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O torcedor torce, o consumidor compra e o sócio-torcedor? – Apontamentos sobre a cidadania pelo consumo no futebol paulista

Vitor dos Santos Canale 11 de outubro de 2011

“Pobre de mim que só sei te amar…”
(Vivo sonhando – Tom Jobim)

As discussões sobre as construções das novas arenas , em voga graças à Copa do Mundo de 2014 que será sediada no Brasil, trazem consigo um debate sobre a elitização dos espaços do futebol brasileiro.

No entanto, esta pretensa modernização já em curso, não precisou de novas instalações para determinados avanços em sua pauta, que preza pelo caráter exclusor e exclusivista.

No caso paulista, mesmo com os estádios de sempre, pode-se observar mudanças significativas na relação do torcedor com o seu clube. O que significa que as práticas empresariais dos clubes e suas diretorias são a força motriz desse processo e não os novos estádios como muitos querem fazer crer.

O novo espaço não é o delimitador de uma nova conduta, mas exatamente o contrário, essas arenas, sua concepção, desenvolvimento e atrativos apresentados são uma das faces de uma modernização cada vez mais avançada.

Marcas desse processo em andamento são os recorrentes aumentos nos ingressos, observados por todo o Brasil. Caso emblemático é do Corinthians que segundo a Folha da Tarde teve um reajuste de 137% no valor médio dos ingressos entre 2004 e 2010, seguido de perto pelo rival Palmeiras que reajustou seus preços em 132% no mesmo período.

Indelevelmente incluídos neste processo o alvi-negro e o alvi-verde paulistas abrem perspectivas diferentes das convencionais para a aquisição dos ingressos. O Palmeiras desde 2007 contava com as cadeiras do Espaço Visa , pretendendo oferecer um serviço diferenciado ao torcedor, que adquire seu ingresso pela internet e o paga com seu cartão, que também servia de comprovante a ser apresentado na entrada.

Setor Visa do estádio do Palmeiras. Foto: Diego Lopez Aranha.

O serviço diferenciado apresentado pela marca de cartões junto a diretoria palmeirense significava banheiros limpos e vastos, lanchonetes com possibilidades variadas, via de acesso ampla, rápida e com indicações ao comprador desde a entrada do estádio até as cadeiras, além da possibilidade de escolher a cadeira no local específico e ter seu local respeitado. Melhorias que deveriam ser proporcionadas a todos os torcedores, mas oferecidas apenas àqueles constituintes de uma alta cúpula torcedora, aqui analisada sob o viés do poder aquisitivo, que pode e não se importa em pagar mais por essas condições.

O torcedor corintiano, até o momento sem estádio próprio , pode contar com a comodidade do programa Fiel-Torcedor e seus três diferentes planos , que têm anuidades que variam entre R$100,00 e R$1200,00. Essencialmente o serviço vendido pelo Corinthians ao torcedor é a possibilidade de comprar os ingressos pela internet, evitando filas, cambistas e o esgotamento dos ingressos. Existem algumas outras benesses, dependendo do plano, mas o carro chefe é a possibilidade de chegar ao jogo com sua entrada garantida e fugir das filas da bilheteria.

Assim, o serviço proporcionado pelo Fiel-Torcedor, existe essencialmente, para suprir os problemas organizativos do clube, da Federação Paulista de Futebol e da CBF, que não conseguem extinguir os cambistas, proporcionar um grande número de bilheterias e postos de venda de ingressos, além das limitações do Pacaembu que não consegue abarcar a totalidade dos torcedores corintianos na maioria dos jogos. Enquanto os espaços mais caros do estádio não são ocupados em sua totalidade, a arquibancada, o tobogã e mesmo a cadeira laranja se esgotam, deixando o torcedor que não pode pagar altos valores pelos ingressos de fora ou dependente do ‘jeitinho brasileiro’ – negociando com cambistas ou buscando alguma torcida organizada com ingressos sobrando, fato raro.

Luiz Henrique de Toledo, já vinha alertando para esse processo de expansão dos programas de sócio-torcedor, desde antes de 2002, ano de publicação de seu livro Lógicas no Futebol. Contudo, parece que é um processo que só toma maiores proporções e que não consegue ser brecado ou remodelado em prol dos torcedores das camadas populares, dada a fluidez dos vínculos torcedores que não fazem parte das torcidas organizadas.

A modernização, que assume viés de elitização em terras brasileiras, visa excluir por critérios econômicos uma vasta parcela de torcedores não só das benesses, mas do espetáculo futebolístico como um todo. Não há espaço para aquele que não está disposto a pagar o quanto os dirigentes acham que vale esse futebol brasileiro e nem tenha condições de consumir as diversas possibilidades apresentadas pelos estádios – lojas, lanchonetes de grife, restaurantes.

O Setor Laranja que fica na parte central do Pacaembu é utilizado como setor Visa. Foto: Sérgio Settani Giglio.

