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Obrigado, Abel! És o maior, pá!

João Manuel Casquinha Malaia Santos 6 de fevereiro de 2021

Olá, Abel. Chamo-me João Manuel Casquinha Malaia Santos. Sou português, nascido em Luanda em 1974, moro no Brasil desde 1976 e também sou brasileiro desde 1993. Queria escrever-te esta carta de agradecimento. Peço-te permissão desde já para tratar-te por “tu”. Temos quase a mesma idade, somos portugueses e somos Palmeiras. Vou tomar esta liberdade.

Antes de tudo, quero contar-te como acabei sendo adepto do Palmeiras. Meu pai era adepto do Sporting. Ele nasceu em Olhão. Sabias que o meu pai foi jogador da bola? Começou nas categorias de base do Olhanense e ali brilhou nos campos do Sul de Portugal, chegando a ser campeão do Algarve de juniores (1953/1954) e a receber sondagens dos grandes clubes do país. Era da equipa do Parra, do Armando, do Poeira, jogadores que fizeram tremer o país no início dos anos 1950, nos campeonatos de juniores. Tens ali na foto o Malaia, meu pai, guarda-redes dessa equipa fantástica que marcou época, ao menos entre os adeptos do Olhanense.

Olhanense
Olhanense, campeão do Algarve de juniores 1953/54: olha ali o Malaia!

Meu pai não queria ser jogador profissional. Até queria, mas sabia que nos anos 1950, isso era para muito poucos. Terminou a Escola Técnica de Faro (onde foi até colega do Cavaco, vê só!) e dali rumou para as Oficinas Gerais de Material Aeronáutico, as OGMA, em Alverca. E achas que o meu pai parou com a bola? Qual quê!

Foi para o Futebol Clube de Alverca, mas o Olhanense não queria liberar-lhe o passe sem compensação financeira. Mas lá, com muita conversa, foi liberado, não sem o pagamento de uma pequena taxa ao Olhanense. Jogou ali uns dois anos e recebeu um convite de um amigo para ir para a Beira, em Moçambique. Foi trabalhar em hangares de manutenção de aviões de pequeno porte. E seguiu com a bola. Jogou no Sporting Club da Beira por anos.

Alguns anos depois meu pai foi para Angola, onde abriram uma filial do hangar de Moçambique. Foi ali que eu nasci, em 1974. Em 1976, meu pai, minha mãe e minha irmã (e eu ao colo, claro) saíram de Angola apavorados com a guerra civil e a perseguição aos brancos portugueses que ali viviam. Viemos para o Brasil. Eu ainda não tinha dois anos.

Ao chegar ao Brasil, mais precisamente em uma cidade do interior de São Paulo, meu pai precisava tomar uma decisão importante na vida: qual equipa escolheria para ser adepto, sabendo que essa escolha influenciaria na escolha do filho, também. Diferente da nossa escolha quando miúdos, a dele foi muito consciente, pois já passava dos 40 anos: escolheu o Palmeiras por dois motivos óbvios. O primeiro, é por ser verde e branco, como o Sporting que ele tanto amava. O segundo foi que ninguém em sã consciência que pudesse escolher uma equipa para ser adepto no Brasil na década de 1970 deixaria de escolher a Academia de Ademir da Guia e companhia.

E foi assim que tornei-me palmeirense. Meu pai, quando comecei a perceber das coisas, disse-me: eu sou Palmeiras, portanto tu és Palmeiras. Não houve discussão. Meu pai era meu grande ídolo.

Pai e filho
O Sr. Malaia e seu filho em Olhão, 2013.

Mas tu que és do futebol, Abel, sabes bem como é este mundo. Foi só meu pai escolher o clube a ser adepto e passar-me este legado que o Palmeiras parou de conquistar títulos. Ficou entre 1977 e 1992 sem ganhar nada, nem uma tacinha sequer. Imagina o que era para um miúdo, depois adolescente, ver a sua equipa sem ganhar nada, ver os amigos a comemorar títulos e taças e eu… bom, eu contentava-me em agradar o meu pai e em tentar aproveitar algumas equipas que brilharam só um bocadinho, mas que me davam orgulho suficiente para tê-los em pôsteres nas paredes do meu quarto.

