Antes da Copa do Mundo, o Ludopédio publicou dois textos do professor Marcos Alvito em que contestava a presença do árbitro de vídeo. O primeiro anunciava seus pontos contrários a tal recurso[1] e o segundo, após a sua implementação no mundial interclubes da FIFA, reforçava a sua opinião diante dos fatos em que houve a interferência do árbitro assistente de vídeo (VAR)[2].

Dois anos depois, o VAR foi oficialmente inserido no universo do futebol em plena Copa do Mundo da Rússia. Visto como uma inovação o VAR entrou em campo em diversas partidas da primeira fase da Copa. Diante da novidade, tal como um brinquedo novo, foi amplamente utilizado (23 vezes em 48 partidas). Ficou de lado durante como se o brinquedo já tivesse enjoado quando as partidas da fase eliminatória entrou em ação (apenas 3 vezes em 16 partidas).

O título deste texto foi uma frase dita pelo treinador Zlakto Dalic, da Croácia, durante a entrevista após a derrota para a França na final da Copa. Naquela ocasião foi marcado um pênalti contra a Croácia após a consulta ao VAR. Apesar de discordar da marcação do pênalti considerava um avanço a presença do VAR nas partidas.

Quero trazer para o debate alguns lances polêmicos que recorrentemente aparecem nas partidas. E falar sobre o quão difíceis são as decisões dos árbitros de futebol, especialmente, em jogos equilibrados.

É muito comum ouvir e/ou xingar os árbitros pelas suas decisões. Veja, o árbitro tem como recurso para tomar a decisão apenas o que ele vê. Então, na visão de muita gente, seria justo o auxílio das câmeras para que os erros sejam superados. Me parece que a questão não é tão simples assim. Será que as câmeras conseguiriam captar todos os ângulos dos lances? Teremos um lance visto em 360 graus? A rapidez na consulta do VAR também poderia precipitar o árbitro em sua decisão?

Ou se quisermos mudar o ângulo das próprias perguntas para apimentar o debate: mesmo que as câmeras captassem todos os ângulos isso resolveria a dúvida dos lances? O replay em câmera lenta não produziria um olhar para um lance que não existe? Ressalto que o jogo não é praticado em câmera lenta. Muitas jogadas são realizadas em alta velocidade e olhar o lance por meio da lente da câmera lenta tendo como busca a precisão da jogada acabará por retirar a essência do jogo, sua rapidez. Um empurrão forte transforma-se apenas em um contato quando visto em câmera lenta. Considero que a câmera lenta vale apenas pela dimensão estética que produz para o telespectador. Nada além disso.

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Árbitro de vídeo em partida entre Grêmio e Flamengo pela Copa do Brasil. Foto: Fotos: Lucas Figueiredo/CBF.

Vou detalhar dois lances comuns em relação ao impedimento. Tomo como ponto de partida o típico lance em que há um impedimento causado apenas por alguns centímetros. O que dificulta a percepção do auxiliar já que os jogadores estarão em movimento. Muitos vão defender a necessidade da presença do árbitro de vídeo para decidir estes lances e não prejudicar o andamento da partida ou mesmo o resultado final. Para mim o impedimento não marcado não representa um erro do auxiliar em não perceber que o jogador estava um pouco à frente da zaga adversária. Aqueles centímetros são de fato impossíveis de se perceber estando na lateral do campo, com vários jogadores em movimento e em velocidade.

Entendo o seu acerto como sendo a tomada da decisão pelo o que viu. Veja, em sua visão entendeu que o posicionamento do jogador não era de impedimento e, que o gol foi legal. Mesmo que a imagem congelada mostre a linha de impedimento não considero que isso representaria um erro. O leitor vai questionar meu argumento, afinal, Se a TV indicou que estava impedido como o auxiliar poderia acertar se tivesse dado o gol? Digo que acertaria porque essa seria a decisão do árbitro em um lance difícil. O futebol não é feito pela sua perfeição, seu fascínio está exatamente na imperfeição dos fatos. Tal imperfeição aproxima o futebol do lado humano do jogo.

Mas o torcedor não quer saber do lado humano do jogo. Quer que seu time ganhe e não seja prejudicado. Voltamos à cena: o jogador estava impedido, poucos centímetros à frente, mas o auxiliar e o árbitro não perceberam e deixaram a jogada seguir. O lance termina em gol. O árbitro aponta para o centro de campo. Antes de chegar ao centro recebe a notificação de que deve consultar o vídeo para verificar a posição dos jogadores. Ao consultar o vídeo percebe que o jogador de ataque estava à frente e anula o gol. Aqui o árbitro de vídeo será exaltado como uma grande invenção, como algo que realmente traz a justiça para o campo de jogo.

Na opinião do presidente da FIFA, Gianni Infantino, não haverá mais gol em impedimento:

O VAR dá a possibilidade de checar duas vezes. Nas decisões claras não há interpretação. O gol em impedimento está finalizado. Não veremos mais um gol marcado em impedimento na era do VAR. Ou você está impedido ou não. As decisões são mais claras. Tivemos zero cartões vermelhos por violência[3].

