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A cena do boxe: o truque de Ali (parte XII)

José Paulo Florenzano 3 de dezembro de 2020

Em setembro de 1974, Muhammad Ali e George Foreman desembarcaram na cidade de Kinshasa, capital do Zaire, atual República Democrática do Congo, para a disputa do título máximo da categoria dos pesos-pesados. Em torno de cada um dos pugilistas, veio a se estabelecer um alinhamento político-ideológico de forças que se opunham e se enfrentavam em diversas arenas – inclusive a do boxe. Mais do que nunca, o ringue se configurava em uma área circunstancialmente quente, aberta e propícia à ação transformadora dos agentes esportivos.[1] A elevação da temperatura histórica no pugilismo, por sua vez, baseava-se em uma soma potencialmente explosiva de fatores sociais, políticos e culturais, interconectados em uma conjuntura em si própria efervescente.

A exacerbação do dilema racial nos Estados Unidos, a emancipação política dos países da África Negra, a presença de uma plêiade de boxeadores habilidosos e carismáticos entrelaçavam-se na disputa do cinturão dos pesos-pesados, condensando as “macrorrelações” em curso na esfera mais abrangente da sociedade global em “microatos” elaborados e desenvolvidos no espaço exíguo do ringue.[2]

O confronto de Kinshasa, a rigor, começou a ser escrito um ano antes, na cidade de Kingston, capital da Jamaica, quando o então campeão, Joe Frazier, acabou derrotado por nocaute técnico, no segundo assalto, pelo desafiante George Foreman, no combate realizado na noite de 21 de janeiro de 1973. Aos 24 anos de idade, completados naquela mesma noite em que levou por seis vezes em cinco minutos o adversário à lona, o novo detentor do cinturão concretizava uma ascensão meteórica e arrebatadora iniciada nos Jogos Olímpicos do México, em 1968. Quinto filho de uma família de sete irmãos, nascido em um gueto negro, preso como “delinquente”, George Foreman passou a lutar boxe com o objetivo prosaico de “arranjar um emprego”.[3] Todavia, em um curto lapso de tempo, ele desenvolveu uma carreira brilhante que o apresentava, às vésperas do combate em Kinshasa, com um cartel invejável e atemorizador de quarenta vitórias em quarenta lutas, trinta e sete das quais vencidas por nocaute.[4]

Poster da luta conhecida como “The rumble in the jungle”. Foto: Wikipedia.

O retrospecto recente do desafiante, Muhammad Ali, estava longe de descrever a mesma linha ascendente exibida pelo adversário. Ao contrário, ele registrava insucessos que, se não chegavam a tirar por completo a confiança dos admiradores, enchia-os de hesitação e dúvida. Invicto até a suspensão imposta pela Justiça Federal, em 1967, o controvertido pugilista buscava a duras penas reencontrar a velha forma. Os três anos em que ficara proscrito dos tablados, porém, cobravam-lhe um preço elevado, conforme demonstravam as derrotas para Joe Frazier, em 1971, e para Ken Norton, em 1973.

O Estado de S. Paulo, após analisá-las em pormenor, formulava aos leitores a pergunta que circulava no universo do boxe: “A borboleta ferida voltará a voar?”[5] A manchete aludia ao estilo consagrado pelo pugilista nos tablados: Float like a butterfly, sting like a bee, isto é, “voar como uma borboleta e picar como uma abelha”.[6] As opiniões encontravam-se divididas. De uma parte, havia o grupo dos otimistas que julgavam os reveses como acidentes de percurso e apostavam na recuperação de Ali. De outra parte, porém, havia o grupo dos céticos que cravavam uma resposta negativa e expressavam-na em termos peremptórios: “Ali estava acabado”. Isto porque o pugilista sofrera uma metamorfose. Ele “já não era nem a borboleta nem a abelha: estava gordo e lento”.[7] A prova: o maxilar inferior trincado em três regiões pelo gancho de esquerda desferido por Ken Norton, um lutador negro de 28 anos, ex-fuzileiro naval, que na noite de sábado, 31 de março, na cidade de San Diego, vencera por pontos o combate travado em doze assaltos.

