110.3

Olhar o futebol e ver cidade

Plínio Labriola Negreiros 3 de agosto de 2018

Em outro texto publicado neste espaço, Streapco viu além da bola, apontava para a minha impossibilidade, por muitas razões, em acompanhar todas as publicações sobre futebol. Há obras que namoro a leitura e espero um momento de tranquilidade para enfrentá-las. Em geral, são trabalhos que me atraem porque mergulham em assuntos/temas que eu gostaria também de pesquisar. Ou como cantou Milton Nascimento: Certas canções que ouço/cabem tão dentro de mim/que perguntar carece/Como não fui eu que fiz.

Em julho, diante das minhas férias do trabalho, vieram condições para olhar muitos dos livros que repousam na estante, que se acumulam durante o semestre. Entre esses, houve espaço para apenas uma leitura sobre futebol: Futebol de várzea em São Paulo: a Associação Atlética Anhanguera (1928-1940), da historiadora Diana Mendes Machado da Silva, publicado em 2016. O livro originou-se de uma dissertação de mestrado, defendida em 2013 na USP.

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Associação Atlética Anhanguera (1928-1940).

O tema – futebol de várzea – é muito atraente, ao menos para mim. Ao olhar para a história do Corinthians Paulista nos seus primeiros anos de existência, verifiquei os caminhos seguidos pelo novo clube esportivo, nascido no paulistano Bom Retiro. Surgiu, entre tantos outros, como um clube de bairro e destinado ao futebol das várzeas, dos arrabaldes da cidade. Tratava-se do “destino” da jovem associação. Tal “destino”, porém, não se consubstanciou. O Corinthians, fundado em 1910, já fazia parte do futebol oficial em 1913. Desde o ano anterior, desejou ingressar na Liga Paulista de Football; uma contingência não permitiu que isso ocorresse.

O tema ainda me interessa por outros motivos, caso da minha memória afetiva do Bom Retiro e deste espaço relacionado ao futebol. Na infância jogada muito futebol. Nada, talvez, fosse tão prazeroso. A minha primeira imagem de um campo de futebol vem de um lugar, na rua da minha casa, uma espécie de vila e que chamávamos de chácara. Havia um campo de terra, com traves de troncos de árvore. Não era grande; talvez um pouco maior do que uma quadra de futebol de salão. Certa ocasião, ocorreria uma disputa importante e foi providenciada uma rede para as metas. Comprou-se rolos de barbante e as redes, em regime de mutirão, foram tecidas. Nada poderia ser mais artesanal. Vale lembrar que, em fins dos anos 1960, os artigos de futebol, principalmente a bola de couro – que era chamada de bola de capotão -, tinham um custo alto. O mesmo ocorria com as redes. Lembro ainda de algumas partidas e de alguns jogadores. Talvez tenha sido o meu primeiro campo de futebol. Ou, quem sabe, tenha sido o da escola, também no Bom Retiro.

Também nesse bairro, havia muitas referências aos times varzeanos, muitos citados no trabalho da Diana Mendes. Eu conhecia pessoas que jogavam nesses times. Algumas vezes vi jogos no Sul Americano e no Bola Preta. Também falávamos do Corinthians do Bom Retiro e da sua rivalidade com o Palmerinha… Algumas condições, porém, não permitiram que eu jogasse em qualquer clube de várzea do meu bairro. Talvez tenha jogado na várzea duas ou três vezes. Dessas partidas, lembro da cerveja pós-jogo, tomada nos campos de várzea de forma muito peculiar.

Nas minhas memórias do futebol de várzea ainda o Desafio ao Galo, programa da TV Record de São Paulo, com transmissão ao vivo às 10h do domingo. Equipes da várzea e de empresas, não apenas da capital paulista, disputam uma partida e o vencedor, denominado de galo, continuava atuando, até que fosse derrotado. Como as partidas eram disputadas no CMTC Clube, no Pari, muito próximo ao Bom Retiro, onde eu morava, era possível escutar os fogos que espocavam para anunciar a entrada das equipes em campo. Esse programa, nascido no início dos anos 1970, durou mais de duas décadas. Não foram poucas as vezes nas quais eu acordei com os rojões vindos da avenida Cruzeiro do Sul. Curiosamente, mesmo tão perto de casa, nunca fui assistir no campo nenhuma dessas disputas. Pela televisão, diferentemente, vi muitas pelejas. Lembro de um galo famoso: o Clube da Mooca.