Pois bem, vamos pegar o mesmo exemplo e inverter a situação. O jogador de ataque recebe a bola poucos centímetros atrás do defensor adversário. Portanto, sua posição não caracteriza o impedimento. Porém, o auxiliar não percebe isto e resolve assinalar o impedimento. A jogada é interrompida. Os danos são irreversíveis. Aqui de nada adianta o VAR, afinal, mesmo sendo constatado o erro do auxiliar não será possível modificar tal decisão. O jogador poderia marcar o gol de sua equipe e não concluiu a jogada porque havia a marcação do impedimento e se finalizasse poderia, ainda, receber um cartão amarelo. O goleiro adversário, por sua vez, diante da marcação do impedimento nem iria tentar a defesa.

Veja, em um lance o VAR resolveu a situação e em outro ele não tem como resolver. A saída, ainda mais polêmica, a meu ver seria deixar todas as jogadas terem andamento e o impedimento passar a ser marcado pelo árbitro de vídeo. Claro que isso modificaria toda a dinâmica do jogo e, em grande parte dos casos, os gols marcados seriam, na sequência, anulados diante da conferência do VAR. Talvez aqui teríamos mais caos e pressão na arbitragem que está em campo.

O que mais me chama a atenção na implementação do VAR é que os testes feitos antes de sua implementação na Copa do Mundo e, agora em vários países do mundo, inclusive no Brasil, foram feitas em partidas das equipes/seleções principais. A pergunta que fica para a FIFA, que é bastante conservadora quanto às mudanças na dinâmica do jogo, é o motivo pelo qual não testou o VAR em competições com menos visibilidade. A meu ver, a FIFA está interessada em valorizar o seu produto, o futebol, dando a ele uma dimensão tecnológica de justiça.

Porém, o que escapa a essa dimensão tecnológica da justiça é exatamente o que não é possível eliminar: a interpretação do árbitro. Mesmo com o recurso de vídeo há muitas dúvidas presentes quando o árbitro acompanha novamente o lance pela televisão. As discussões com a equipe de vídeo e o árbitro em campo renderiam outras boas conversas, caso fossem divulgadas.

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Árbitro de vídeo observa a partida entre Santos e Cruzeiro pela Copa do Brasil. Foto: João Moretzsohn/CBF.

Não considero que todos os árbitros sejam ladrões ou vendidos. Penso que estão a todo momento sendo solicitados a tomar uma rápida decisão. E, além disso, não podem errar. Mas o que é o erro do árbitro senão uma tomada de decisão (às vezes equivocada) diante do que viu? Ah, então, vamos trazer o VAR para resolver isso. Não acredito que tudo se resolverá. Pelo contrário, vai gerar mais confusão em campo.

Quanto ao campo de jogo penso que o futebol poderá ficar mais chato do que tem sido nos últimos tempos. Especialmente na intenção dos jogadores em querer tumultuar a vida do árbitro, induzindo-o ao erro a todo instante. Alguns irão dizer que é do jogo. Que faz parte do espetáculo.

Porém, o espetáculo precisa se recriar e não sei se o árbitro de vídeo ajudará nesta direção. Se já temos os jogadores que colocam a mão para cobrir suas palavras quando direcionadas para os demais jogadores ou mesmo para a arbitragem também teremos muitos atletas fazendo o gesto com as duas mãos de modo a indicar uma tela para que o árbitro possa pedir o auxílio. E o futebol vai ficando em segundo plano.

Se o VAR parece ser um caminho irreversível ao menos que seja pensada alguma alternativa para as suas distorções e mesmo para o modo como deve ser consultado. Caso fosse uma solicitação da equipe que se considera prejudicada e não apenas uma decisão mediada pela conversa entre árbitro e árbitro de vídeo teríamos algumas dinâmicas diferentes nas partidas. Por outro lado, ela pode se transformar em um artifício para se ganhar tempo em uma partida.

O fato é que, provavelmente, as respostas para a pergunta que abre o texto serão as mais diversas. Considero que existem “falhas” e situações que o VAR não consegue resolver, tal como o exemplo do impedimento e a interpretação por parte do árbitro. Sendo estas condições subjetivas como componentes do jogo considero que o VAR do jeito que está posto não fará bem ao futebol.


[1] ALVITO, Marcos. A geni sou eu… contra o árbitro eletrônico. Arquibancada, v. 88, n. 9, 2016.

[2] ALVITO, Marcos. A Geni tinha razão: o juiz de vídeo também é ladrão. Arquibancada, v. 90, n. 12, 2016.

[3] ALEIXO, Fábio; HERNANDES, Raphael. Após ‘boom’ na 1a fase e sumiço no mata-mata, VAR decide final. Folha de S. Paulo, 16 de julho de 2018, p. 5.

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Sérgio Settani Giglio

Professor da Faculdade de Educação Física da UNICAMP. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Esporte e Humanidades (GEPEH). Integrante do Núcleo Interdisicplinar de Pesquisas sobre futebol e modalidades lúdicas (LUDENS/USP). É um dos editores do Ludopédio.

Como citar

GIGLIO, Sérgio Settani. O VAR faz bem para o futebol?. Ludopédio, São Paulo, v. 110, n. 14, 2018.
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