157.6

O Teorema de Thomas aplicado ao Futebol

Caio Pedron 6 de julho de 2022

 

Thomas Merton
Na esquerda William I. Thomas e, na direita, Robert K. Merton. Fontes: Wikipedia

Há algum tempo atrás li um texto muito interessante publicado em um blog que analisa racionalmente o futebol – por racional podemos entender muitas coisas, como deixou frisado Max Weber (1864-1920) nos primeiros anos do século passado, mas quero definir aqui[1] como uma análise que procura investigar os efeitos, causas, desenvolvimentos e desdobramentos do jogo de futebol em sua dimensão histórica e estrutural – e as observações propostas ali me rememoraram uma leitura dos tempos de estudante de sociologia.

Se tratava de uma problematização daquelas profecias autorrealizáveis, previsões ancoradas em suposições que parecem quase que determinadas à acontecer, portanto, vítimas das próprias pressuposições que as engendraram. A profecia que se cumpre por si mesma ganhou uma alcunha sociológica, tendo sido nomeada por Robert K. Merton (1910-2003) como Teorema de Thomas, sintetizado na seguinte asserção:

“as definições públicas de uma situação (profecias ou predições) chegam a ser parte integrante da situação e, em consequência, afetam os acontecimentos posteriores” (MERTON, 1970, p.518).

O autor oferece um exemplo hipotético: um banco completamente líquido em suas posições, com reservas monetárias razoáveis e bem administrado sofre uma retirada bruta e inesperada de muitos valores, pois havia um boato circulando pelas ruas de que este banco estaria insolvente. A suposição errônea de insolvência provoca uma debandada de clientes que acabam transformando aquilo que era apenas fofoca em uma realidade e a entidade financeira fecha as suas portas alguns dias após essa “crise de imagem”.

O exemplo do pânico da bolsa[2] pode ser reproduzido em diferentes outras esferas institucionais como na política, quando a Fake News pode destruir uma candidatura, e até mesmo no futebol, quando a crença na derrota certa ou na incapacidade de um clube honrar seus compromissos fazem a equipe e o clube despencarem pelas tabelas e divisões. É aqui que retorno ao começo do texto, pois o artigo de Raul Endo (2022) retira o ensinamento do perigo das profecias autorrealizadas de sua leitura da biografia de Jürgen Klopp, mais especificadamente de um comentário do seu auxiliar técnico, Peter Krawietz, sobre os julgamentos precipitados da torcida que acabam por condenar jogadores antes mesmo que eles pudessem mostrar o que poderiam fazer com a camisa do Liverpool.

Obviamente que como torcedores acabamos sempre fazendo julgamentos de valor e de gosto extremamente questionáveis, permeados de paixão em cuja valoração das qualidades de um atleta pesam muito mais as nossas afinidades emocionais com seus comportamentos do que propriamente com os resultados que ele apresenta em campo. Por exemplo, muitos analistas questionam as qualidades técnicas de Deyverson, mas para mim, palmeirense de coração, ele sempre será o jogador amalucado que nos deu um título sobre o todo poderoso Flamengo.

O problema é quando temos uma cultura comunicacional que reforça esse tipo de condenação e estigmatização precoce, muitos atletas são considerados “perebas” ou craques por apenas um jogo, exaltados por uma mídia ávida pelo próximo herói e também pelo próximo bode expiatório que deverá levar todas as culpas por um infortúnio. Portanto, as definições socialmente disseminadas na esfera pública acabam sendo potencialmente mais danosas pela prédica quase profética de alguns comentaristas esportivos nos meios de comunicação.

Mas mais do que apenas os leifertizados (KFOURI, 2017) apresentadores de entretenimento, que tratam o esporte como um espaço fértil de polêmicas e exposições da vida privada destas figuras públicas que são os atletas; também existe um grupo de periodistas cujo romantismo nostálgico impele para a condenação prévia de tudo aquilo que não faz parte do métier tradicional da crônica esportiva. Fazem parte de uma espécie de clube dos cronistas desencantados que criticam os novos profissionais atuantes na mesma seara, pois estes seriam estatísticos delirantes ou meros analistas de desempenho à serviço do futebol-força e que, portanto, não conseguiriam compreender a lírica mais sofisticada daqueles que tratam o futebol com dansa dyonisiaca (FREYRE, 1938).

