O roubo da camisa gremista e um cachecol colorado
No último sábado, no Beira-Rio, o Internacional empatou em 1 a 1 com o Grêmio pela 11ª rodada do Brasileirão. Após o empate, uma torcedora gremista, junto com o seu filho, pegou a sua camisa tricolor e balançou para a parte da torcida gremista que estava em outro setor da arquibancada. Uma clara demonstração de alegria pelo empate na casa do rival. O que ela não esperava era a reação truculenta de uma torcedora colorada, que arrancou a camisa tricolor de suas mãos e a expulsou aos empurrões das arquibancadas.
O caso repercutiu rapidamente no Twitter logo após o jogo, e teve seus desdobramentos nos dias seguintes: a torcedora colorada foi expulsa do quadro de sócios do Internacional; Jogadores de Inter e Grêmio prestaram solidariedade às vítimas da agressão. Até aqui atitudes esperadas, tanto por parte do clube colorado, quanto dos jogadores, mas o que chamou atenção, principalmente no Twitter, foi o fato de que a torcedora colorada estava com um cachecol escrito “antifascista”.
A meu ver, o cachecol abriu uma discussão sobre fascismo e antifascismo que se sobressaiu a uma discussão do campo futebolístico. Uma matéria do UOL Esportes, com as aspas do companheiro de Ludopédio, Sérgio Settani Giglio, e do colega Irlan Simões, tentou articular essa dimensão futebolística, mais especificamente, o clubismo, com a discussão política do debate fascismo e antifascismo. A página no facebook “O Bonde do Che” foi para outro caminho, explicando o que eles entendem por clubismo, e tirando a discussão sobre fascismo e antifascismo do ocorrido.
Na minha interpretação, a ação da torcedora não tem nada a ver com fascismo ou antifascismo. O que ocorreu nas arquibancadas do Beira-Rio pode ser explicado a partir do futebol, apenas. Para mim, a torcedora agiu com base em uma lógica puramente futebolística, operando uma simbologia interna muito própria da relação entre torcedores rivais. E essa simbologia da ação da torcedora não tem como ser explicada apenas por clubismo, ou pelo debate entre fascismo e antifascismo, ela vai além.

A ação foi desproporcional e descabida, e pode ter causado algum tipo de trauma ou aversão de ir aestádio na criança. E já adianto que não estou aqui para justificar ou legitimar qualquer ação violenta, estou aqui para analisar o que aconteceu a partir de uma ótica futebolística.
O episódio é violento do começo ao fim, mas está repleto de simbologias próprias do futebol. A abordagem em chegar puxando a camisa da mão, os empurrões, as intimidações, a truculência, e, por fim, a expulsão das arquibancadas é uma cena típica do cotidiano de torcedores dentro e fora dos estádios, seja por parte dos rivais, seja por parte da polícia.
É sempre bom lembrar que, o roubo de trapos, bandeiras e camisa dos rivais são comuns entre Torcidas Organizadas. Mais do que uma guerra de conquista de suvenires do rival, essa lógica é um apropriação de símbolos muito caros aos torcedores. São símbolos identitários (camisa e bandeira) sendo tomados à força pelo rival. É, inclusive, uma forma de desmoralizar e diminui aquele que teve os seus trapos roubados. É uma lógica quase tribal: roubar os elementos simbólicos do inimigo para se apropriar de suas forças. É a conquista do inimigo, ainda que simbólica.
Lembro ainda que nos primeiros anos das Torcidas Organizadas de São Paulo, os maiores atos violentos entre os torcedores era intimidar o rival e roubar a camisa. No leste europeu, no “código de ética” dos torcedores ultras, tem um tópico específico falando sobre o roubo de camisas e bandeiras. Na Argentina, a apropriação dos trapos já é motivo suficiente para uma briga entre torcidas.
Então, é possível dizer que a torcedora colorada agiu a partir de um éthos torcedor, e não por convicções ou posições políticas. E para mim, isso fica muito mais evidente quando percebemos que mãe e filho não estavam no setor destinado à torcida mista. O fato de eles não estarem nesse setor pode ter sido uma justificativa para ação da torcedora colorada. Ao balançar a camisa do Grêmio em um setor que não era destinado à torcida mista ou à do Grêmio, a mãe gremista assumiu um risco que talvez ela não tivesse noção que estava correndo.
