147.3

O valor de uma medalha

José Paulo Florenzano 2 de setembro de 2021

As significações de uma vitória ou de uma derrota mudam ao longo do tempo e variam de uma sociedade para outra. É preciso, portanto, relativizá-los para além de um horizonte semântico comum  que os envolve e define aos olhos dos competidores, analistas e espectadores. Nesse sentido, talvez seja elucidativo a realização de um breve exercício comparativo envolvendo as performances de Vanderlei Cordeiro de Lima, nos Jogos de Atenas em 2004, e a de Kokichi Tsuburaya, nos Jogos de Tóquio em 1964. De fato, ambos subiram ao pódio para receber a medalha de bronze, mas, enquanto a do primeiro se revestia de um valor positivo, simbolizando vitória e orgulho, a do segundo expressava um valor negativo, denotando derrota e vergonha. Como explicar tamanho contraste? Para respondermos a essa indagação, devemos reconstituir ainda que brevemente as trajetórias dos dois maratonistas.

De boia-fria no interior do Paraná à atleta olímpico em Atenas, o percurso trilhado por Vanderlei Cordeiro de Lima foi longo e repleto de privações e provações. Todavia, depois de conquistar o bicampeonato nos Jogos Pan-Americanos de Winnipeg (1999) e de Santo Domingo (2003), ele se encontrava preparado aos 35 anos de idade para disputar a medalha olímpica, em Atenas, perfazendo o traçado mítico da maratona. O episódio é bem conhecido. Vanderlei liderava a prova até o quilômetro 36, quando, então, foi interceptado por um padre católico irlandês, Cornelius Neil Horan, habituado a invadir eventos esportivos com o objetivo de propagar mensagens apocalípticas.[1] Consoante a observação arguta de um especialista em preparação física que participava dos Jogos Olímpicos: “Aquilo era para sentar na calçada e chorar”.[2] Mas em vez disso, Vanderlei se recompôs o mais rápido possível, voltando à prova oito segundos depois de ter sido agarrado, empurrado e derrubado no chão.

Vanderlei Cordeiro de Lima
Cornelius Horan empurra Vanderlei de Lima para fora da pista em Atenas 2004, quando o brasileiro liderava a maratona. Foto: Wikipédia

O  retorno à pista só foi possível, no entanto, graças à intervenção providencial de Polyvios Kossivas, um ex-atleta grego de basquete que se encontrava ali na condição de espectador. Vale a pena evocar o papel desempenhado pelo acaso no célebre episódio. O ex-atleta de basquete assistia ao evento pela televisão ao lado da esposa e da filha. A performance do maratonista brasileiro, porém, o fez desligar o aparelho e acompanhar in loco o desenrolar da corrida. Quis o destino que ele se encontrasse no mesmo local onde o padre irlandês planejara a emboscada, deixando a todos, espectadores e seguranças, perplexos e imobilizados como se estivessem sob o efeito de algum encantamento. Polyvios Kossivas, porém, um “anjo” de barba e cabelos brancos enviado pelos deuses do Olimpo, interveio no drama esportivo, desvencilhando o “pássaro ferido” das garras do fanático religioso e o exortando a retomar a corrida aos gritos de: “vai, vai!”.[3]

Embora ultrapassado por dois competidores, o italiano Stefano Baldini e o estadunidense Mebrahtom Keflezighi, o fundista brasileiro ingressou no estádio Panathinaiko em terceiro lugar, braços abertos, qual uma fênix renascida das cinzas. Para o ex-atleta grego de basquete não havia nenhuma dúvida, tratava-se do “verdadeiro medalhista de ouro da maratona”. Assim também pensavam milhões de compatriotas que, nos anúncios publicitários veiculados pelo Pão de Açúcar, patrocinador do maratonista, “acordaram hoje ainda mais orgulhosos de ser brasileiros”.[4] Dessa maneira, retratado na condição de herói olímpico, a medalha de bronze arrebatada por Vanderlei subvertia a ordem simbólica do pódio, rasurando, por assim dizer, a medalha de ouro do italiano Stefano Baldini.

