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O torcer-junto em distanciamento social (?): um relato etnográfico em um bar de Belém

O futebol é um fato social total que se faz presente na vida quotidiana dos brasileiros e que influencia diferentes instâncias da sociedade, conforme mostra Cornelsen, Brinati e Guimarães (2020). Ir a um jogo de futebol significa estabelecer conexões fortes e fracas, isto é, construir laços sociais que variam de força, a partir da interação estabelecida entre os torcedores.

Você pode até não gostar ou acompanhar o esporte, mas em algum um momento terá contato com o universo futebolístico. Seja por ficar preso durante horas no engarrafamento nas redondezas de um estádio, ou mesmo por entrar no transporte público em dias de jogos ou, ainda, ao frequentar um bar durante uma transmissão esportiva.

O futebol carrega em sua essência o ritual, o drama, a performance, Gastaldo (2010), é um espetáculo que constitui um campo privilegiado de acesso ao estudo da realidade e possibilita compreender práticas sociais.

Assistir a um jogo de futebol em um bar, por exemplo, é uma experiência banal e um processo quotidiano comum em Belém do Pará, onde é possível observar as interações que envolvem os torcedores do Clube do Remo assim como a dimensão afetiva do torcer-junto, Maffesoli (1995), do encontrar o outro e partilhar com ele emoções como: o apoio a um time de futebol. A transmissão de jogos nesses espaços é uma prática utilizada para atrair consumidores e estimular processos de interação que ocorrem, principalmente, em torno da televisão e do consumo de bebidas alcoólicas.

A compreensão do futebol enquanto experiência social, em que às arquibancadas figuram como espaços aglutinadores ocupadas por torcedores de diferentes classes sociais, etnias, faixas etárias e profissões que conectam-se por meio do torcer-junto, foi modificada em março de 2020 devido a outro fato social total, a pandemia do COVID-19,[1] que obrigou a suspensão do campeonato brasileiro, a paralisação dos campeonatos estaduais, dentre eles, o campeonato paraense e isolou as pessoas por, pelo menos, quatro meses.

Cenas comuns como ir a um estádio de futebol ou assistir a um jogo em um bar foram impossíveis de ocorrer entre os meses de abril a julho. Belém foi uma das cinco capitais do Brasil mais impactadas com a pandemia e foram vários os períodos em que o sistema da saúde entrou em colapso. O pico da crise foi no mês de maio, em que um decreto estadual 729/2020 estabeleceu lockdown durante 20 dias.

Apesar das incertezas, desde o mês de julho gradualmente as atividades econômicas na cidade foram sendo retomadas, dentre elas, os bares que estão funcionando – com restrição de horário e capacidade reduzida – mantendo o distanciamento mínimo de 1,5 metros e respeitando as recomendações do Ministério da Saúde.  No início de agosto, retornaram os jogos do campeonato paraense de futebol seguido pelo início da competição nacional, Série C, em que os dois grandes Clubes paraenses estão disputando: Remo e Paysandu.

Os jogos estão ocorrendo sem a presença das torcidas e a única forma de assisti-los é por meio da TV Cultura, emissora estatal do Pará, quando são jogos do campeonato paraense ou por meio de uma plataforma de streaming no tocante aos jogos do campeonato brasileiro da série C.

A importância do futebol enquanto fenômeno social que constitui o ethos das identidades coletivas do ser brasileiro aliada ao fato dos jogos estarem ocorrendo sem a presença das torcidas e os bares já estarem funcionando nos fez levantar a hipótese de que apesar de estarmos, ainda, na pandemia, alguns desses espaços estariam atendendo às demandas de torcedores para assistir aos jogos dos seus clubes.

Foto: Reprodução / CBF / Site Oficial do Remo

Com o manto azulino e a cerveja na mão…

No dia 16 de agosto de 2020, o Clube do Remo disputou a segunda rodada do campeonato brasileiro da série C em um jogo contra Ferroviário Atlético Clube com início previsto para às 18h. O time já acumulava duas vitórias nos primeiros jogos que marcaram o retorno das competições no Pará.

 Mesmo com todas as incertezas em relação à pandemia. A torcida comemorava uma (re) estreia com vitória fora de casa pelo campeonato brasileiro da série C e após meses de distanciamento, aliado ao cenário futebolístico favorável e a proibição da presença de torcedores nos estádios foram variáveis que desencadearam um movimento de querer estar-junto para torcer e apoiar o Remo ainda que isso contrariasse as recomendações de saúde ainda vigentes.