Na leitura da torcedora do Inter, o fato de estarem naquele setor deu brecha para a abordagem violenta. Talvez se estivessem em outro setor da arquibancada a abordagem teria sido outra, talvez haveria diálogo, ou nem haveria abordagem. O problema foi estar no setor errado, e com a camisa do time rival. De novo, o éthos torcedor aparece. Como bem colocou o Bonde do Che: “Houve um entrevero, motivado pela quebra de um protocolo objetivo e subjetivo de todo estádio, que é o da separação de torcidas.”.
Eu não sei se a torcedora colorada é uma grande frequentadora de estádio, muito menos se pertence a alguma torcida organizada, mas certamente, ela não compartilha o mesmo éthos torcedor que mãe e filho gremistas. E a forma como agiu, carrega vários costumes e hábitos típicos da cultura torcedora, o que possibilita sustentar a ideia de que a sua única motivação está no campo futebolístico.
Outro fator que favorece essa interpretação é que durante a confusão apareceram três torcedores colorados, três homens, que não fizeram nada além de fazer uma roda entre a mãe e a torcedora. Existe uma regra em algumas torcidas organizadas de que mulheres não podem participar das brigas, em outras existe um acordo tácito entre torcedores organizados que estabelece que as mulheres só podem brigar entre elas, e que os homens não podem separar. O vídeo da transmissão do SporTV (abaixo segue um vídeo por outro ângulo, justamente o do setor destinado à torcida do Grêmio) mostra claramente isso, são duas mulheres em uma confusão, e três ou quatro homens observando e falando alguma coisa que incentiva a ação da torcedora colorada, um outro homem fazendo gestos e incitando a violência entre elas, e apenas um único homem tentando resolver a confusão fazendo com que mãe entregue a camisa. De novo, o éthos torcedor aparece aqui.
https://youtu.be/pFWyY4gIHLg
Ainda sobre a lógica torcedora, é preciso considerar dois elementos que se confundem: rivalidade e clubismo. A rivalidade é o elemento que um clube e/ou torcedores necessitam para que existam: para que o eu exista, é preciso negar o outro. É nessa relação de afirmação (do eu) e de negação (do outro) que no terreno futebolístico vão se estabelecer as disputas. Já o clubismo carrega aqueles elementos definidores do eu. É a identidade construída coletivamente (clube e torcida), e essa identidade necessariamente passa pela rivalidade, ao negar o outro para construir o eu.
Como sugere a matéria do UOL Esporte, o clubismo explicaria a ação da torcedora. E a matéria vai além colocando o clubismo no mesmo patamar que o fascismo. De fato, uma torcedora do Inter com um cachecol antifascista agredindo uma mãe e filho gremistas é uma contradição, mas o problema está em estabelecer uma relação direta entre clubismo e fascismo.
É inegável que exista uma dimensão intolerante no clubismo, pois a construção da identidade, como dito anteriormente, é uma afirmação a partir de uma negação: ser torcedor do Internacional sugere a negação do Grêmio. Mas não se pode cair no erro de afirmar que o clubismo é uma forma de fascismo. Um ato intolerante, violento e/ou autoritário não pode ser lido como fascismo puro e simplesmente. O fascismo é um fenômeno muito mais complexo, que escapa até mesmo da definição de que todo totalitarismo é uma forma de fascismo.
Mais do que rivalidade e clubismo, a torcedora colorada mobilizou uma série de costumes, hábitos e práticas do campo futebolístico, do universo torcedor. Sozinhos eles não explicam a ação da torcedora colorada, mas quando inseridos dentro do éthos torcedor, eles ajudam a compreender.
Entre uma camisa gremista sendo balançada nas arquibancadas do Inter e um cachecol, o cachecol é só um detalhe.
Referências
Torcedores do Inter vão pra cima de mãe e filho gremistas: veja o que aconteceu
Clubismo é fascismo? Cachecol de colorada agressora gera confusão e debate
O clubismo que defendemos