153.24

O urubu que logo sou… que logo somos

Elder Silva Correia, Fabio Zoboli 21 de março de 2022

A intenção que temos com a presente crônica é relacionar o urubu (mascote do Flamengo) com a “identidade” do negro pobre, ao mesmo tempo em que trazemos um acontecimento envolvendo a ave, num jogo contra o rival time do Botafogo. O argumento que defendemos é o de que o urubu, enquanto mascote, é expressão da variação contínua da experiência de ser rubro-negro.

Em crônica anterior tratamos do “mito fundador” que coroou o “urubu” como mascote do Flamengo. Rememoremos: na década de 1960, os membros da torcida do Flamengo começaram a ser pejorativamente denominados de “urubus”. Tal nomeação impositiva se deu, pois grande parte da torcida do Mengão era composta por uma população de negros pobres. A pobreza sempre esteve veiculada, em nosso imaginário, àqueles/as à margem do acesso aos bens materiais, remetendo-nos à figura de pedintes, que vivem do lixo, das sobras e não têm perspectivas. Pela cor da ave e por ela se alimentar do resto ou da carniça dos animais mortos, o “urubu” se tornou ícone e símbolo desta grande torcida via associação com o negro pobre. Assim, a identidade com a ave demarca um signo capaz de gerar uma identificação da comunidade consigo mesma, não somente com o urubu.

No entanto, é importante mencionar que não foi só esta assimilação pura, simples e direta do urubu como referencial identitário da torcida que prevaleceu. Houve um acontecimento que deu traços novos a tal significação. Ao final da década de 1960 (mais precisamente em maio de 1969), um torcedor do Flamengo levou um urubu para o Maracanã, o qual sobrevoou o estádio e caiu ali no gramado, preso a uma flâmula do clube, bem antes do início do jogo. Esse dramático e significativo acontecimento acabaria passando para a história do clube (e de sua torcida) como um ato sintomático de uma sorte sem precedentes: nesse dia, o Flamengo vencera o rival Botafogo por 2 x 1 e quebrara o jejum de nove jogos sem ganhar da equipe de General Severiano. Dito ocorrido em torno do urubu é central para compreendermos a formação da identidade de uma torcida a partir de uma espécie de “mito fundador”.

A mascote, então, passa a noção de pertencimento estando no cruzamento e na mescla dessas duas relações: o signo do urubu e o acontecimento (como fato) propriamente dito. Dessa forma, vemos expostos, por um lado, a cópia, o coletivo, o senso comum, o naturalizado, dados pela figura do “urubu”; por outro, vemos expostas a diferença na repetição, a alteridade, a novidade, a singularidade, marcadas pela capacidade do urubu ser capaz de produzir acontecimentos múltiplos. A capacidade humana de enredar sortilégios por meio de acontecimentos ligados aos urubus consiste no ato de diferença, que permite à torcida não se alienar totalmente diante da figura do urubu, ao mesmo tempo em que abre um horizonte de possibilidades para uma identidade a ser construída coletiva e individualmente. Tudo isso que escrevemos até aqui serve para elucidar duas coisas: 1) o urubu é signo, sim, do negro pobre que historicamente tem sua relação com a torcida do clube; 2) no entanto, o urubu também é símbolo de toda uma torcida multicor – afinal, “o Flamengo é de todos”!

Urubu Flamengo
Fonte: Reprodução YouTube FlaTV

O encontro entre o signo do urubu e o acontecimento proporcionado por ele não acabou por produzir uma essência de urubu “ad eternum”, nem uma representação fiel da nação rubro-negra. Se inicialmente foi possível ligar a imagem do urubu com a torcida do Flamengo a partir de signos que já estavam sedimentados, o “ato fundador” narrado abriu uma fenda por onde toda a nação rubro-negra foi arrastada, uma fenda de perpétua produção de sentidos múltiplos e singulares acerca do urubu e da própria torcida. Essa fenda é um verdadeiro vetor de atualização do urubu e da torcida, operando uma variação contínua de sentidos que emergem a cada ressonância do urubu com sua gigantesca e múltipla torcida.

Se o urubu não diz a coisa em si, ou seja, uma verdadeira essência da torcida, é porque ele diz sobre seus acontecimentos – no sentido deleuzo-guattariano[2] do termo, uma redistribuição dos sentidos da realidade, uma espécie de inflexão na experiência. Ele nem mesmo é uma coisa, pois é também um “acontecimento”, haja vista que é experienciado de diversas maneiras ao mesmo tempo, no instante em que cada torcedor se encontra com ele. Em tal sentido, o “acontecimento urubu” é impessoal e singular ao mesmo tempo. Explicamos melhor: impessoal na medida em que é uma espécie de vetor de diferenciação de sentidos. Singular quando é apreendido do ponto de vista daquele/a – torcedor/a – que o encontra.

O Urubu é impessoal – enquanto expressa uma produção infinita de sentidos. O Urubu é singular – quando diz respeito àquele urubu marcado no corpo do/a torcedor/a através de uma tatuagem, pintado em sua bandeira, ou estampado na camisa que faz alusão ao clube. O urubu que o torcedor encontra na rua e logo o identifica como signo do Flamengo, ou o que faz lembrar de si mesmo ao se encontrar com estigmas que atravessam seu corpo. É o urubu que nos faz experimentar o afeto do intolerável, permitindo jamais naturalizar a pobreza, a desigualdade, o preconceito, a homofobia, o racismo, que cotidianamente estão na vida de diversas pessoas, para muito além daqueles que compõe a nação rubro-negra. Mas é também esse mesmo urubu que não nos reduz aos estigmas e que é expressão da vida de todo o torcedor que faz parte da grande massa rubro-negra. É o urubu de todos/as aqueles/as que têm o Galinho de Quintino como ídolo maior; que têm no vermelho e no preto as cores do sagrado; daqueles que dominicalmente, como uma espécie de liturgia com hora e lugar para acontecer, comemoram o balançar das redes nos estádios onde o Flamengo joga. Em suma: é o urubu que expressa todo espectro de variação contínua das experiências que nos tornam, cotidianamente, flamenguistas.

É por essas e outras que “o urubu que logo sou” é também “o urubu que logo somos”!

Notas

[1] Ver crônica “Jogadores animais do mengão: galo, biguá, onça, bode, pavão…” in:  https://ludopedio.org.br/arquibancada/jogadores-animais-do-mengao-galo-bigua-onca-bode-pavao/

[2] A noção de acontecimento que aqui trabalhamos faz parte do pensamento do filósofo francês, Gilles Deleuze. Em seu livro Lógica do sentido, Deleuze se dedica fortemente em aproximar o conceito de acontecimento com a gênese do sentido. Já em sua parceria com o psicanalista, também francês, Félix Guattari, principalmente nos livros O que é a filosofia? e Mil Platôs, os autores radicalizam a dupla estrutura do acontecimento, demonstrando a potência paradoxal de tal conceito: a mútua inclusão entre o que há de impessoal no acontecimento e o que há de singular, ou hecceidade, como insistem os autores.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Elder Silva Correia

Mestre em Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo - UFES. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e Política" da Universidade Federal de Sergipe - UFS.

Fabio Zoboli

Professor do Departamento de Educação Física da Universidade Federal de Sergipe - UFS. Membro do Grupo de pesquisa "Corpo e política".

Como citar

CORREIA, Elder Silva; ZOBOLI, Fabio. O urubu que logo sou… que logo somos. Ludopédio, São Paulo, v. 153, n. 24, 2022.
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