste ano, ocorre em Paris, França, a décima edição dos Jogos Olímpicos Gays ou Gay Games, uma competição esportiva que se transformou de um encontro entre homossexuais e seus/suas amigos/as praticantes de esportes (nos idos de 1982) em um evento multimilionário na atualidade voltado à comunidade LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, pessoas transgêneros e outros). Planejado e executado pela Federação dos Gay Games (FGG), os Gay Games englobam múltiplas dimensões mercadológicas voltadas a este público (vestuário, arquitetura, culinária, obras de arte, concertos, etc.) e tem como carro-chefe o esporte. Na edição deste ano serão mais de 10 mil atletas, inscritos em cerca de 30 modalidades, ainda com maciço predomínio de “homens gays”, brancos, ricos e oriundos da América do Norte e Europa Ocidental. Portanto, além disso, o que esperar desta edição?

Há cerca de dez anos houve uma movimentação nos bastidores do esporte desenvolvido por pessoas LGBT+ que, discordando do alto nível de competitividade a que havia chegado os Gay Games e da exclusão de grande parte dos/as representantes da sigla LGBT+, propôs um evento único, que mesclasse os dois grupos globais naquele momento e os encarregasse do “futuro” das competições esportivas das minorias sexuais e de gênero. FGG e GLISA (Associação Esportiva Internacional de Esportes para Gays e Lésbicas) planejariam e executariam o que foi denominado “One Quadrennial Event”, que ocorreria, justamente, em julho de 2018 (1QE 2018). A proposta veio da GLISA, que surgira anos antes a partir da divergência de ideias com a FGG. Entre as principais medidas estavam aumentar a visibilidade e a representatividade de lésbicas, pessoas trans, bissexuais, queer ou não-binárias nos jogos e, de quebra, refletir objetivamente sobre formas outras de práticas corporais e esportivas. Apesar de terem se formado 24 grupos de trabalho, em âmbito global, predispostos a operar mudanças no chamado “gay sport” (esporte gay), as conversações não avançaram, as animosidades aumentaram e a junção nunca se concretizou.

Folder de divulgação do 1QE Event 2018
Folder de divulgação do 1QE Event 2018

Como pesquisador desse tipo de evento desde 2006, e tendo composto um dos grupos de trabalho que tinha uma proposta diferenciada, não deixo de antever esta 10ª edição em Paris com certa apreensão. Em que pese a chamada “A world celebration of diversity” (uma celebração mundial da diversidade) em sua página da internet, é possível que a massa masculina ainda domine o evento, que lésbicas sejam invisibilizadas e que homens/mulheres-trans (agora mais visíveis socialmente do que outrora) continuem a ser discriminados e circulem às margens. O lema “Participation, Inclusion, and Personal Best” (participação, inclusão e melhor de si) vai continuar reforçando a dimensão competitiva do esporte e a aferição de suas marcas. Ao menos há dois elementos no cenário que me fazem crer que talvez algo possa ser diferente: os anfitriões do evento e alguns/mas novos/as participantes.

Do lado dos anfitriões, a federação francesa de esporte para gays e lésbicas (FSGL – Fédération Sportive Gaie et Lesbienne) fez parte das trincheiras de oposição à FGG durante muitos anos, organizando, inclusive, um seminário em Paris, em 2011, no qual trouxe várias propostas de mudança no modelo de organização esportiva, então em vigor. Como é de se observar, já no site oficial, constata-se uma aba denominada “inclusão”, na qual há o incentivo à participação de mulheres, pessoas trans, jovens, idosos e pessoas com deficiência – essas, aliás, com baixíssimo ou inexistente histórico de participação. Pela primeira vez na história do Gay Games, os franceses terão a oportunidade de conceber e executar à sua moda o evento, e isso será um potencial de mudança (futura).

De outro lado, há a participação inédita de grupos historicamente excluídos dos jogos, que sempre foram reduto de atletas do rico hemisfério norte. Indivíduos ou grupos de mexicanos, tailandeses, norte e sul-africanos, centro-americanos, argentinos e mesmo brasileiros têm participado das últimas edições, ainda de forma modesta. De maneira inédita, algumas equipes de homens gays jogadores de futebol, partícipes da nova moda (de consumo) entre esse segmento no país, estarão na França compondo o que se pode considerar uma “delegação”.[1] Como afirmaram no Facebook há algumas semanas, pela “primeira vez na história, uma delegação de atletas representará o país na competição internacional, contando com mais de 60 pessoas”. E ainda há o grupo de mulheres-trans tailandesas que jogam voleibol ou dos corredores gender queer mexicanos, que são gratas surpresas para um evento hegemonicamente homonormativo.

Gay Games em São Francisco. Foto: Reprodução.
Gay Games em São Francisco. Foto: Reprodução.

De qualquer forma, acredito que o aumento da diversidade de nacionalidades, etnias, classes socioeconômicas por meio de sujeitos que se desidentificam em relação ao gênero a eles atribuído e que possam questionar fronteiras corporais, colocam em xeque todo o sistema esportivo mainstream, indagando, particularmente, os corpos heterossexuais, hábeis e binários que habitam os esportes – e que, mesmo em uma competição como o Gay Games, ainda são tomados como referência.

Como apontei certa vez acerca da inédita experiência dos Jogos da Diversidade da Cidade de São Paulo, ocorrida em junho de 2017 (CAMARGO, 2017), não é só válido, como desejado, que a participação de representantes plurais do coletivo LGBT+, expressando-se esportivamente com vistas a celebrar a diversidade sexual a partir de múltiplas identidades de gênero, ajude a combater a homo-bi-transfobia e demonstre que o esporte não é monoliticamente heteronormativo, ou baseado numa lógica da heterossexualidade como norma. Estes corpos que saltam, jogam, nadam, chutam ou mesmo dançam não apenas são representativos da “diversidade”, como tanto se diz, mas problematizam o fenômeno esportivo em toda sua normatividade (estrutura e regras canonicamente instituídas), e abrem brechas para potenciais marginais, não-binários e não-heteronormativos, que podem nos oferecer outra visão de Jogos Olímpicos (LGBT+ ou não).

 

Referências bibliográficas

CAMARGO, Wagner X. “Jogos da Diversidade de São Paulo”. Ludopédio: São Paulo, v. 96, n. 25, 2017. Disponível em < https://www.ludopedio.org.br/arquibancada/jogos-da-diversidade-de-sao-paulo/>, acesso em 03 ago 2018.

Delegação “Espírito Brasil”. Homepage oficial. Disponível em <Paris 2018>, acesso em 01 ago 2018.

Gay Games 10: Paris 2018. Disponível em <https://www.paris2018.com/>, acesso em 02 ago 2018.


[1] A proposta foi encampada por um grupo que se designou Espírito Brasil, em cujo site se lê que “o objetivo da ‘Espírito Brasil’ é formar uma delegação brasileira representativa no Mundial da Diversidade em Paris 2018” (http://paris2018.com.br/nossas-missoes/).

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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. O que esperar dos Gay Games em 2018?. Ludopédio, São Paulo, v. 110, n. 5, 2018.
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