Sábado dia 26 de agosto último foi um dia de vivências e de resistências. Ocorreu, no histórico Estádio do Pacaembu em São Paulo, o Festival “Ocupa Pacaembu”, uma intervenção artística, cultural, esportiva e de troca de experiências em torno de um dos mais importantes estádios da capital paulistana. Houve grupo de samba (ouvi os contagiantes batuques do Amigas do Samba), oficinas de lambe-lambes (assisti a montagem de um fantástico mural com eles e a feitura de criativas estampas em camisetas), visitação ao estádio e à exposição do Museu do Futebol e torneios de futebol de rua. Para mim, um sempre e eterno aprendiz de antropólogo, foi um dia em que vivi a Antropologia na prática, nas trocas afetivas e de conhecimentos que estabeleci (e que estabeleceram comigo).
A intervenção é um dos eventos dentro da programação do Encontro Estéticas da Periferia, que está em sua sétima edição, e que segundo Aira Bonfim, querida amiga e uma das organizadoras do Festival “Ocupa Pacaembu”, só foi possível nos espaços do Estádio pela ação conjunta entre Museu do Futebol e Ação Educativa, uma importante ONG ativista dos direitos humanos, que atua junto aos campos da educação, cultura e juventude e realiza inúmeros projetos sociais nessas áreas.
O protagonista do festival foi o futebol de rua, fenômeno tão comum nos espaços urbanos brasileiros e que tem sido repensado criticamente como espaço de resistências frente às ondas de violência, à edificação de condomínios fechados, à elitização dos espaços de lazer. Também denominado ‘futebol callejero’ por pesquisadores/as, caracteriza-se como uma atividade que oportuniza aos jovens (particularmente de vizinhanças marginalizadas) experiências de cidadania, de ocupação de espaços a eles negados, viabilizando desenvolvimento crítico para se sentirem e atuarem como cidadãs e cidadãos.
As disputas de futebol de rua ocorreram no espaço entre o estádio e a Praça Charles Miller e envolveram as equipes que trazem, em seus discursos e posicionamentos, bandeiras de lutas sociais. Um grupo interessante da cena urbana e lá presente era o Real Gothic Brasil, cuja proposta é a de reunir amantes da cultura gótica/dark para praticar futebol e se divertir. No site do grupo na internet, “mais do que futebol, o Real Gothic Brasil é música e cultura alternativa”.
Além desse, havia grupos representativos do futebol de pessoas LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transgênero), como o Bulls Football SP, o NATUS Futebol Clube e os Meninos Bons de Bola (MBB), três associações que lutam pelo reconhecimento de existir no espaço machista e homo/transfóbico do futebol masculino brasileiro. Todas as três reúnem atletas com orientações sexuais múltiplas, mas os MBB têm uma missão singular, qual seja, a de dar visibilidade aos homens trans junto às práticas esportivas e futebolísticas. Esses foram os grandes homenageados da ocasião, de acordo com Aira, exatamente porque na data comemoravam um ano de existência.
Assistindo as contendas, percebi estilos diferenciados de jogo e notei cada time com suas apreensões sobre o jogar futebolístico – todas legitimas, diga-se de passagem. Mas o que está em questão não é apenas isso. Esse Festival “Ocupa Pacaembu” e o Encontro Estéticas da Periferia possibilitaram algo além, que não vou dizer por mim; vou tomar a liberdade de registrar a fala de meu querido amigo Bernardo, da equipe MBB, que me impactou profundamente e resumiu, com sensibilidade, o que aprendi tão ricamente naquele sábado: “Fico feliz aqui hoje porque meu corpo pode existir nesse espaço”.
Num momento tão dramático da vida e da política nacionais um evento como esse é uma lufada de ar fresco, que se não nos mostra que há luz no fim do túnel, ao menos nos instiga a continuar pensando formas de existir (e resistir) às barbáries cotidianamente instituídas, que nos envolvem e nos consomem.
Em que pese as comidas das barracas no local estarem um pouco caras, haver presença exígua de pretos e pardos ou mesmo de pessoas com deficiência e não ter havido assistência de um público volumoso, o Festival “Ocupa Pacaembu” valeu pelo registro de existência de uma estética da alteridade, que em tempos tão sombrios está subsumida a processos culturais amplos de dominação e apagamento.