Esses “tipos ideais” que existem muito fielmente na realidade dos comentários esportivos nacionais criam e fortalecem a disseminação destas profecias autorrealizáveis, por isso, contribuem fazendo chacota com jogadores, com técnicos, com estilos de jogo e treinamentos que não conseguem compreender ou se quer tentam levar em consideração. A disputa na esfera pública por espaço nos meios de comunicação tradicional ou visualização – nos meios digitais – faz do exagero uma rotina sempre intensificada pela competição entre os polos que dominam este espaço de lutas[3].

Aquilo que já estava presente em nossa sociedade acaba por ser potencializado por essas vocalizações e termina produzindo efeitos adversos no próprio jogo, por exemplo, a figura de Felipe Melo como jogador violento e polêmico – muito incentivada pela autoimagem pública disseminada pelo próprio jogador – levou-o a várias expulsões e penalizações que não seriam dadas para outros jogadores[4]. Interessante que, se por um lado, o atleta perdia muitos jogos por expulsões e cartões amarelos; por outro, era adorado pela torcida por causa de sua autoimagem de durão construída dentro de campo com seus carrinhos, marcações firmes, provocações e imposições de força desproporcionais.

Um bom e circunscrito exemplo negativo desta profecia autorrealizável aconteceu com o próprio Felipe Melo, na sua apresentação como jogador do Palmeiras no ano de 2017 ele disse:

“Se tiver que dar porrada eu vou dar porrada. Se tiver que jogar no Uruguai e dar tapa na cara de Uruguaio, eu vou dar” (ESPN, 2017)

Logo depois emendou um “sempre com muito respeito”, o que denunciava ironicamente a hipérbole do discurso. Pois bem, o Palmeiras enfrentou o Club Atlético Peñarol do Uruguai no mesmo ano e, durante os dias que antecederam o confronto, a mídia local uruguaia e a brasileira apresentaram seguidas vezes essa declaração, incitando toda a plateia para o embate no “octógono”. O resultado?

Felipe Melo
Fonte: divulgação/Palmeiras

Aquilo que o atleta havia anunciado em sua apresentação tornou-se verdade no final do jogo, após a derrota do Peñarol e a incitação por parte da torcida e dos atletas para o confronto físico. A figura de linguagem se fez verbo encarnado mediante a sua reprodução incessante, pois as condições sociais para sua ocorrência foram quase que consequência natural da disseminação virulenta do discurso durante os dias que antecederam a peleja.

Uma verdadeira parábola sociológica que tende a reproduzir este ensinamento nos termos de William Isaac Thomas (1863-1947): “se os indivíduos definirem as situações como reais, elas são reais em suas consequências”, são, portanto, as definições socialmente compartilhadas de um contexto tão relevantes quanto o contexto objetivo em si, pois elas moldam as percepções dos agentes sociais cuja ação poderá transformar ou não uma determinada suposição em realidade.

Agora que sabemos como esse teorema se expressa de maneira geral em nossa sociedade e até mesmo na muito individual ação de dar um belo sopapo na cara de outrem,  cabe a seguinte pergunta: como poderíamos reduzir o impacto social deste efeito adverso que o próprio diagnóstico que fazemos do futebol pode vir a engendrar?

É preciso abandonar a premissa que sustenta a profecia e que mantém o círculo vicioso, respondendo por meio de novas circunstâncias institucionais (MERTON, 1970, p.531) que controlariam e inibiriam o poder dessas crenças sociais estabelecidas, ou seja, seria preciso desenvolver controles sociais, institucionais, políticas públicas e estratégias de comunicação que anulassem as possibilidades de sustentação social dessas convicções errôneas. Algo que notadamente é mais fácil falar do que fazer e, talvez por isso, seja tão difícil superar os rótulos impostos por essas pré-noções e disseminados quase que universalmente através da viralização de conteúdo nas redes sociais. A autorreflexão acompanhada da  vigilância de si e dos resultados de um determinado discurso proferido pode ser um bom começo para aqueles que se dispõem a falar e pensar o futebol.

