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O singular e o universal no ato de torcer

Creio que tenha sido o antropólogo Howard Becker que, certa vez, escreveu algo mais ou menos assim: que a sociedade está mudando é óbvio e fácil de observar, mas o que não muda em meio a tantas transformações, é o que me interessa, pois pode estar revelando algo fundamental e essencial para a compreensão de algum fenômeno.

No futebol, observamos várias mudanças que vão desde os altos salários dos atletas dos times de primeira divisão até a introdução das novas “arenas” nos últimos anos. Porém, creio que em meio a todas essas transformações, algo parece ainda estar quase que intacto: a paixão do torcedor. E é sobre o ato de torcer que eu gostaria de escrever algumas linhas para refletirmos sobre o singular e o universal neste esporte.

Todos os grupos sociais costumam sentir-se únicos e singulares aos seus próprios olhos e na visão dos outros. O antropólogo Clifford Geertz, em um capítulo de seu livro The Interpretation of Cultures (1973), defendia, inclusive, que certo etnocentrismo seria fundamental para a existência das culturas. Sem este sentimento primordial etnocêntrico, a tendência seria a dissolução dos grupos primordiais.

No universo das torcidas por times de futebol, observamos frequentemente cânticos e celebrações vindos de torcidas organizadas (ou não) e até discursos “oficiais da direção dos clubes que enfatizam e reforçam as supostas singularidades de cada agrupamento. Todas as torcidas se veem como únicas e demonstram orgulho nesta suposta singularidade. A crença na singularidade é comum aos torcedores. No entanto, muitos aspectos relacionados ao ato de torcer são muito mais comuns e universais do que se imagina. Senão vejamos.

Torcedores durante o jogo entre Flamengo x Sport,  no Maracanã, 10 de agosto de 2014. MÁRIO FARACHE/ MOWA PRESS
Torcedores do Flamengo. Foto: Mário Farache/Mowa Press.

O torcedor, de uma forma geral, torce, contorce e distorce a realidade sempre a favor de seu time. Este “torcer” parece ser recorrente entre todos, independentemente dos clubes pelos quais torcem. O sentimento de que as arbitragens, a CBF e a imprensa, por exemplo, estão contra seu clube é partilhado pelos torcedores de todos os times, ainda que não se tenha essa percepção. Para quem não é corintiano, pode causar surpresa que os corintianos se sintam prejudicados pelas arbitragens. Para quem não é rubro-negro, pode causar espanto observar que os torcedores do Flamengo acreditam que a imprensa está sempre contra o clube. E por aí vai. As diferenças se tornam mais semelhantes do que poderíamos supor à primeira vista.

A busca por singularidades é, todavia, uma constante. E é importante também, pois ajudam na construção de identidade. Elas tendem a se basear na história de conquistas de suas equipes, em partidas memoráveis, nos ídolos que marcaram época e nos cânticos entoados nos estádios (muitos semelhantes entre várias torcidas, ainda que com letras adaptadas). Talvez um torcedor do Flamengo reforce sua singularidade no sentimento de maioria e na percepção de que todos os que não são rubro-negros torcem contra seu clube. Um torcedor do Corinthians e do Boca Juniors da Argentina devem experimentar a mesma sensação em situações semelhantes.

Lembro que certa vez, quando fazia meu pós-doutorado em Buenos Aires (2005-2006), fui a um lançamento de um livro do meu amigo antropólogo Pablo Alabarces. Na ocasião, fui apresentado ao escritor Martin Caparrós, que tinha publicado um ano antes o livro Boquita (2004), parte das comemorações do centenário do Boca Juniors. Eu tinha lido o livro e comentei com o autor que tinha gostado bastante e que muitas das coisas que ele tinha escrito sobre o Boca Juniors eram semelhantes à história do Flamengo e ao sentimento de pertencimento de seus torcedores. Senti imediatamente que este último comentário o desagradou, e logo mudamos de assunto. Afinal, como poderia ser algum clube, uma torcida, semelhante ao “inigualável” Boca Juniors. Imagino que um torcedor do Flamengo (e eu sou Flamengo!) também não gostaria desse comentário. Afinal, Flamengo é Flamengo. E do lado de lá, Boca é Boca. E por aí vai.

Podemos ir mais adiante e fazer um exercício de observação “neutra”, “imparcial”, com todas as dificuldades que isto implicaria. Quando vemos na televisão demonstrações de torcer, de lealdade, de comemorar um gol do Ceará, por exemplo, será que observamos diferenças em relação a um gol do Flamengo, Corinthians, ou qualquer outro clube “grande”, seja de primeira ou segunda divisão? As imagens são de torcedores aos berros, olhando em direção à câmera de televisão, mostrando e beijando o escudo, muitas vezes xingando de alegria, dizendo que “isso aqui é Ceará”, time de guerreiros etc. E nas derrotas, as semelhanças também são muitas. Vaias, xingamentos ao jogador que falhou no gol, ao árbitro e até coro de “time sem vergonha”. Mas quando o time é rebaixado para a segunda divisão, a tendência é demonstrar lealdade ainda maior no fracasso para poder ajudar o time a subir outra vez. E por aí vai.

Lembro de um famoso livro de Hans Ulrich Umbrecht, já citado em minha primeira coluna, Elogio da Beleza Atlética (2007), em que o autor aposta que o fascínio dos esportes estaria na beleza dos corpos em movimento. Isto pode ser verdade quando a paixão não está em jogo. Agora, qual torcedor de futebol não vibraria imensamente mesmo com um gol supostamente “feio”, no último minuto da partida, que livraria seu time de um rebaixamento? Que festa não faria a torcida ao final dessa partida?

Certamente, algumas características podem ser mais específicas e marcantes em uma torcida do que em outra. Além disso, a busca pela singularidade e pelo sentimento de se sentir fazendo parte de um grupamento único é fundamental para a existência das torcidas e parte intrínseca das paixões clubísticas no universo do futebol.

Em suma, todas as torcidas possuem suas características e especificidades. No entanto, uma análise mais detalhada apontaria que a maior parte delas seria mais comum, recorrente e universal do que gostaríamos de acreditar. E isso não retira o prazer, o fascínio e a paixão que o torcedor nutre pelo time de seu coração ainda hoje, mesmo em meio ao advento do chamado “futebol moderno”.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Ronaldo Helal

Possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1980), graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1979), mestrado em Sociologia - New York University (1986) e doutorado em Sociologia - New York University (1994). É pesquisador 1-C do CNPq, Pós-Doutor em Ciências Sociais pela Universidad de Buenos Aires (2006). Em 2017, realizou estágio sênior na França no Institut National du Sport, de L'Expertise et de la Performance. É professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Foi vice-diretor da Faculdade de Comunicação Social da Uerj (2000-2004) e coordenador do projeto de implantação do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Uerj (PPGCom/Uerj), tendo sido seu primeiro coordenador (2002-2004).Foi chefe do Departamento de Teoria da Comunicação da FCS/Uerj diversas vezes e membro eleito do Consultivo da Sub-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da Uerj por duas vezes. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em Teoria da Comunicação, atuando principalmente nos seguintes temas: futebol, mídia, identidades nacionais, idolatria e cultura brasileira. É coordenador do grupo de pesquisa Esporte e Cultura (www.comunicacaoeesporte.com) e do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte - LEME. Publicou oito livros e mais de 120 artigos em capítulos de livros e em revistas acadêmicas da área, no Brasil e no exterior.

Como citar

HELAL, Ronaldo. O singular e o universal no ato de torcer. Ludopédio, São Paulo, v. 108, n. 16, 2018.
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