No início de 1971 uma equipe da BBC de Londres veio ao Rio de Janeiro com o objetivo de entrevistar Pelé. A notícia de que o atleta iria se despedir do selecionado nacional em meados do ano atraía as atenções dentro e fora do país. As reportagens organizavam retrospectivas, contabilizavam os feitos, conjecturavam quem poderia substituí-lo no futebol brasileiro. Com efeito, ao final da entrevista, os jornalistas britânicos lhe pediram que indicasse um nome capaz de sucedê-lo. Pelé disse que, “sem receio”, entregaria a camisa 10 da Seleção “ao atacante do Botafogo”. [1] À imprensa nacional, Paulo César confirmava a inesperada nomeação: “Foi Pelé quem fez a indicação, com muitos elogios ao meu futuro”.[2]
Dessa maneira, Paulo César assumia a condição de legítimo sucessor do assim chamado Rei do Futebol. De fato, logo após a declaração de Pelé, os profissionais da BBC deslocaram o foco da reportagem, colocando no centro das atenções a estrela em ascensão do Botafogo. Por cerca de quinze dias, os ingleses acompanharam o dia a dia do jogador, filmando-o no cotidiano, no treinamento, durante os jogos, ouvindo sua opinião a respeito de todos os temas: da fome na favela à fama no futebol. Abordaram também as críticas que já então lhe eram endereçadas por segmentos importantes da crônica esportiva. Ecoando em parte o teor destas críticas, os repórteres da BBC lhe perguntaram: “Então o sucessor de Pelé vai ser um hippie?” Paulo César defendia-se: “Não sou hippie”, e explicava: “procuro apenas acompanhar a moda”.[3]
No contexto do regime militar, o menor traço de desvio em relação à norma do jogador-soldado implicava o risco de ser rotulado de “hippie”. Bastava usar o cabelo um pouco mais comprido do que o corte militar, não se apresentar convenientemente imberbe ou vestir uma roupa fora do padrão tradicional para levantar de imediato a suspeita de atentar contra a moral e os bons costumes. Mas além de levantar a suspeita de pertencer ao movimento da contracultura, Paulo César enfrentava também a acusação de violar a ética do jogo.

De fato, logo após a matéria produzida pela equipe da BBC de Londres, o sucessor de Pelé na Seleção Brasileira foi parar no banco dos réus, acusado pelos formadores de opinião, pelos torcedores de arquibancada e pelos companheiros de profissão de infringir o código de honra dos atletas. O “crime” foi cometido em uma partida do Campeonato Carioca, no Maracanã, quando, diante de Zé Dias, lateral direito do Vasco, Paulo César se pôs a realizar uma série de embaixadas consideradas humilhantes.[4] A rigor, o processo possuía um duplo agravante. A ação desonrosa tinha sido perpetrada por um tricampeão mundial perante um atleta em início de carreira, e, como se não bastasse tal “covardia”, ela foi levada a cabo no momento em que o time da Estrela Solitária desfrutava a vantagem de três a zero no placar.
As testemunhas de acusação revezavam-se no Tribunal da Norma. O Correio da Manhã, em especial, não poupava críticas ao autor das embaixadas, reputando-o um “moleque”, “atleta marginal” e “mau caráter”.[5] O Globo, por sua vez, publicava uma charge na qual o jogador negro era retratado como um bêbado vertendo goela abaixo uma garrafa de cachaça. A ilustração, não isenta de conotação racial, retratava o consenso segundo o qual Paulo César se achava embriagado com a série de conquistas acumuladas em tão pouco tempo: o bicampeonato carioca, o tricampeonato mundial, e, agora, a coroação simbólica de Rei do Futebol.[6] Armando Nogueira, no Jornal do Brasil, corroborava esta interpretação, reiterando que o atacante estava mesmo “deslumbrado com o próprio sucesso”.[7]
Se, nas seções de esporte da imprensa o processo ainda não havia sido concluído, dentro das quatro linhas o veredicto já parecia ter sido pronunciado. Desde o fatídico episódio das embaixadas, Paulo César passara a ser “caçado” pelos adversários. Nesse sentido, na véspera do clássico contra o Fluminense, o lateral direito Oliveira dizia sem eufemismos que iria “acabar com ele”, pois não admitia “palhaçada”.[8] A jornalista Marilena Dabus, encarregada pelo Jornal dos Sports de realizar a matéria sobre o “olé”, fez, então, a pergunta que lhe parecia lógica: Você não está pensando em quebrar a perna dele, não é ?[9]
