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O saber escolar, um quebra-galho árduo dentro e fora do futebol

No Brasil, em meio às mudanças e adequações que o futebol sofre em razão da pandemia do COVID-19, um jogador tem recebido destaque e diferentemente das carreiras meteóricas, essa é cheia de desafios e decisões que, em geral, não são apresentadas com clareza no noticiário esportivo. Uma carreira que desabrocha e amadurece, não mais com 20 poucos anos, mas na casa dos 30 e com data de término definida.

Enquanto escrevo, os debates esportivos estão falando desse jogador, um grande quebra-galho e árduo atleta – com perdão do péssimo trocadilho. O profissional em questão é Thiago Galhardo, jogador do Sport Club Internacional, artilheiro do campeonato brasileiro da Série A em 2020, até o momento.

Galhardo, assim ele é conhecido pelos torcedores, tem uma carreira distinta daquela que o imaginário popular espera. O mito de origem sobre a família paupérrima que se dedica para entrar e permanecer nas categorias de base de um grande clube de futebol, não se sustenta sequer em aparência. Thiago é representante de um grupo social pertencente às classes populares, com limitações de acesso e que vivencia a desigualdade social presente no país, mas a narrativa de que o esporte é a única opção de sucesso na vida não é evidente, pois uma dupla carreira sempre fez parte de seu projeto familiar.

O jovem Galhardo participou de projetos voltados ao futebol, mas não das agruras do alto rendimento de uma categoria de base. Iniciou seu processo mais sistemático e institucionalizado quando foi aprovado em um teste no Bangu Atlético Clube (RJ), estando as vésperas da idade para profissionalização. Um processo tardio quando comparado com outros jovens que ingressam na formação para o futebol antes mesmo dos 14 anos de idade, tentando construir seu itinerário até a profissionalização.

Após aprovação no Bangu A. C. (RJ), a circulação de Gallardo pelo mundo do futebol acontece com passagens por: Botafogo F. R. (RJ), Comercial F. C. (SP), América F. C. (RN), Clube do Remo (PA), Boa Esporte (MG), Brasiliense F. C. (DF), Madureira E. C. (RJ), Coritiba F. C. (PR), Red Bull Brasil (SP), A. A. Ponte Preta (SP), Albirex Niigata (JAP), C. R. Vasco da Gama (RJ), Ceará S. C. (CE) e S. C. Internacional (RS), clube atual.

Até aqui o leitor pode dizer, -bom, não tem nada de mais, uma carreira no futebol cheia de idas e vindas, semelhante a muitas de outros jogadores e até mesmo às de atletas de outras modalidades, parecendo muito mais comum e regular. Concordo, apenas desejo dar destaque a essa regularidade. A notoriedade do momento atual permite discutir sobre a importância da dupla carreira e como a escolarização pode instrumentalizar o atleta para um melhor desenvolvimento de sua atividade laboral, seja ela durante ou pós a profissionalização no esporte.

Foto: Ricardo Duarte/ Internacional / CBF

O atleta Galhardo ficou muito conhecido por uma tomada de decisão em sua juventude. Recentemente, no programa Bola da Vez, na rede ESPN Brasil, falou que fica incomodado de ser lembrado apenas por essa situação. Na adolescência, enquanto jogava futebol uma lesão séria poderia comprometer o sonho de profissionalização como atleta. Com Ensino Médio concluído se torna concurseiro, isto é, passa a estudar para o concurso público de servidor da Petrobrás, empresa em grande ascensão mundial no ano de 2008. Este fato estimulava muitos candidatos as concorridas vagas. O jovem Thiago, foi aprovado e o projeto familiar se consolidou, serviço público, estabilidade e remuneração em início de carreira acima do padrão nacional.

Não desejo falar sobre a crucial decisão que precisou tomar ao confrontar o projeto familiar e o projeto pessoal. Muitas pessoas e mesmo profissionais no futebol tendem a valorizar a coragem de investir em uma carreira cheia de riscos. Particularmente, prefiro observar o que a aprovação em um concurso público fala sobre o profissional Galhardo e como tem ajudado no amadurecimento da sua carreira esportiva.

A formação de atletas no Brasil segue um padrão estabelecido há décadas. Infelizmente, alguns ranços permanecem como o olhar fixo para o potencial atlético e técnico dos candidatos, aparecendo sempre como determinante para seu futuro esportivo. Essa ênfase deixa de lado outras estâncias de formação, inclusive, relega a ‘Plano B’ a escolarização, ou provoca uma descontinuidade (DA CONCEIÇÃO, BASSANI, 2016) com a escola e seus saberes. Posso dizer que a formação à brasileira não prioriza a escolarização, ou melhor, o desempenho escolar e nem projeta sua aplicação imediata no futebol, bem como, sua reconversão futura pós-carreira (SOUZA, BARTHOLO, VAZ, SOARES, 2008).

A escolarização dos atletas muitas vezes é utilitária, estimulada apenas para que consiga realizar entrevistas e compreenda as cláusulas dos contratos de trabalho. Com tristeza continuo escutando essa justificativa simplista para um esporte mundializado e que impacta muitas sociedades com diversas relações que passam pela ludicidade e chegam ao empresarial. Inúmeras áreas profissionais compõem (no sentido Bourdieusiano) o campo esportivo do futebol e restringir o saber escolar aplicado pelo jogador de futebol à fala em uma entrevista ou à leitura de um documento, é menosprezar e muito a escola, bem como, todas as áreas profissionais e os respectivos conhecimentos necessários para atuação nelas.