Negar este projeto de modernização não é negar que os estádios precisem de melhorias, e admitir que alguns até necessitem serem reconstruídos, mas colocar-se contra como esse processo está sendo levado a cabo. Não compartilho da visão de que o estádio seja um espaço de congraçamento entre classes e que as diferenças sejam esquecidas em prol da fruição futebolística e apoio ao time. A Nação seja ela brasileira ou corintiana, tem diferenças e embates de classe. Contudo, o estádio que é um espaço de diferenças de classes, marcados pelos seus diversos espaços e valores, está se tornando gradualmente pela ação de dirigentes, um espaço de exclusão das classes populares, já que o mais barato dos ingressos ainda é oneroso ao trabalhador

Este consumidor-torcedor, novo dono dos estádios, para quem o espetáculo e a instalações são construídas, se torna paradigmático de um novo momento de supressão das diferenças. E neste novo espaço gestado não há lugar para determinadas torcidas organizadas, que sob o pretexto de um pretenso controle da violência são banidas coletivamente dos estádios . É o caso da Mancha Alvi-Verde e da Fúria Andreense , banidas preventivamente dos estádios paulistas por deliberação da FPF, num claro caso de desrespeito ao princípio básico da justiça que é o direito ao julgamento e a necessidade de comprovação de culpa para que seja imposta qualquer tipo de sanção.

Neste processo de modernização/elitização os poucos grupos que poderiam fazer oposição a tal processo são marginalizados ou cooptados. O espaço de atuação e discussão aberto aos torcedores é diminuto, praticamente inexistente. Os protestos sofrem a ação policialesca ou da diretoria dos clubes, as invasões são esvaziadas de seu potencial discursivo sob a alegação de banditismo. Qual a possibilidade do torcedor individual ou coletivamente ser ouvido? Talvez fosse o caso de ligar para o SAC (Sistema de Atendimento ao Consumidor), afinal cada vez mais o interesse pelo torcedor é pelo seu potencial enquanto consumidor.

Penso que uma possibilidade de se posicionar buscando a reforma ou a revolução, sobre o atual processo de elitização em andamento são as novas associações de torcedores que tem surgido e sendo reeditadas. Bernardo Buarque de Hollanda, em O clube como vontade e representação, argumenta do poder a Astorj e da Artosp , e como principalmente no Rio de Janeiro a Astorj conseguiu ser ouvida e barrar aumentos de ingressos. Vejo em coletivos como a Associação Nacional dos Torcedores, a Frente Nacional dos Torcedores e Confederação Nacional das Torcidas Organizadas animadoras possibilidades de luta frente à febre modernizante e exclusora do futebol brasileiro, todas elas trazem propostas e demandas representativas do universo torcedor, o elo mais fraco e mais pobre desta relação de amor que é o pertencimento clubístico.

Bibliografia
TOLEDO, Luiz Henrique. Lógicas no futebol. Editora Hucitec/Fapesp. São Paulo. 2002.

HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque. O clube como vontade e representação – O jornalismo esportivo e a formação das torcidas organizadas de futebol no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Editora 7 letras. 2009.

_________________
[1] Nome da moda para os novos estádios, agora acrescidos de shoppings e outras benesses indispensáveis ao bom espetáculo futebolístico, como hotéis, prédios comercias e similares.

[2] Modernização e elitização, ao meu ver, tender a ser no caso nacional quase sinônimos de um mesmo processo.

[3] http://blogs.estadao.com.br/jt-esportes/torcedor-prepare-o-bolso-no-brasileirao/

[4] Com a demolição do estádio e com o Palmeiras mandando seus jogos em estádios alugados o serviço está em suspenso.

[5] Marca de cartões de crédito

[6] As obras do estádio de Itaquera estão em andamento, visando receber o jogo de abertura da Copa de 2014.

[7] Existe ainda um quarto plano, voltado ao torcedor organizado, para ter acesso a ele o torcedor deve estar com a mensalidade em dia com a sua torcida organizada, ter a carterinha da FPF, para sua torcida fazer seu cadastro junto ao Corinthians.

[8] O valor atual do salário mínimo é de R$545,00 e o ingresso mais barato para jogos do Corinthians é de R$30,00, valor superior a 5% do salário, desprezando ainda gastos com condução e alimentação.

[9] Relembrando também os episódios de banimento da Mancha Verde e da Tricolor Independente em 1995, após um trágico embate entre torcedores palmeirenses e são-paulinos no estádio do Pacaembu, ocasião que um torcedor foi morto.

[10] http://www1.folha.uol.com.br/esporte/968219-torcida-organizada-do-palmeiras-e-banida-dos-estadios-em-sp.shtml

[11] http://esportes.terra.com.br/futebol/brasileiro/2011/noticias/0,,OI5345068-EI17913,00-FPF+bane+organizada+do+Santo+Andre+dos+estadios+paulistas.html

[12] Associações que englobavam o coletivo das torcidas organizadas do Rio de Janeiro e de São Paulo no final da década de 1970 e início dos anos 1980.

[13] www.torcedores.org.br

[14] www.frentedostorcedores.com.br

[15] www.conatorg.com.br

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Vitor dos Santos Canale

Licenciado em História pela Universidade Estadual de Campinas, Mestre em Educação Física pela Unicamp. Principais interesses: Torcidas Organizadas, Torcedores, Museus Esportivos e Crônica Esportiva.

Como citar

CANALE, Vitor dos Santos. O torcedor torce, o consumidor compra e o sócio-torcedor? – Apontamentos sobre a cidadania pelo consumo no futebol paulista. Ludopédio, São Paulo, v. 28, n. 2, 2011.
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