Ele não era o único a deixar no ar a ameaça velada. Os próprios companheiros de equipe se apressavam em alertar Paulo César dos riscos que doravante o espreitavam, advertindo-o de que, no dia em que lhe “quebrassem a perna”, ele “não ia poder reclamar”.[10] Esta possibilidade era discutida abertamente nas páginas de esporte, como se fosse a coisa mais natural do mundo. Jornalistas, atletas e torcedores debatiam se convinha ou não realizar a justiça com os próprios pés. Assim, por exemplo, depois do clássico contra o Fluminense, o lateral esquerdo, Marco Antonio, respondia à pergunta formulada de forma obsessiva pela imprensa: “Você pensou logo em quebrar a perna?” [11] Em sua coluna no Jornal dos Sports, Zizinho denunciava a violência contra o jogador do Botafogo e lamentava o clima de insanidade no Maracanã: “As opiniões de uma maioria, dentro do próprio Estádio, são favoráveis a essa caçada.”[12]
O artigo de Zizinho tocava em ponto chave. A perseguição atendia a um clamor que extravasa a categoria dos atletas profissionais. “Você sabe que ao pegar Paulo César” – dizia o repórter ao lateral Marco Antonio – “fez uma coisa que a maioria da cidade queria fazer?”[13] A maioria não se restringia ao Maracanã, mas traduzia uma sede de “justiça” difundida pela sociedade carioca. E, no entanto, convém perguntar por que, de repente, o “olé” de um atleta de futebol reclamava uma condenação tão drástica e exemplar, a ponto de incluir a ameaça de uma perna quebrada? O processo, no fundo, envolvia algo de mais essencial. Julgava-se, então, se Paulo César reunia ou não as condições necessárias para suceder Pelé e ocupar o lugar de “jogador-símbolo” do futebol brasileiro. A objeção de Armando Nogueira atingia o cerne da questão:
Sem humildade, Paulo César jamais será o ídolo que chegou a ser Pelé, em cuja face olímpica de campeão a multidão, orgulhosa, se contempla.[14]
Eis o verdadeiro “crime” de Paulo César: ele não agia com humildade. Mas esta noção revelava-se mais elástica do que poderia parecer à primeira vista. Por certo, ela remetia à problemática da ética do jogo para os atletas. Mas no léxico da imprensa esportiva ela também evocava a personagem submissa à hierarquia racial. Ora, a sucessão da “coroa” no País do Futebol encerrava um risco simbólico inadmissível para os grupos brancos que detinham o poder de narrar a nação. “Meu símbolo é outro”, respondia Paulo César aos jornalistas que o interpelavam a respeito do modo como celebrava os gols: “punho fechado para o alto”. E para que não restasse nenhuma dúvida: “É o poder negro”.[15]
Notas
[1] Cf. “A honra com a camisa do Rei`”, Jorge Areas, Jornal dos Sports, 2 de abril de 1971.
[2] Cf. “Paulo César em reportagem especial para a BBC – Londres`”, O Globo, 30 de março de 1971.
[3] Cf. “Paulo César em reportagem especial para a BBC – Londres`”, O Globo, 30 de março de 1971
[4] Algumas reportagens citam Zé Dias como o jogador do Vasco envolvido nas embaixadas de Paulo César. Outros mencionam o jogador Fidélis. Por exemplo: “Vasco reagiu mas Botafogo era o dono do jogo: 4 x 2”, O Globo, 7 de abril de 1971.
[5] Cf. “Um estilo está sendo julgado”, Correio da Manhã, 8 de abril de 1971.
[6] A charge ilustrava a coluna; “À Sombra das Chuteiras Imortais”, O Globo, 8 de abril de 1971, de Nélson Rodrigues, na qual o dramaturgo concluía que a “vitória está subindo à cabeça do Botafogo”.
[7] Coluna: “Na Grande Área”, Armando Nogueira, Jornal do Brasil, 8 de abril de 1971.
[8] Cf. “Flu luta por todos”, Marilene Dabus, Jornal dos Sports, 18 de abril de 1971.
[9] Cf. “Olé: a sede da forra”, Marilene Dabus, Jornal dos Sports, 18 de abril de 1971.
[10] Cf. “Ubirajara: ‘Sou contra a molecagem`”, Marilene Dabus, Jornal dos Sports, 18 de abril de 1971. Advertência feita pelo goleiro do Botafogo, Ubirajara.
[11] Cf. “Deboche faz do amigo, inimigo”, Jornal dos Sports, 22 de abril de 1971.
[12] Coluna: “Bom de Bola”, Zizinho, “Prémio aos caçadores de craques”, Jornal dos Sports,, 23 de abril de 1971.
[13] Coluna: “Bom de Bola”, Zizinho, “Prémio aos caçadores de craques”, Jornal dos Sports,, 23 de abril de 1971.
[14] Coluna: “Na Grande Área”, Armando Nogueira, Jornal do Brasil,, 9 de abril de 1971.
[15] Coluna: “Jogo Perigoso”, “Símbolo de Paulo César”, Jornal dos Sports, 6 de janeiro de 1971.