98.13

Ode ao Zé

Marcos Alvito 12 de agosto de 2017

Poderia ser uma homenagem ao incomparável Zé Bebelo, personagem de Grande sertão: veredas, sujeito capaz de ser corajoso e inteligente ao mesmo tempo, segundo seu amigo Riobaldo. Poderia ser uma declaração pública de admiração pelo maior intelectual vivo do Brasil, o craque do toque sutil e profundo do pensamento, o querido Zé Miguel Wisnik. E haveria muitos outros zés famosos e indiscutíveis a louvar.

Mas, na contracorrente, prefiro fazer o elogio de outro Zé. Um Zé achincalhado, agredido, atacado em prosa e verso no Twitter, Facebook, Whatsapp, jornal, rádio, tevê simples e cabo. Sim, venho aqui fazer o elogio do agora ex-técnico do Clube de Regatas do Flamengo, Zé Ricardo.

Não se trata de um debate sobre futebol. E sim do futebol enquanto mercadoria midiática. O Zé foi notícia quando de repente alçado, quase que por acidente, ao comando do Flamengo. Os bons resultados iniciais fizeram dele quase uma unanimidade, uma “revelação” como se diz no mundo do futebol sem dúvida espelhando um vocabulário religioso. Era como se ele fosse São Zé Ricardo. Mas depois de um tempo isso deixa de ser notícia, perde seu valor.

Então, como se ele fosse de repente o técnico mais experiente do mundo, como se o Flamengo tivesse um elenco parelho ao do Barcelona (à época de Neymar), todos começaram a cobrar dele “resultados”. Boa parte dos discursos é assustadora. Pelo simplismo e pelo conteúdo mercantil. O Flamengo gastou. O Flamengo comprou. Zé Ricardo tem que produzir. Num país onde a mentalidade escravista parece nunca terminar, onde os jogadores ainda são tranquilamente chamados de peças.

26/04/2017- Curitiba- PR, Brasil- Taça libertadores- Atlético-PR x Flamengo na Arena da Baixada Fotos: Gilvan de Souza / Flamengo
O técnico Zé Ricardo quando dirigia o Flamengo. Foto: Gilvan de Souza/Flamengo.

Um elenco, por mais milionário que seja, não é um time. As “peças” são seres humanos. O mais bacana do futebol é que, apesar da avassaladora presença da lógica monetária, ela nunca consegue se impor plenamente, sem sustos, sem surpresas.

Em meio a essa selva, Zé Ricardo sempre se manteve digno, não digo imperturbável porque isso seria impossível, mas sempre equilibrado dentro do possível. Não xingou repórteres, não maltratou jogadores, muito pelo contrário. Foi cobrado pelos escravocratas pela gentileza com que tratava seus atletas. Tinha que ser mais duro. O queriam de chicote na mão.

Se ele mantinha o mesmo time, diziam que era teimoso. Se ele mudava, que havia perdido as convicções. Era um bombardeio sistemático, impiedoso. Até se produzir, sim, um resultado. A demissão e a nova avalanche de notícias: quem será o próximo etc etc.

Não estou defendendo as qualidades do Zé como técnico. Isso não me interessa muito, deixo aos “especialistas”, aos comentaristas esportivos que são os profetas do que aconteceu ontem.

Quero apenas mandar um abraço solidário a alguém que, mesmo à distância, pude perceber que merece ser chamado de humano.

P.S: Por favor me poupem de debates estatísticos, táticos etc.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Marcos Alvito

Professor universitário alforriado. Escritor aprendiz. Observador de pássaros principiante. Apaixonado por literatura e futebol. Tenho livros sobre Grécia antiga, favela, cidadania, samba e até sobre futebol: A Rainha de chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra. O meu café é sem açúcar, por favor.

Como citar

ALVITO, Marcos. Ode ao Zé. Ludopédio, São Paulo, v. 98, n. 13, 2017.
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