Notas de Rodapé

[1] Em outros textos pretendo retomar a discussão de racionalidade, creio que as definições propostas por Max Weber (1994) – racionalidade, racionalismo, racional – e bem catalogadas por Carlos Eduardo Sell (2013) ajudam nos estudos sociológicos do futebol, pois permitem avaliar os graus de racionalidade e suas direções em cada um dos múltiplos desenvolvimentos do esporte, como: na avaliação de desempenho, no scout, nos desenvolvimento táticos, na própria consolidação de uma conduta de vida regrada por um certo ethos (ARAUJO, 2018). 

[2] O pânico geral relacionado à queda da bolsa de valores estadunidense em 1929 causou inúmeras falências de indústrias, bancos e setores empresariais. Algumas das estratégias fiscais e monetárias desenvolvidas nos anos seguintes e usadas até hoje – por exemplo, na similar crise econômica de 2008 – foram resultado inconteste dos impactos degenerativos sob a sociedade daquele período.

[3] Uma boa análise bourdiesiana do campo de “comentaristas esportivos” poderia demonstrar como funciona a lógica de consagração e as estratégias do polo dominante, para se manter no poder e legitimar sua autoridade; e o polo dominado, tentado trazer suas inovações como forma de superação de sua condição de inferioridade simbólica. Por exemplo, a chacota com as análises táticas e de desempenho dos atletas outrora empreendidas, agora, com as seguidas vitórias do rotulado como tático Abel Ferreira, fez com que boa parte dos antigos críticos se rendessem aos termos antes escrachados e considerados coisas de professor Pardal. Essa mudança, creio eu, começou a acontecer após a derrota de Felipão na copa de 2014, à partir dali os técnicos brasileiros foram rotulados como atrasados, porque não se adaptavam aos novos modelos táticos, o que também é uma mentira, e os europeus considerados gênios da razão; invertendo a antiga lógica que valorizava exatamente a espontaneidade “artística” do futebol nacional em contraposição a racionalidade “dura” do futebol estrangeiro.

[4] Em uma reportagem de TV alguns analistas de arbitragem foram colocados diante de vídeos com faltas de Felipe Melo e analisaram a gravidade das infrações atribuindo cartões amarelo, vermelho ou nenhum a cada uma das faltas. Boa parte daquelas infrações que foram atribuídas em campo como faltas para “vermelho” ou “amarelo” eram relativizadas para baixo na avaliação posterior da equipe de comentaristas de arbitragem. A tese defendida pela reportagem e pelos analistas é que o jogador “pagava por sua imagem”.

Referências

ARAUJO, Ricardo Benzaquen de [2018]. “GÊNIOS DA PELOTA” (PARTE II), POR RICARDO BENZAQUEN. BVPS: Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social. Disponível em:< https://blogbvps.wordpress.com/2018/07/06/genios-da-pelota-parte-ii-por-ricardo-benzaquen/> Acesso em 05/01/2022.

ENDO, Raul. A Profecia Autorrealizável de Krawietz. Categoria Canal (Blog). Publicado em 19 e fevereiro de 2022. Disponível em:< https://categoriacanal.com/a-profecia-autorrealizavel-de-krawietz/> Acesso em 08/03/2022 às 13:25h.

REYRE, Gilberto. Foot-ball mulato. Diário Associados de Pernambuco, 17 jun. 1938, p. 4.

KFOURI, Juca. Confesso que perdi: memórias. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2017.

MERTON, Robert King. Sociologia: teoria e estrutura. São Paulo, SP: Mestre Jou, 1970.

O ousado chegou! ‘Se tiver que dar tapa na cara de uruguaio, vou dar’, diz Felipe Melo. ESPN Brasil. Publicado em 17/01/2017 às 12:50h. Disponível em:< http://www.espn.com.br/noticia/663063_o-ousado-chegou-se-tiver-que-dar-tapa-na-cara-de-uruguaio-vou-dar-diz-felipe-melo> Acesso em 08/03/2022.

SELL, Carlos Eduardo. Max Weber e a racionalização da vida. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

WEBER, Max. Economia e sociedade. 3.ed. v.1. Brasília, DF: Editora da UnB, 1994.

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Caio Pedron

Doutorando em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Unicamp. Palmeirense de coração e apaixonado pelo futebol.

Como citar

PEDRON, Caio. O Teorema de Thomas aplicado ao Futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 157, n. 6, 2022.
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