E uma das coisas mais incríveis: como eu tinha dificuldade em explicar às pessoas se eu era angolano, português ou brasileiro, sempre preferi dizer: sou palmeirense. Fez parte da minha identidade, da minha inserção como imigrante em um país estrangeiro. O Palmeiras é isso na minha vida, parte fundamental da minha identidade.

E o pior tu não acreditas. O Palmeiras só voltou a ganhar em 1993. Em dezembro de 1992, meus pais voltaram para Portugal e eu tive que ir junto. Ou seja, quando o Palmeiras ganhou, eu nem estava no Brasil mais. Não imaginas o que foi eu, em pleno verão de Lisboa, a caçar corinthianos pela cidade para poder fazer galhofa com eles.

Este fator foi determinante para eu, aos 19 anos, resolver voltar sozinho para o Brasil. Voltei, à revelia dos meus pais, mas com a ajuda da minha irmã. Vim para cá, fiz faculdade, depois casei e fui para o Rio de Janeiro, onde tive um filho. Nesse período, vi tudo o que queria ver do Palmeiras, in loco, no estádio Palestra Itália, mas também no Pacaembu, no Morumbi, no Maracanã, em São Januário e por aí vai. E tinha uma missão: fazer do meu filho um palmeirense, passar-lhe o legado do meu pai. Meu filho, o Henrique, sempre viveu no Rio de Janeiro. É como fazer uma criança nascida em Lisboa ser adepta do Porto. É possível? Claro! Mas sabes como é difícil.

Minha vida com esse miúdo não foi fácil. Ou melhor, com ele foi fácil demais, pois o miúdo é espetacular. A separação da mãe dele é que dificultou as coisas. Ele tinha 9 anos e eu tive que voltar para São Paulo por conta do trabalho. E já adianto, o miúdo (qual miúdo, o gajo já vai fazer 18 anos!) é palmeirense. Eu consegui!

Allianz Parque
O filho e o neto do Malaia no Allianz, em 2015

Mas depois desta longa introdução, venho à parte que interessa. Agradecer-te. Já ouviste muitos obrigados, de tanta gente nestes últimos dias. Não deves mais aguentar. Sabes, Abel, faço questão de agradecer-te mesmo assim. E para agradecer-te como mereces é que eu escrevi esta introdução. Para teres a dimensão do que fizeste, ao menos na minha vida.

Quando tu e a tua equipa adentraram as quatro linhas para celebrar, com a bandeira de Portugal às costas, tu não acreditas o quanto eu chorei. Meu pai já não está conosco, ao menos não neste plano, e eu só pensava na explosão de alegria dele a ver a trupe de portugas, vestidos de Palmeiras a levar o clube dele, do filho e do neto à “Glória Eterna”. 

Lembras-te dos Jogos Olímpicos de 1996? Brasil e Portugal na disputa do bronze? Eu estava com meu pai em Olhão e assistimos o jogo juntos. Mas, pela primeira vez, ele estava por uma equipa (Portugal) e eu por outra (o Brasil). Meu pai ficou muito decepcionado. Não com o resultado, mas com o fato de o filho ter se negado a apoiar Portugal. Foi uma discussão feia e eu, um jovem adulto impetuoso, a dizer a ele que Portugal não jogava nada. Ao que ele respondeu: “Não somos nem 10 milhões. Um dia vais agradecer muito a Portugal por causa do futebol”.

É Abel, vieste para cá para mostrar a mim o quanto o meu pai estava certo. Vieste para cá e eu só pensava: o meu pai tinha que estar aqui para ver isso. 

Futebol Estádio Luz
Com meus amigos benfiquistas Pedro e Alex na Luz, após o SLB 10×0 Nacional da Madeira, em 2019: “É pá, ó Joca, o gajo é bom!”

Quando o Jorge Jesus ganhou por aqui, eu só pensava: “Então por que cargas d’água o Palmeiras não tem um treinador português? O JJ não está nem entre os top 5 treinadores de Portugal!” Ano passado, quando trocamos de treinador, confesso-te que pensei no Bruno Lage. Acompanhei de perto o Benfica dele. Vi o 10 a 0 no Nacional e goleadas a torto e a direito, além da vitória no Porto, com aquele golão do João Felix, que praticamente encerrou a discussão pelo título naquele ano.

