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O vácuo que a pandemia está deixando nas categorias de base

Uma das características do fenômeno esportivo é a busca pela quantificação ou contagem de escores, que difere da ludicidade presente no jogo e reiniciada continuamente. No esporte a perspectiva é avançar, os registros das marcas, dos recordes, dos resultados, dos títulos e do próprio tempo para sua realização. A quantificação dos resultados conta a história de diversas modalidades e dos seus heróis, os campeões.

No futebol, por exemplo, uma partida é realizada em 90 minutos, mais o tempo extra de acréscimos indicados pela arbitragem. A percepção do tempo está relacionada com o tipo de interação, já foi dito que em uma partida morna ou ruim, o tempo não passa. Em outras, o embate é tão empolgante que o tempo voa. Semelhança encontramos quando nosso time está perdendo, os minutos são como segundos e a relação se inverte quando estamos vencendo e sendo pressionados pelo adversário, os minutos se arrastam em lentidão. Quem não vivenciou tal relação com o relógio durante uma partida, com um gol redentor nos acréscimos, não saberá o que estamos dizendo.

O tempo cronológico (Khronos), limitado aos 90 e poucos minutos serve para descrever o embate, o entretenimento. O ato do espetáculo precisa somar também o tempo dedicado aos preparativos para a partida e sua posterior repercussão. Atletas, torcedores, apoio logístico, segurança, equipe médica, ambulância, policiamento, secretaria do clube e os veículos de imprensa, fazem esse tempo acontecer e em muitas oportunidades eternizam lances, derrotas e vitórias.

Para o espetáculo acontecer diversos tempos são necessários, é outro lado da bola, exemplo da formação de atletas. Um tempo contado em horas e anos de dedicação, mais precisamente pela idade dos atletas que pertencem às categorias de base (sub-11, sub-13, sub-15, sub-17, sub-20 e sub-23).

No filme “Linha de passe” dos diretores Walter Salles e Daniela Thomas, o personagem Dinho participa de uma “peneira”, processo de seleção para ingresso nas categorias de base de um clube de futebol. Dinho é selecionado, porém, quando mostra seu documento de identidade ao treinador, ele diz que: “- o tempo é duro para o atleta.” Completando que atletas como a mesma habilidade do Dinho existem muitos, só que com quinze anos de idade, ele já mais velho não desperta interesse. No contemporâneo, o investimento dos clubes em categorias sub-11 e sub-13 demonstra a necessidade de antecipar a formação, cada vez mais cedo, se deseja descobrir as pedras preciosas para iniciar sua lapidação.

O tempo é duro para o atleta, a idade quando relacionada a contusões e adiamento de competições, significa um período que não volta mais, em alguns casos compromete o desempenho do esportista quando este se encontra no auge da forma atlética. Os atletas que participam da formação esportiva institucionalizada nos clubes, o tempo é muito cruel, pois, a perda de treinamentos e competições significa não ser observado pelos olhares do futebol, e como diz o ditado “quem não é visto, não é lembrado”.

Em outro texto discutiremos sobre os desafios da formação que envolvem separações, deixar a família, distanciar-se de amigos, mudar de cidade, limitar práticas corporais para evitar acidentes ou contusões, privação de alimentos para manter a forma física etc.

Os anos de 2020 e 2021 criaram um vácuo na formação das categorias de base do futebol, algo que também pode ser percebido em outras modalidades esportivas. Os clubes durante o auge da pandemia da COVID-19 fecharam seus centros de treinamento, cancelaram as peneiras e competições foram suspensas. Apenas as categorias mais próximas do profissional foram mantidas (sub-20 e sub-23), pois, nelas a maioria dos atletas possui contrato de trabalho formal, o que não impediu a realização de atividades remotas nos primeiros meses da pandemia. No momento atual, muitos clubes ainda não retomaram as atividades da base, competições estão sendo realizadas no intuito de ser um período teste com um número reduzido de equipes.

O desafio que se impõe no momento é a retomada das atividades, principalmente, das categorias sub-15 e sub-17, o vácuo de quase 2 anos de formação institucional que praticamente não existiu para um grupo de jovens sonhadores que já se encontravam residindo nos alojamentos dos clubes, longe de casa, com contratos de formação vigentes, ou que justamente buscavam entrar neste universo profissionalizante, significa uma grande perda de oportunidade. Não estamos falamos apenas de treinamento e competições, ao dar destaque a inexistência da formação institucional, identificamos a restrição a alimentação (nutrição), cuidados com a saúde, condicionamento físico, técnico e tático, além do desenvolvimento emocional do jovem e atleta.

Crianças
Foto: Ricardo Stuckert / CBF

Infelizmente, muitos jovens atletas perderam, em razão da pandemia, a oportunidade de receber uma formação nos clubes. “O tempo é duro para o atleta” e a pandemia significou um complicador para aqueles que sonham com um futuro promissor no futebol. Claro, não podemos desconsiderar casos como Nilton Santos, Jonas, Grafite, Leandro Damião e Bruno Henrique, descobertos as vésperas da profissionalização. Esses são bons exemplos para que a esperança seja sempre mantida, mas são pontos fora da curva, exceções.

Continuaremos assistindo às partidas e acompanhado campeonatos, muitos de nós não iremos perceber, mas nesses quase dois anos de pandemia uma geração de atletas deixou de ser observada e reconhecida nos muitos campos de treinamento. Acrescentamos ainda nesse grupo outros profissionais da bola, como treinadores em início de carreira, membros da comissão técnica, árbitros etc. A realidade do tempo que passa e não volta mais é dura, sua justificativa para aceitá-la é ainda mais cruel, como na resposta dada ao personagem Dinho. Infelizmente, na retomada das categorias de base quem ficou no vácuo não será um problema, pois, iguais aos que perderam a oportunidade temos muitos com a mesma esperança e com a suposta idade adequada a partir do próximo ano. O tempo até pode parar para os candidatos a atleta profissional,  mas a bola continua sempre rolando.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Daniel Machado da Conceição

Doutor em Educação, Mestre em Educação e Cientista Social pela UFSC. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (NEPESC/UFSC), Grupo Esporte & Sociedade.

Lucas Barreto Klein

Doutor em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Educação e Sociedade Contemporânea (UFSC/CED/CNPq).

Como citar

CONCEIçãO, Daniel Machado da; KLEIN, Lucas Barreto. O vácuo que a pandemia está deixando nas categorias de base. Ludopédio, São Paulo, v. 148, n. 31, 2021.
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