A maratona de Atenas entrelaça as figuras do herói, do vilão e do anjo, tríade em torno da qual se desenrola toda a trama destinada a consagrar o fundista brasileiro. Já a de Kokichi baseia-se na reversibilidade simbólica do herói e do vilão, excluindo a terceira figura, cuja ausência, aliás, ajuda-nos a compreender a tragédia do maratonista japonês. Assim como Vanderlei, Kokichi também provinha de um universo rural onde ensaiara as primeiras experiências como corredor. Mas enquanto o primeiro pertencia à categoria precarizada dos trabalhadores sazonais, o segundo vinculava-se à categoria dos pequenos proprietários, trabalhando na fazenda da família. Alistado nas Forças de Autodefesa Terrestre do Japão, ele transformar-se-ia em um soldado-atleta, integrando, com efeito, a equipe de revezamento de longa distância da corporação.

No início de 1964, Kokichi obteve o segundo lugar na maratona de Sapporo. O vencedor da prova, Kenji Kimihara, recordava, porém, a enorme expectativa que os cingia às vésperas do evento histórico: “Houve uma pressão tremenda sobre os atletas para manter a honra do Japão no cenário mundial”.  O país reerguia-se da derrota na Segunda Guerra Mundial, projetando-se como uma nova potência no plano econômico a desafiar os poderes hegemônicos do Ocidente, em especial, o representado pelos Estados Unidos. A escolha de Yoshinori Sakai para acender a pira olímpica – um jovem atleta nascido no dia do lançamento da bomba atômica sobre Hiroshima -, constituía-se em um ritual político cuja mensagem de desafio não comportava dúvida. A imprensa estadunidense não escondia o desconforto com a escolha, salientando que ela suscitava “hostilidade” em vez de “boa vontade”.[5]  

Yoshinori Sakai em 1964
Yoshinori Sakai em 1964. Foto: Wikipédia

Foi, portanto, nesse clima ideológico de acerto de contas com o passado que os atletas japoneses se viram incumbidos da missão patriótica de triunfar sobre os rivais. Kokichi, porém, sucumbiria ao peso da armadura dos heróis, desabando diante das mais de setenta mil pessoas que superlotavam as arquibancadas do estádio Nacional. A rigor, o favorito para vencer a prova era o então campeão olímpico, Abebe Bikila. E, confirmando o favoritismo que lhe era atribuído, ele foi o primeiro a adentrar a pista do estádio Nacional, com quatro minutos de vantagem sobre os concorrentes. Como se não bastasse, logo após cruzar a faixa de chegada, o etíope foi se exercitar na área interna do gramado, realizando exercícios físicos como se não tivesse acabado de percorrer os 42 km e 195 m da maratona.

Enquanto Abebe Bikila se exercitava no gramado, ingressaram no estádio Nacional os atletas do Japão e da Inglaterra: Kokichi Tsuburaya, em segundo lugar, e Ben Heatley, em terceiro lugar. Na reta de chegada, diante da multidão reunida nas arquibancadas, eles se encontravam separados por uma distância de 40 metros, suficiente, acreditavam os japoneses, para assegurar a medalha de prata inédita ao soldado da pátria. De acordo com o relato do correspondente do New York Times, o público simplesmente “enlouquecera” face à iminência da conquista inédita para o atletismo do país.[6] Mas quando a sorte da disputa parecia selada, a poucos metros da linha de chegada, eis que um arranque tão inesperado quanto vertiginoso empreendido pelo competidor alienígena deixaria para trás o fundista japonês, arrebatando-lhe o segundo lugar. As imagens do filme oficial dos Jogos Olímpicos flagraram a reação de Kokichi após o desenlace da prova. Ao cruzar em terceiro lugar, vemo-lo dirigir-se para o interior do gramado, ajoelhar-se e colocar a cabeça no chão, como se desejasse encontrar um buraco para se enterrar vivo.