Esse cenário, nos motivou a etnografar o torcer em um contexto de distanciamento social. Nosso objetivo, foi o de compreender as maneiras pelas quais as interações sociais seriam estabelecidas nesse “novo normal”, em um bar de Belém, e se existiria uma outra forma de torcer nesse contexto. Seria algo com menos emoção abafado por uma máscara de tecido?

Escolhemos um bar localizado na avenida Rômulo Maiorana – próximo ao estádio de Clube do Remo e decidimos chegar duas horas antes de iniciar a transmissão com o objetivo de realizar a observação-participante desde o pré-jogo.

Ao chegarmos no local escolhido, notamos que já existiam torcedores ocupando os espaços. A maioria estava localizada na frente de duas televisões instaladas na calçada, ao ar livre. Os espaços das mesas respeitavam o distanciamento e não havia mais lugares disponíveis no lado da Avenida Rômulo Maiorana. Observamos que, ali, os torcedores eram majoritariamente homens e casais heteronormativos na faixa-etária de 30 anos. Na parte interna do bar, percebemos que o padrão se repetia, mas a faixa-etária dos torcedores era de, em média, 50 anos de idade.

Entre esses espaços havia um jogo de mesas vazio, optamos por sentar no local, mas o sol forte – característico de Belém – desafiava a nossa permanência no lugar. A tela do celular informava que a temperatura marcava 35º graus e a umidade do ar 60%, inclusive, algo até baixo para os padrões de uma cidade extremamente úmida. Pedimos uma água e iniciamos a conversa com três funcionários. Por sermos frequentadores da casa, há alguns anos, fomos reconhecidos. Iniciamos questionando se a partida seria transmitida mesmo e como resposta soubemos que apenas a televisão situada na calçada da Rômulo Maiorana transmitiria a partida e isso explica as mesas já estarem todas ocupadas no local.

Fizemos a analogia que aquele espaço era a arquibancada da Almirante Barroso, no Baenão,[2] todos riram quebrando o gelo. O Baenão é o estádio Evandro Almeida de propriedade do Clube do Remo. Esse estádio possui duas arquibancadas atrás das traves e nas laterais ficam as cadeiras cativas e os camarotes cobertos. Aproveitamos para perguntar, também, sobre o movimento do lugar e fomos informados que a procura têm sido grande, porém a polícia tem fiscalizado constantemente para cumprir os horários de fechamento dos estabelecimentos, e que, por isso, naquele dia o lugar iria fechar às 20h. Também questionamos se algum funcionário já havia contraído o COVID-19 e ambos responderam que não, mas que muitos do seus familiares sim.

Apesar da recepção agradável, a temperatura e umidade do ar citadas acima fizeram com que começássemos a pensar em um plano B para assistir à partida, pois estávamos ficando exaustos antes mesmo do jogo ter começado. Nesse sentido, voltamos a mobilizar os grupos de WhatsApp de torcedores remistas visando saber de outro lugar que pudéssemos ir. Essa situação nos fez lembrar da fala da professora Leda Costa em entrevista para o DOZE futebol disponível no YouTube em que ela discorre sobre o futebol moderno e defende que nem tudo é negativo, pois as mudanças nas relações de gênero e a melhor estrutura dos ambientes futebolísticos são bons legados de tal fenômeno.

Por volta de 17h, já nos acréscimos de nossos esforços de permanecer no local, uma mesa foi desocupada próxima à televisão que transmitiria a partida. Impulsivamente, mudamos de mesa consolidando a nossa permanência no lugar.

Nos 45 minutos seguintes, pouca coisa ocorreu. Na mesa a frente, um torcedor solitário recebeu mais um homem que  sentou-se junto a ele, na mesa do lado de fora um casal recebeu outro casal heteronormativo acompanhados de uma menina, aparentemente, com 10 anos

O início da partida estava aproximando-se ao que mais pessoas chegaram, todas, usando máscaras e tirando somente quando sentadas a mesa. Parecia que essa seria configuração do lugar. Até que às 17h45 – faltando 15 minutos para o início – começaram a chegar mais pessoas – a maioria dessas, agora, sem máscaras –, e em minutos, as três mesas situadas próximas viraram seis, já não obedeciam o distanciamento social e mais umas duas dezenas de torcedores estavam de pé no limite entre a calçada e a rua, prontos, para o início da partida. Ao todo, contabilizamos 32 pessoas no lugar, sendo quatro mulheres – ambas acompanhadas por homens que aparentavam serem seus companheiros afetivos -, uma criança e 27 homens.