Todavia, contrariando os prognósticos mais pessimistas, Muhammad Ali recuperou-se das derrotas infligidas pelos adversários, cicatrizando as feridas, readquirindo a forma e superando os obstáculos, o principal deles, o novo confronto com Joe Frazier, vencido por pontos no Madison Square Garden, em 28 de janeiro de 1974. Dessa maneira, delineando uma trajetória feita de altos e baixos, o Atleta de Alá aterrissava na capital do Zaire, em setembro de 1974, para o desafio do título mundial, exibindo a agilidade de sempre com as palavras:

Sinto-me como em minha própria casa. Considero George Foreman como o estrangeiro.[8]

Um corte no supercílio direito de Foreman durante os treinamentos adiou a luta por um mês. Foto: Wikipedia.

Transformada em uma verdadeira festa popular, a sua chegada deixava claro para qual dos dois lados propendia o apoio da torcida zairense. Muhammad Ali, em retribuição, prometia dizer “aos meus irmãos e irmãs negros nos Estados Unidos sobre a forma como fui recebido”.[9] O pugilista mostrava-se hábil nos jogos de classificação. Ao invés de se apresentar nas vestes de um simples herói esportivo, ele reivindicava a condição política de representante dos afro-americanos. Esta clivagem lhe permitia identificar-se com os anfitriões, ao mesmo tempo em que convertia metaforicamente o adversário negro em um oponente branco, isto é, no representante do establishment estadunidense. Devido ao modo como George Foreman havia celebrado a conquista da medalha de ouro nos Jogos Olímpicos do México, a saber, enrolado na bandeira dos Estados Unidos, Muhammad Ali se referia ao adversário como “homem branco”.[10]

Ao mesmo tempo, declarava ao presidente do Zaire que “ele estava em um país no qual se sentia livre”.[11] Ao criticar indiretamente a opressão imposta aos negros nos Estados Unidos, a provocação atingia o alvo, explicitando as contradições da nação que se arvorava o título de maior democracia do mundo. No entanto, transposta para o Zaire, ela produzia o mesmo tipo de distorção que pretendia denunciar na “América”, pois, sob o governo de Mobuto Sese Seko, o ex-Congo belga despontava como uma ditadura encravada no coração da África, responsável por manter na miséria a imensa maioria da população.[12]

Instalado no poder desde meados da década de sessenta, o autocrata recorria ao esporte como instrumento de propaganda política, tanto para assegurar internamente a dominação imposta pelo Movimento Popular da Revolução, o partido-Estado, quanto para pleitear externamente a liderança no continente africano.[13] Mobuto Sese Seko não poupava esforços nem dinheiro na consecução deste duplo objetivo. De fato, para retirar a decisão do título mundial dos pesos-pesados do Madison Square Garden, onde estava inicialmente agendada, e trazê-la para Kinshasa, colocando o governo do Zaire na posição de copromotor do evento, o ditador desembolsou à época uma quantia estimada em cerca de doze milhões de dólares. A ofensiva diplomática incluía ainda uma segunda linha de ação. Também em Kinshasa, pouco antes da luta, realizou-se o Black Woodstock com as presenças de Miram Makeba, B. B. King e James Brown, dentre outros expoentes da música negra, instrumentalizados pelo tirano local para promover a imagem do país.[14]

O festival e a luta inseriam-se na mesma estratégia destinada a atrair os holofotes do mundo sobre o país emergente da África Central. Ali pulsavam esperanças de revanche simbólica, expectativas de dividendos políticos, apostas de retorno financeiro, elementos que se mesclavam na promoção de um evento histórico que agora atraía a atenção de uma audiência planetária. Nas casas de aposta, em Londres, a cotação de três para um indicava o amplo favoritismo atribuído pelo público e pela crônica a George Foreman.[15] Sendo assim, com esta expectativa, às quatro horas da madrugada, horário de Kinshasa, diante de uma plateia estimada em cerca de sessenta mil espectadores, teve início o aguardado combate. E, com ele, a perplexidade que logo tomaria conta de todos os que tinham os olhos voltados para o tablado erguido no centro do estádio 20 de Maio, na capital do Zaire, no coração da África.