 “Cometi um erro imperdoável diante do povo japonês”, ele admitiria mais tarde para o companheiro Kenji Kimihara. E para se redimir da vergonha que o acompanhava desde então, prometera conquistar a medalha de ouro nos Jogos do México, em 1968. Mas não pôde cumprir a promessa. Kokichi Tsuburaya lutava contra uma série infinita de problemas físicos, que iam de uma hérnia de disco à lesão no tendão de Aquiles. No feriado de Ano Novo, na passagem de 1967 para 1968, o maratonista deixaria um bilhete tingido de sangue para os genitores: “Meu querido pai, minha querida mãe, seu Kokichi está cansado demais para correr”. Na manhã do dia 8 de janeiro, ele foi encontrado morto, caído no chão do banheiro, segurando a medalha de bronze.[7]

Decorridos mais de cinquenta anos do suicídio, no entanto, a imagem pública do maratonista japonês parece muito distante do sentimento de derrota e vergonha que o envolvera no passado. Como nos mostra o artigo de Ken Belson, do New York Times, existe um memorial em Sukagawa, a cidade natal de Kokichi, que o reivindica como motivo de “orgulho” para os moradores. Em Tóquio uma peça de teatro o tomava como tema, ao passo que em Fukushima as crianças aprendem nas escolas a incrível trajetória do medalhista de bronze na maratona de 1964.

Os significados do vencer e do perder não estão fixados de uma vez por todas. Ao contrário, eles vão sendo reinterpretados ao longo do tempo mediante um trabalho de prospecção levado a cabo pelas novas gerações, empenhadas em extrair dos acontecimentos do passado os sentidos soterrados pelas narrativas oficiais. Trata-se, com efeito, de colocar em questão as verdades cristalizadas por um complexo jogo de poder cujo efeito principal consiste em coagir o atleta a se sentir e reconhecer “culpado” e “derrotado”. Longe de se constituir em uma “vergonha” para a nação, o atleta colocado no banco dos réus se eleva à real condição de herói.

Notas

[1] Cf. “Festeiro irlandês foi excomungado e diz que fim está próximo”, Folha de S. Paulo, 30 de agosto de 2004. Cornelius Horan, à época com 57 anos, havia invadido em 2003 a pista de Silverstone, durante o Grande Prêmio de Fórmula-1 da Inglaterra

[2] Cf. “Retomada cobra caro ao corpo”, Márvio dos Anjos, Folha de S. Paulo, 30 de agosto de 2004. O comentário pertence a Jorge Agostinis, preparador físico da maratonista brasileira Márcia Narloch. 

[3] Cf. “Anjo de Vanderlei pede apenas um aperto de mão”, Folha de S. Paulo, 14 de setembro de 2004. Os gritos de “vai, vai”, foram feitos em grego!

[4] Cf. O Globo, 30 de agosto de 2004, anúncio de página inteira do Pão de Açúcar, exaltando a figura de Vanderlei, cuja foto exibi na camisa o patrocínio da empresa.

[5] Cf. “Olympic Torch-Bearer”, The New York Times, 10 de outubro de 1964.

[6] Cf. “Bikila is Victor in Marathon Again”, Robert Trumbull, The New York Times, 22 de outubro de 1964.

[7] Cf. “Elegy for a Heartbroken Medalist”, Ken Belson, The New York Times, 18 de julho de 2021.Kokichi deixaria também uma carta ao Comitê Olímpico Japonês: “Lamento não ter conseguido cumprir a minha promessa”. 

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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José Paulo Florenzano

Possui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994), mestrado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (1997), doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da PUC-SP (2003), e pós-doutorado em Antropologia pelo Programa de Pós-Doutorado do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (2012). Atualmente é coordenador do curso de Ciências Sociais e professor do departamento de antropologia da PUC-SP, membro do Conselho Consultivo, do Centro de Referência do Futebol Brasileiro (CRFB), do Museu do Futebol, em São Paulo, membro do Conselho Editorial das Edições Ludens, do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas sobre o Futebol e Modalidades Lúdicas, da Universidade de São Paulo, e participa do Grupo de Estudos de Práticas Culturais Contemporâneas (GEPRACC), do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP. Tem experiência na área de Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia Urbana, Sociologia do Esporte e História Política do Futebol, campo interdisciplinar no qual analisa a trajetória dos jogadores rebeldes, o desenvolvimento das práticas de liberdade, a significação cultural dos times da diáspora.

Como citar

FLORENZANO, José Paulo. O valor de uma medalha. Ludopédio, São Paulo, v. 147, n. 3, 2021.
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