Foto: Reprodução CBF / Tati Dias | Ascom Clube do Remo

Fenômeno azul e o Remismo

Quando a bola rolou, teve início também as interações que tinham como ponto focal a televisão. Os torcedores comunicavam-se em voz alta e a cada lance, bom ou ruim do time, atravessava a jocosidade algo recorrente das homo sociabilidades masculinas nos ambientes futebolísticos (GASTALDO, 2016). Diz-se isso, pelo ato de até então apenas os homens presentes no bar estarem se manifestando após os lances.

O jogo estava tenso, já que o time visitante impôs uma forte marcação ao time do Remo, fazendo com que esse tivesse grande dificuldade de atacar. Foi assim durante os primeiros minutos o que impôs um certo silêncio e as interações eram menores. Durante a partida, fomos ao banheiro duas vezes, em cada tempo, visando observar as interações. Notamos que apenas duas pessoas estavam de máscaras e todas aglomeradas disputando o pouco espaço da calçada do bar.

 Aos 18′ do primeiro tempo, a senhora que assistia ao jogo com seu marido na única mesa situada dentro do bar gritou: “Pega, caralho! Aqui é Remo, porra!’’ seguido de pulos e abraços, assustando os demais presentes no bar. Cerca de 30 segundos depois o gol do Remo é transmitido pela plataforma de streaming e o restante do bar também comemorou com gritos, pulos e abraços.

O fato do casal citado também estar acompanhando o jogo por um radinho de pilha explica a ação, já que o tempo de reposta no rádio é menor que o da plataforma. Aos 28 minutos do segundo tempo quando o Clube do Remo marcou o segundo gol, assim como, aos 29, quando um pênalti foi marcado em favor do Ferroviário e convertido pelo mesmo a ação da mulher se repetiu. Desde então ela tornou-se uma espécie de maestra da transmissão no bar, pois a cada lance do jogo ela se manifestava contagiava os demais presentes que a seguiam. Até os cânticos de arquibancada eram puxados por ela e cantados pelos demais.

Isso nos possibilitou lembrar do que diz Elias (1985) sobre a excitação. O amor, a alegria, a dor e a raiva foram sentimentos partilhados afetivamente pelos torcedores, no bar, e fundamentais para que conseguíssemos ressignificar a prática do torcer em meio ao distanciamento social e compreender as socialidades enquanto prática social do viver coletivamente a emoção.

Aos 40 minutos do segundo tempo, a senhora começou a puxar o grito “Uuú… secador tomou…’’, o que causou um verdadeiro estado de euforia nos/as demais que também cantaram em coro com ela. Minutos depois, um homem disse em voz mediana: “Ei tia, grita Bolsonaro”, e em resposta ela gritou: ‘’Vai te fuder tu e ele. Aqui é Remo, porra!’’, o que causou um visível constrangimento ao homem, seguido de risos aos demais presentes. Mas nada que cortasse o clima do lugar.”

Essas atitudes nos permitiram fazer analogias aos torcedores emocionalmente engajados que discorre Damo (2015: p.65): “Pertencimento define melhor aqueles que se deixam permear pela performance da equipe que representa o clube, os que têm seu humor alterado em função dos êxitos e fracassos. O pertencimento denota uma modalidade de envolvimento propriamente intensa, equivalente ao que os nativos caracterizam como “torcedor fanático”, “doente”, “cego”, etc”. Para os torcedores azulinos, o termo remismo é análogo ao clubismo e é utilizado para justificar atitudes ou situações que, na opinião dos torcedores adversários, são extremas e que representam o amor pelo Remo. Por exemplo, da torcedora-maestra.

A palavra Remismo é um termo nativo que expressa o sentimento dos azulinos pelo clube e é utilizado para justificar atitudes consideradas irracionais por quem não faz parte desse grupo social. As experiências vivenciadas pelos remistas em sua quotidianeidade  e, portanto, práticas sociais que refletem a dimensão dimensão sensível da interação social.