Com efeito, ao invés de dançar como uma borboleta e picar como uma abelha, consoante o estilo que o consagrara ao longo da carreira, Muhammad Ali se limitava a atrair o adversário para as cordas, protegendo-se de todas as formas das investidas do adversário, permitindo-se apenas alguns contragolpes inseridos dentro de uma estratégia defensiva. Para Norman Mailer, presente ao estádio onde se desenrolava a luta, havia nessa estratégia “uma semelhança verdadeira com o xadrez”. De acordo com o escritor estadunidense, prevalecera durante muito tempo a ideia de que a chave do jogo para o xadrezista residia no controle sobre o centro do tabuleiro, condição necessária para obter maior mobilidade e movimentar mais livremente as peças. A revolução no jogo de xadrez veio colocar em xeque esta crença, demonstrando que, ao lado das vantagens, a invasão precipitada da referida área comportava também riscos, sendo mais conveniente ocupá-la somente “depois que o adversário estivesse comprometido com uma linha de ação”.[16] Mutatis mutandis era precisamente o que ocorria no estádio de Kinshasa onde George Foreman exercia pleno domínio do centro do tablado, ponto a partir do qual colocava em prática a proposta de reduzir os espaços de Muhammad Ali, fazê-lo retroceder até as cordas, fechar-lhe todas as saídas e, então, projetar-se sobre o rival para transformá-lo literalmente em um saco de pancadas.

Foreman tenta golpe enquanto Ali se esquiva nas cordas. Foto: Wikipedia.

Antevendo esta linha de ação, o Atleta de Alá cedera o centro do ringue para o adversário e o atraíra para as cordas. Agindo assim, ele seguia a revolução conceitual no xadrez cuja aplicação prática, por sua vez, requeria o brilho tático no espaço exíguo em que a pugna se desenrolava, habilidade analítica que Muhammad Ali exibia naquela madrugada em Kinshasa, ora esquivando-se dos golpes que lhe eram endereçados, ora agarrando o oponente para interromper a sequência de socos que o alvejavam, exigindo a todo instante a mediação do árbitro para separar os corpos e recomeçar o combate, reposicionando os lutadores no centro do ringue. E a cena se repetia a cada assalto. Ali inclinado nas cordas. Foreman em cima dele. O abraço no adversário. A intervenção do árbitro. A retomada do combate.

A estratégia pugilística, portanto, consistia em cansar e irritar o contendor, deixando-o esgotar-se nos golpes, exaurindo suas forças para, somente então, partir para a ofensiva. George Foreman, de fato, “em nenhum momento pareceu dar-se conta de que estava caindo numa armadilha”.[17] Quando afinal se apercebera do ardil montado pelo desafiante, no intervalo do sétimo para o oitavo assalto, já era tarde demais. Na edição da quinta-feira, os jornais do mundo inteiro estampavam na primeira página o inesperado desfecho da mais extraordinária luta da história do boxe:

Muhammad Ali acerta cruzado de direita em Foreman. Foto: Wikipedia.

Com um gancho de esquerda, seguido de um cruzado de direita, Muhammad Ali colocou George Foreman a nocaute, no 8º assalto da luta disputada ontem à noite, em Kinshasa, no Zaire. Com a vitória, Ali recuperou o título de campeão mundial, do qual fora despojado em 1967.[18]

Contrariando as previsões que o davam por decadente e acabado, Muhammad Ali superou o temível rival e repetiu o feito de Floyd Patterson, tornando-se o segundo peso-pesado da história do boxe a recuperar o título mundial. Ainda naquela madrugada, o novo campeão atendia aos jornalistas que o assediavam em busca de uma explicação para o feito histórico: “O poder de Alá me proporcionou a vitória”.[19] Mas, além da razão transcendente, havia também uma razão prosaica: “Eu não dancei, esse foi o truque.”[20]

O truque de Ali foi o de ter convertido o tablado de boxe em um tabuleiro de xadrez, com as peças dispostas de acordo com um plano divino, cabendo-lhe na trama do jogo exercer a arte de uma aparente imobilidade. “Nunca mais digam que há outro melhor”, dizia o Atleta de Alá aos jornalistas atônitos. “Agora vocês sabem que ninguém é melhor que Muhammad Ali”.[21]


Notas

[1] Sahlins, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1990, p. 14.

