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O torcedor queer

Wagner Xavier de Camargo 26 de novembro de 2017

Tenho observado, há certo tempo, grupos de torcedores/as em redes sociais que se designam “livres”, “alternativos” ou “queer”, cujas bandeiras assentam-se sobre um torcer peculiar, despadronizado, desvencilhado de aglomerados instituídos e oficializados (como as torcidas organizadas, por exemplo) ou de outros agrupamentos similares. Manifestam-se, prioritária mas talvez não exclusivamente, pela internet, e se dizem contra a misoginia, o racismo e a homo/transfobia nos espaços do torcer (principalmente nas arquibancadas de futebol). Minhas inquietações como pesquisador vão além desse texto e o apresento aqui como uma forma de reflexão.

O título eleito por mim já carrega um incômodo. Explico melhor: toda vez que, em língua portuguesa, se usa o gênero masculino “o”, torna-se pressuposto que todos os sujeitos estão aí subentendidos, porque o masculino é tido como universal. Ou seja, no título “o torcedor queer” já há uma paradoxalidade (para não dizer contradição), pois a expressão universaliza a partir do masculino todo e qualquer corpo torcedor que seja considerado (ou se considere) queer. E isso é um equívoco! Melhor seria “x torcedxr queer”, uma vez que o “x” mostra o enigma do gênero relativo ao corpo que pode (ou não) se identificar com os atributos de sexo/gênero conferidos a ele/ela/elx no nascimento. Mas “x torcedxr queer” como título só causaria estranheza e mal-estar em leitores, leitoras e leitorxs! Não mudemos o título, porém deixemos o mal-estar…

A designação “queer”, por sua vez, é para quem não se identifica ou se desidentifica – com o sexo, com a orientação, com o gênero que lhe foi atribuído socialmente. Ou ainda prefere, simplesmente, não ter uma identificação ou identidade fixa. Queer não seria o gay, nem a lésbica, nem a travesti, nem a pessoa transgênero ou intersexo, nem o/a assexual ou bissexual; ou poderia ser todxs elxs. Queer pode ser qualquer um, até o homem branco heterossexual (caso esse não valide as prerrogativas da dominação masculina inscritas no social). Queer seria o queer. Queer nasceu como xingamento e foi revertido como singularidade para demarcar uma sujetividade desterritorializada. Queer tem a ver com ocupação, com dissonância, com subversão. Queer se relaciona à sexualidade não-heteronormativa, mas também pode não ter a ver com ela. Queer é uma postura política, de não-doutrinação, de insubmissão, de inconformidade! Queer evoca a estética da abjeção, do grotesco, do incomum, do não-normativo. Queer engloba a todxs e ao mesmo tempo não engloba ninguém!

Fico pensando quem seria essx torcedxr queer, onde estaria ou se existiria (?). Há tempos acompanho as manifestações virtuais de tais grupos na reivindicação de espaços mais “livres” e “democráticos” do torcer por futebol (principalmente, mas não apenas) e coloco tais adjetivações entre aspas porque considero que elas deveriam ser discutidas antes de afirmadas. Entretanto, essas manifestações se encontram em páginas do Facebook, por exemplo, defendendo propósitos “anti-homofobia e transfobia, contra o racismo e todo tipo de sexismo ou misoginia”.[1] Quem são essas pessoas torcedoras que se designam queer? Se se caracterizam como um coletivo, que coletivo é esse? Para além de saber quem são de fato (pois nomear alguém não me interessa nesse momento), penso não saber, seguramente, em que medida o torcedxr queer é um sujeito empiricamente observável.

Isso, pois, diante das violências instituídas nos espaços dos estádios de futebol, das mortes ocorridas quase semanalmente em meio a conflitos de grupos torcedores e da “virtualização do torcer” em crescimento exponencial (tanto via internet, quanto por meio de pacotes esportivos pay per view em canais privados de TV) é inteligível que se interrogue o que significa “ser livre” para torcer? O que é estar em situação “democrática” para torcer? Independente de uma (ou mais) resposta(s), o fato é que os comportamentos que observamos em relação ao torcer (principalmente, no futebol) faz-nos problematizar as práticas, para compreendê-las sob o viés político.