 Passados alguns minutos, a torcedora voltou a puxar o coro: ‘’Remo… Remo…’’, até que jogo finalizou sob aplausos dos presentes. Ao término da partida, o gerente desligou as tevês e a música que tocava ao fundo e solicitou, em voz alta, que as pessoas pagassem as suas contas e se retirassem o mais breve possível. Notamos que nada mudou em relação ao comportamento dos torcedores, apesar dos esforços dos funcionários do estabelecimento, para que as medidas de segurança fossem seguidas.

Com a proibição de público nos estádios para assistir os jogos durante a pandemia, era de se imaginar que os bares iriam receber grande parte desses torcedores, além dos muitos que já costumam assistir aos jogos dos seus clubes exclusivamente nesses espaços. Nesse sentido, autorizar o retorno dos jogos de futebol com portões fechados, acreditando que essa única medida bastaria para que não ocorressem aglomerações em outros lugares para assistir aos jogos dos clubes, no mínimo é desconhecer ou subestimar a influência que esse esporte possui nas socialidades de grande parcela da sociedade brasileira. 

No tocante à cidade de Belém do Pará essa situação torna-se ainda mais complexa com o fato de que até a realização dessa pesquisa apenas restaurantes estavam autorizados a funcionarem, conforme parâmetros estabelecidos pelo decreto municipal nº 96542 de 24/06/2020, ou seja, podemos inferir que as estratégias dos donos de bares para receber os torcedores em dias de jogos estão sendo, talvez, mais eficazes que as das autoridades municipais, cabendo às ultimas buscar novas táticas de enfrentamento ao COVID-19. 

Nós ficaremos na torcida para que nesse duelo de fatos sociais totais o bom senso dos amantes do futebol no Brasil prevaleça ao cumprir as normas de segurança necessárias de combate ao avanço da pandemia quando forem aos bares torcer para os seus clubes. 

*Texto construído a partir de debates no GEFE.

Notas

[1] Segundo dados do Ministério da Saúde, a pandemia tem vitimado milhares de brasileiros já acumulando mais de 4 milhões de casos e 110 mil mortos no país (dados de setembro de 2020).

[2] As arquibancadas de trás traves são conhecidas como 25 de setembro, por estar próximo à antiga av. 25 de setembro que hoje se chama Rômulo Maiorana e Almirante Barroso, por estar próximo de uma avenida de mesmo nome. Como o sol se põe para o lado da arquibancada da 25 de setembro, assistir uma partida no lado da Almirante Barroso durante a tarde é sempre uma tarefa desgastante, pelo fato de sol bater de frente aos expectadores. Por isso a comparação entre o lugar que sentamos no bar com esta arquibancada.

Referências

ELIAS, Norbet and DUNNING, Eric. The Quest for Excitement. DIFEL — Difusão Editorial, Lisboa, 1985

CORNELSEN, BRINATI e GUIMARÃES (org). Futebol, Fato Social Total. Viva Voz. FALE/UFMG: Belo Horizonte. 2020.

DAMO, Arlei.Para o que der e vier: o pertencimento clubístico no futebol brasileiro a partir do Grêmio Foot-ball Porto-Alegrense. Dissertação de mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1998.

DAMO, Arlei. Dom à profissão: uma etnografia do futebol de espetáculo a partir da formação de jogadores no Brasil e França. Tese de doutorado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2005. Acesso em: 25 de janeiro de 2017.

GASTALDO, Édison. O fato social total brasileiro: Uma perspectiva etnográfica sobre a recepção pública da Copa do Mundo no BrasilHorizontes antropológicos, n. 40, p. 185-200, 20­13.

GASTALDO, Edison. Estudos Sociais do Esporte: vicissitudes e possibilidades de um campo em formaçãoLogos, [S.l.], v. 17, n. 2, p. 6-15, set. 2010. ISSN 1982-2391. Acesso em: 21 set. 2020. 

MAFFESOLI, Michel. Elogio da razão sensível. Tradução de Albert Christophe Migueis Stuckenbruck. – Petrópolis, RJ :Vozes, 1995.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Aline M. C Freitas

Doutoranda em Antropologia|Mestra em Ciência da Comunicação| Docente| Jornalista | Consultora de Marketing. 

Felipe Damasceno

Cientista Social; Mestrando em antropologia (PPGA/UFPA).

Como citar

FREITAS, Aline Meriane do Carmo de; DAMASCENO, Felipe. O torcer-junto em distanciamento social (?): um relato etnográfico em um bar de Belém. Ludopédio, São Paulo, v. 136, n. 21, 2020.
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