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O Rayo é Vallecas, Vallecas é o Rayo

Roberto Jardim 8 de julho de 2021

Depois de duas temporadas longe da La Liga, o Rayo Vallecano está de volta. O clube de Vallecas, bairro operário de Madri, garantiu, na penúltima semana de junho, o retorno na última rodada dos playoffs da segunda divisão ao vencer o Girona por 2 a 0, na casa do adversário - no jogo de ida, havia perdido por 2 a 1.

Para quem não conhece a história do Franjirrojo, vale contar que o clube é a terceira força de Madri. É o primo pobre de Atlético e Real. Mas isso pouco importa para Vallecas, a casa do Rayo, e sua torcida.

A capital e toda a Espanha sabem que o Rayo é Vallecas. E que Vallecas é o Rayo. Um não vive sem o outro. E vice-versa.

Praticamente toda a torcida do clube é de moradores do bairro. Fanáticos, eles acompanham o time como tem que ser. Nas boas e nas ruins. Aos que questionam a paixão, uma faixa que quase sempre é levada pelos bukaneros, nome da organizada, explica: “hay equipos tan pobres que solo tíenen titulos“.

Ou seja, o Rayo tem muito mais do que títulos. Tem um bairro e uma torcida que se orgulha do clube e de onde mora.

Com forte consciência de classe, esses torcedores não se cansam de se posicionar ao lado dos mais necessitados. E acabam levando o próprio clube a uma relação especial com a comunidade, dignificando a história local.

Rayo Vallecano
Foto: Reprodução Twitter

O Rayo e uma casa para Carmen

Um exemplo da relação do Franjirrojo com Vallecas e seus moradores aconteceu em 2014. Naquele ano, uma moradora de 85 anos foi despejada de sua casa no bairro.

Carmen Martínez Ayuso vivia há 50 anos na mesma moradia. Viúva, morava com o filho, que perdeu o emprego, procurou ajuda nos bancos e, sem conseguir, acabou com uma dívida de 40 mil euros nos agiotas.

Como usou a casa da mãe como garantia e não pagou o débito, ele e Carmen foram despejados, indo morar na casa da namorada do homem. As imagens do despejo judicial correram o país.

Como o clube e sua torcida são o próprio bairro, e vice-versa, porém, Carmen não ficou sem um teto. A partir de protestos dos bukaneros e de uma iniciativa do técnico Paco Jémez, que comandou o time de 2012 a 2016, o Rayo anunciou que pagaria o aluguel de um apartamento para a idosa pelo resto de sua vida.

Em apoio, os bukaneros anunciaram a realização de diversas ações de apoio. Afinal, o Rayo é Vallecas e seus moradores.

Rayo Vallecano
Foto: Reprodução Twitter

Os bukaneros contra um neonazista

Claro que a relação do Franjirrojo com o bairro e sua torcida já foi mais próxima. Depois de andarem anos lado a lado, porém, houve uma ruptura quando o clube virou empresa. O que aconteceu em 2011.

Com exceção de momentos como o do despejo de Carmen, os bukaneros têm organizado boicotes em protestos contra o empresário Raúl Martín Presa. Principalmente por falta de respaldo às bandeiras levantadas nas arquibancadas - antifascismo, antirracismo, anti-homofobia etc.

Os atos, às vezes, terminam com vitória da arquibancada. Como aconteceu em 2017, quando os torcedores conseguiram impedir que um atacante ucraniano vestisse a camisa alvirrubra.

Roman Zozulya mantinha vínculos estreitos com movimentos neonazistas em seu país. Devido à pressão que toou as ruas de Vallecas, o clube desfez a contratação.

O reencontro com Zozulya

Dois anos depois, os bukaneros e Zozulya, então no Albacete, voltaram a se cruzar. A partida entre o Rayo e El Queso Mecanico, disputada em 15 de dezembro de 2019, teve, porém, uma marca negativa para o futebol espanhol e, talvez, mundial.

Isso porque pela primeira vez um jogo de futebol foi suspenso por ataques “racistas” de vindos das arquibancadas. O problema é que as “ofensas” foram feitas contra um jogador branco, com histórico de ligações com o neonazismo.

Defendendo as cores do Albacete, clube que tem uma torcida autodeclarada nazista, o atacante ucraniano foi recebido em Vallecas aos gritos de “puto nazi“, entoados ao ritmo no hino antifascista Bella Ciao.

O árbitro do confronto decidiu interrompê-lo, no que foi apoiado pela Liga Espanhola. E o time de Vallecas ainda acabou punido com multa e duas partidas com os portões fechados.

Era y sigue siendo un puto nazi

Rayo Vallecano
Foto: Reprodução

O enfrentamento teve um terceiro capítulo, quando o restante da partida entre o Franjirrojo e Albacete foi jogada. Em 11 de junho de 2020, teve seus minutos finais disputados sem ninguém no estádio de Vallecas.

E o time do bairro operário de Madri e sua fanática torcida se saíram melhor. No jogo que encerrou o embate que havia se iniciado seis meses antes, com Zozulya em campo, o Rayo venceu com um gol marcado pelo peruano Luis Advíncula, que comemorou com o punho cerrado.

Mesmo sem poder estar nas arquibancadas, os bukaneros voltaram a provocar. Do lado de fora da cancha, estendeu uma faixa: “Zozulya era y sigue siendo um puto nazi“.

E, agora, o Rayo está de volta à Liga. O Rayo e Vallecas. 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Roberto Jardim

Jornalista, dublê de escritor e pai da Antônia. Tudo isso ao mesmo tempo, não necessariamente nessa ordem. Autor dos livros Além das 4 Linhas e Democracia Fútbol Club.Como fazer jornalismo independente, mantém uma campanha de financiamento coletivo no Apoia.se, que ajuda na produção do projeto Democracia Fútbol Club, que tem o objeto de contar a história de jogadores e técnico, times e clubes, torcedores e torcidas que usaram a desculpa do futebol para irem além das quatro linhas.

Como citar

JARDIM, Roberto. O Rayo é Vallecas, Vallecas é o Rayo. Ludopédio, São Paulo, v. 145, n. 14, 2021.
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