[2] Sahlins, Marshall. História e Cultura: apologias a Tucídides. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2006, p. 128.

[3] Cf. “Foreman não quer enfrentar Frazier, nem Ali”, O Estado de S. Paulo, 24 de janeiro de 1973.

[4] Cf. “Foreman 3-1 over Ali in Zaire”, The New York Times, 29 de outubro de 1974. O Estado apresentava números diversos, trinta e nove vitórias em trinta e nove lutas. Cf.  “Foreman vs. Ali, folclore, dinheiro, boxe”, O Estado de S. Paulo, 29 de outubro de 1974. 

[5] Cf. “A borboleta ferida voltará a voar?”, O Estado de S. Paulo, 3 de abril de 1973.

[6] Oriard. Michael. Muhammad Ali: The Hero in the Age of Mass Media. In: Muhammad Ali: the People`s Champ. Edited by Elliot J. Gorn. Chicago: University of Illinois Press, 1997, p. 8.

[7] Cf. “A borboleta ferida voltará a voar?”, O Estado de S. Paulo, 3 de abril de 1973. Esta apreciação também comparecia na análise do colunista esportivo Dave Anderson, enviado especial do The New York Times a Kinshasa. Cf. “Zaire`s $10-Million Bet”, 27 de outubro de 1974.

[8] Cf. “Clay tenta obter apoio da torcida”, O Estado de S. Paulo, 12 de setembro de 1974.

[9] Cf. “Clay tenta obter apoio da torcida”, O Estado de S. Paulo, 12 de setembro de 1974.

[10] Cf.  Mailer, Norman. A luta. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.

[11] Cf. “Apenas o esporte consegue aproximá-los”, O Estado de S. Paulo, 29 de outubro de 1974. Com efeito, Muhammad Ali referia-se ao Zaire como “meu país”. Cf. “George Foreman and the Pol Parrot”, by Dave Anderson, The New York Times, 25 de outubro de 1974.

[12]Segundo Leon Gast, diretor de “Quando éramos reis”, documentário sobre a luta no Zaire, exibido e premiado no Festival de Sundance, em 1997, para Muhammad Ali, a viagem “simbolizava um retorno à África.” E acrescenta: “Ele só aceitou por isso. Mas na época, o Zaire era um forte aliado dos Estados Unidos, e Mobutu não era visto como um vilão, como é hoje”. Cf. “Quando os reis se encontraram em plena África”, entrevista concedida ao Jornal do Brasil, 17 de julho de 1997.

[13] Cf. Mailer, Norman, op. cit. Cf. “Putting Zaire on the map”. J.J. Grimond, The Economist, matéria republicada no The New York Times Magazine, 8 de setembro de 1974.  

[14] Segundo Leon Gast: “Hoje em dia, a uma postura bem mais crítica em relação ao evento, principalmente quanto aos recursos que o financiaram e aos objetivos de Mobutu, que queria vender o Zaire para o mundo usando a imagem daqueles artistas”. Cf. “Quando os reis se encontraram em plena África”, entrevista concedida ao Jornal do Brasil, 17 de julho de 1997. 

[15] Cf. “Odds on Foreman to Retain Title Rise to 3-1”, The New York Times, 27 de outubro de 1974.

[16] Cf. Mailer, Norman, op. cit. p. 190-192.

[17] Cf. “Ouçam, Ali é novamente o maior do mundo”, O Estado de S. Paulo, 30 de outubro de 1974.

[18] Cf. “Ali, no 8º”, O Estado de S. Paulo, 30 de outubro de 1974.

[19] Cf. “Ali, no 8º”, O Estado de S. Paulo, 30 de outubro de 1974.

[20] Cf. “`I didn`t Dance, that was the Trick`”, by Dave Anderson, The New York Times, 31 de outubro de 1974.

[21] Cf. “Ouçam, Ali é novamente o maior do mundo”, O Estado de S. Paulo, 30 de outubro de 1974.


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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. A cena do boxe: o truque de Ali (parte XII). Ludopédio, São Paulo, v. 138, n. 8, 2020.
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