No entanto, há ainda algo de grave nisso tudo: as camadas de opressão que se sobrepõem sobre os sujeitos (e sobre nós mesmos) nos momentos dessa manifestação do torcer. Se elas se sobrepõem e “pioram” o preconceito do senso comum, mais ainda é que deveríamos nos deter no debate delas no meio social. Talvez com isso identificássemos que a suposta sobreposição não funciona de modo tão previsível e lógico como pensamos. Um negro homossexual, extremamente masculinizado e testosteronado, talvez consiga mais aceitação e respeito nas arquibancadas de futebol quando comparado com um congênere branco, esguio e traços considerados “delicados”. Ou ainda um rapaz branco, com deficiência física adquirida (por exemplo, amputação de membro superior), pode não ser menosprezado na torcida da mesma forma que uma mulher branca lésbica, forte e masculinizada. Quando pensamos na deficiência como forma máxima de exclusão (porque para o senso comum causa repulsa e pena), dependendo do corpo que consideramos, essa característica é colocada de jeitos distintos.

queer
Mosaico de torcedores se beijando em estádio na Alemanha. Foto: Fare Network (CC BY-NC 2.0).

É necessário notarmos que as linhas que separam nossos privilégios de nossas preocupações e posicionamentos num mundo mais “livre” e “democrático” também são tênues, nos colocando em situações, muitas vezes, bastante complexas. Seria preciso que nos desterritorializemos e nos desvencilhemos de privilégios incrustados (inclusive alguns invisíveis) para dar lugar a essx torcedxr queer (que poderia, potencialmente, nos habitar).

No nível da torcida (para o futebol ou por esportes), o torcer queer seria reconhecer as capacidades de um time “do coração”, mas reconhecer também a excelente campanha de um adversário; seria tomar contato com piada homofóbica entre pares e interferir na situação (de alguma maneira); seria reconhecer a igualdade de negros nas arquibancadas e não menosprezar a presença de mulheres (e nem as considerar secundárias perante a prática de homens); ou ainda, seria até achar divertida uma torcida composta por drag queens, mas não tomar como “estranho” corredores/as intersexo nos Jogos Olímpicos; seria, igualmente, desejar a “livre manifestação” do torcer, mas entender que protestos em relação a isso fazem parte do “jogo democrático” da ocupação dos espaços; seria dialogar não apenas como maneira de “garantir” os próprios espaços de expressão, mas desenvolver um esforço por uma convivência mútua de aprendizados com as diferenças.

Enxergar o outro para além do exercício da alteridade. Tampouco é “tolerar” de modo a respeitar ou apenas suportar a manifestação divergente, no sentido de uma coexistência pacífica. Longe de moralismos de certo/errado, ou do desgastado “politicamente correto”; o torcer queer é um exercício de liberdade que envolve “o eu” e “x outrx”, não na base das prerrogativas de direitos e deveres, e sim no sentido de commitment ou de compromisso compartilhado no (e pelo) social.

Não cabe aqui um julgamento e ou minorização da importância das reivindicações pontuais das páginas ou blogs publicadas/os na internet. Todxs têm seu peso, dentro de uma luta política pelo reconhecimento. Na Era das redes sociais e da comunicação dada por velozes conexões globais, cada um/x posta, publica ou compartilha o que bem entende, complexificando as questões relativas à autoria. Entendo que todas as manifestações são legítimas, inclusive as espúrias. Obviamente somos seres críticos para debater sobre elas, melhorando, inclusive, nossos próprios argumentos e pontos de vista.

Este texto não pretendeu responder nada. Além de ter trazido o “mal-estar” linguístico quanto à designação “torcedxr queer”, quis refletir sobre um fenômeno contemporâneo, qual seja, o modo de torcer (por futebol ou por esportes) de maneiras distintas, dissonantes, divergentes das convencionais. Não peço para que seja tomado como encíclica ou tratado. Estou (estamos) cansado(s) de verdades. Há muitxs pesquisadorxs que pretendem explicar o futebol ou os esportes, suas demandas e suas dimensões simbólicas – exercícios louváveis, considero dizer. Eu pretendi aqui somente pensar e fazê-lxs pensar, sem convencimentos ou prerrogativas.

[1] Essa afirmação está presente, em pelo menos, as seguintes páginas no Facebook: Galo Queer, Bambi Tricolor, EC. Bahia Livre, QUEERlorado, Palmeiras Livre, Corinthians Livre, Flamengo Livre, Grêmio Queer. Outros nomes ainda estão listadas no site, mas não mantêm mais as respectivas páginas. Alguns estão presentes no Twitter.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. O torcedor queer. Ludopédio, São Paulo, v. 101, n. 26, 2017.
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