De repente: Abel Ferreira é anunciado! Lembrava-me de ti no Braga. Fui ter com meus amigos portugueses e todos disseram: “O gajo é bom!”. Inclusive o meu sobrinho, sportinguista fanático, disse o mesmo e, claro, mandou-me aquele vídeo do “Vou-me embora!”. E os meus amigos palmeirenses daqui vieram todos ter comigo para saber de ti. Eu só lhes disse a mesma coisa: o gajo é bom.

Foto arquibancada
Miguel Malaia a representar o avô em Alvalade: “Tio, o Abel é muita bom!”

Venceste. Tu e tua equipa técnica de portugueses conquistaram a América. Um gajo de Penafiel, veio ao Brasil, veio ao meu Palmeiras para conquistar a América! F*d*-s*! Isto é que de loucos, pá!

E para terminar esta carta, que já vai longa, eu tenho apenas uma coisa a mais para te dizer.

Disseste na entrevista que és melhor treinador, mas és pior pai, pior filho, pior irmão. Isto tocou-me profundamente, pois dei conta que muitas vezes o meu pai também abdicou da família para ser um melhor profissional. E que eu às vezes também o faço. Mas o meu pai não foi um pior pai. E eu tenho a certeza que a tua família também não acha que foste pior pai, irmão e tio. Eu sei que esse sentimento não é deles, é teu. Então, para confortar-te só um bocadinho, tens também que saber que fizeste a alegria de muitas famílias. 

Tens que saber que milhões de adeptos estão hoje melhores amigos, melhores amigas, melhores pais, melhores mães, melhores irmãos, melhores irmãs, melhores tios e melhores tias. Pois estão imensamente felizes. E esta felicidade foste tu que ajudaste a dar. 

Futebol RS
Eu e meu filho na Copa Santiago/RS em janeiro de 2020: aqui vimos o nosso atual zagueiro Renan brilhar com a molecada antes de subir para o profissional.

Tens que saber que passei horas agarrado ao meu filho a chorar a nossa conquista. Tens que saber que este palmeirense, nascido em Luanda, de nacionalidade portuguesa e brasileira, revive a cada dia o pai dele com vocês por aqui. Vocês deram-me um gosto especial e o prazer de todos os dias ver o meu pai em vocês, que vem à vida para desafiar: “Eu disse, não foi?”.

Assim como no Euro de 2016, quando estava em Portugal e comemorei com meus amigos e minha família (já sem meu pai) a vitória da seleção portuguesa, esta vitória, a tua e a da tua equipa técnica especificamente, deu mais razão ao meu pai. E assim constrói ainda mais quem eu sou. Sou palmeirense e sou português. E hoje, todos os palmeirenses de sangue português estão por demais orgulhosos.

Poderia dizer que não tenho palavras para agradecer-te, mas como já percebeste, não é verdade. Tenho palavras e muitas. Ficaria aqui horas a escrever e a compartilhar contigo estas coisas. Mas tens coisas mais importantes para fazer no momento. O mundo está à nossa espreita.

Espero apenas um dia que a vida cruze os nossos caminhos para que eu possa dar-te um abraço, olhar nos teus olhos e dizer-te: “Obrigado, Abel! És o maior, pá!”.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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João Malaia

Historiador, realizou tese de doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo sobre a inserção de negros e portugueses na sociedade carioca por meio da análise do processo de profissionalização de jogadores no Vasco da Gama (1919-1935). Realizou pós doutorado em História Comparada na UFRJ pesquisando as principais competições internacionais esportivas já sediadas no Rio de Janeiro (1919 - 2016). Autor de livros como Torcida Brasileira, 1922: as celebrações esportivas do Centenário e Pesquisa Histórica e História do Esporte. Atualmente é professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e atua como pesquisador do Ludens-USP.

Como citar

SANTOS, João Manuel Casquinha Malaia. Obrigado, Abel! És o maior, pá!. Ludopédio, São Paulo, v. 140, n. 12, 2021.
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