Por que o jogador Thiago Galhardo estimula a pensar nessa tensa relação? Sua condição familiar e o processo formativo na modalidade parece não ter comprometido sua formação escolar. Ao ponto de no risco da não profissionalização no futebol, foi possível facilmente reorientar seu “campo de possibilidades” (VELHO, 1999), que entre as opções estava um concorrido concurso público. Sua aprovação diz ainda mais: como não creio que tenha “chutado” na prova, escolhido as alternativas de resposta de maneira aleatória entendo que um conjunto de comportamentos aprendidos na escola e na relação com seus saberes potencializaram seu desenvolvimento. Isso quer dizer que foi mais fácil para ele? Não.

O atleta diz que no início da carreira aconteceu deslumbramento, a aura do jogador de futebol é grande em nossa sociedade, circular por espaços e participar de eventos públicos e privados tem um feitiço glamoroso. Adquirir a maturidade suficiente para equilibrar a vida pessoal e a vida profissional não é algo simples, é necessário um despertar. A tomada de consciência para mudar ou transformar sua história tem base em outro processo, nesse caso, apoio familiar e conhecimento.

Dou destaque ao conhecimento em seu sentido holístico, que permite reconhecer a si mesmo e seu lugar no mundo. O atleta entendeu nesse processo que seu corpo é sua ferramenta de trabalho, logo exercícios rotineiros, alimentação etc., não são mais uma obrigatoriedade sem sentido, fazem parte de sua vida e da manutenção da máquina corpo. Esse despertar não é mais encarado como obrigação, mas uma outra relação com o próprio corpo surge cheia de cuidados e potencialidades que impactam diretamente em seu rendimento.

Algumas características são atribuídas ao jogador Galhardo nesse momento de notoriedade. Lembro que em determinado programa esportivo, o comentarista, descreveu o atleta Thiago Galhardo como não sendo o mais rápido, o mais habilidoso, o mais forte, o mais isso ou aquilo, apenas deu destaque a sua inteligência ou capacidade de raciocínio. Ao escutar esse comentário fiquei pensando o que é ser mais inteligente no futebol? Nesse caso, lembrei da experiência dele como concurseiro e do resultado.

Ao ser aprovado no concurso público posso identificar um processo escolar e uma relação com os saberes que exigiram a construção de uma maior disciplina, dedicação, concentração, planejamento e aumento da cognição que possibilita ampliar as alternativas para solução de problemas. Portanto, para sua aprovação no concurso público um grupo de competências necessárias para o exercício de qualquer profissão estava incorporado no estudante-atleta Galhardo, o que potencializa sua carreira mesmo de início tardio e com data para finalizar em 31 de dezembro de 2025. Logo, a relação construída com o saber escolar melhora seu raciocínio em campo, sua compreensão dos treinamentos, esquemas táticos, leitura do jogo, seu compromisso com projetos, engajamento em planejamentos, maior atenção ao processo de recuperação física, portanto, suas ações tendem a ser realizadas com maior entendimento e segurança, inclusive, afetando sua autoestima.

Esse é mais um exemplo de que a formação esportiva deve estar ancorada na formação escolar do atleta. Primeiro, para benefício dos clubes que podem contar com um atleta mais bem preparado para tomada de decisão e, segundo, para que o indivíduo tenha outras oportunidades de escolha. Enquanto nosso futebol entender que a criatividade está relacionada ao improviso, perderemos seu real significado de inventividade, isto é, solucionar de maneira racionalizada os problemas da vida pessoal e das atividades profissionais, até mesmo, dentro de quatro linhas. Isso parece ser fundamental! Se continuarmos acreditando que a capacidade de improvisação é preponderante frente a invenção, apenas legitimamos o discurso das competências técnicas e do condicionamento físico, deixando de lado saberes tão necessários para a profissionalização do jogo, bem como, para o amadurecimento da carreira esportiva e o que fazer depois dela.

Referências

DA CONCEIÇÃO, Daniel M.; BASSANI, Jaison J. O desafio de uma conciliação: o estudante-atleta e a descontinuidade na formação escolar. In:___. (ORG) SOARES, Antônio J. G.; CORREIA, Carlus A. J.; MELO, Leonardo B. S. de. Educação do corpo e escolarização de atletas: debates contemporâneos. RJ: 7 Letras, 2016. p. 21-50.

SOUZA, Camilo A. M. de, BARTHOLO, Tiago Lisboa. VAZ, Alexandre F.; SOARES, Antônio J. G. Difícil reconversão: futebol, projeto e destino em meninos brasileiros. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n 30, dez. 2008. p. 85-111.

VELHO, Gilberto. Projeto e Metamorfose: Antropologia das Sociedades Complexas. RJ: Zahar, 1999.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Daniel Machado da Conceição

Doutor em Educação, Mestre em Educação e Cientista Social pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC), Grupo Esporte & Sociedade.

Como citar

CONCEIçãO, Daniel Machado da. O saber escolar, um quebra-galho árduo dentro e fora do futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 20, 2020.
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