Enfim, esse é parte do entorno que me carregou para conhecer o excelente trabalho da historiadora Diana Mendes. Somos convidados, antes de mergulhar na história do Anhanguera, a conhecer, com detalhes e muita precisão, o bairro da Barra Funda e boa parte do Bom Retiro. Há um rico resgate da formação e transformação desses bairros. Destacam-se elementos marcantes da condição de várzea do rio Tietê antes da sua retificação. Anota-se a divisão da Barra Funda em “de cima” e “de baixo”, separadas pela linha do trem. Divisão que ainda existente. Aponta-se e analisa-se as tensões e encontros entre negros – vítimas, desde o início do século XX, de uma exclusão das regiões centrais da cidade, principalmente com a demolição da igreja de Nossa Senhora do Rosário, no antigo largo do Rosário – e os imigrantes vindos das várias regiões da então recém-unificada Itália.

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Oferece-se ao leitor explicações complexas, em nenhum momento maniqueístas, sobre as decisivas transformações vivenciadas na Barra Funda. Dada essa característica do livro, apenas no segundo capítulo adentra-se ao Anhanguera de fato. Nesse ponto, a autora soube aproveitar bem a farta documentação preservada por essa associação esportiva. Basta pensar que grande parte dos chamados clubes grandes do Brasil pouco guardaram dos seus documentos de origem. O Corinthians tem apenas as atas de assembleia a partir de 1913. Entre a data de fundação – 1º. de setembro de 1910 – e o ingresso da Liga Paulista de Football – março de 1913, não há registros oficiais do clube. Isto traz bastante dificuldade para o historiador compreender a trajetória que levou o clube do Bom Retiro da várzea ao futebol oficial.

Outra presença interessante na pesquisa refere-se às entrevistas com os sócios do Anhanguera. Sempre é uma fonte muito rica. Mais do que informações, pode-se captar emoções, valores de grupo de imigrantes e o estabelecimento de vínculos destes com a cidade e o bairro. São histórias de vida. Nesse sentido, ficou muito adequada a referência metodológica à dualidade desenraizamento/enraizamento. O imigrante desligava-se da região italiana de origem e vinculava-se a um novo espaço, construindo novas relações, com importantes ressignificações culturais.

Com a leitura do livro de Diana Mendes guardo a certeza de que não se analisa o futebol como um fenômeno sem ligações com todas as outras esferas sociais. O futebol pode explicar os caminhos de uma sociedade, as suas contradições, os seus acordos, os seus amalgamas. Fico com a clareza de que nenhum espaço urbano pode ser lido sem um mínimo de referências ao futebol. São necessárias reflexões sobre os processos de apropriação cultural desse esporte.

Por fim, destaco outra qualidade dessa obra: ao apresentar a trajetória de um clube varzeano, que nunca abandonou essa característica, articula esse clube com a história da Barra Funda e da cidade de São Paulo dos negros e dos imigrantes e abre múltiplas possibilidades de pesquisas, a começar pelas milhares de histórias sobre cada um dos clubes de várzea que se espalham pelas cidades brasileiras. Cada uma dessas histórias deriva incontáveis relações do futebol com questões de várias dimensões sociais. Além disso, incentiva a sensibilidade para pensar outras relações que a análise do fenômeno futebol pode permitir. O trabalho da Diana Mendes ofereceu uma refinada leitura de São Paulo, em essência, da década de 1930. O desafio está dado aos novos pesquisadores.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Plinio Labriola Negreiros

Professor de HistóriaEstudo a História do Corinthians Paulista e do Futebol

Como citar

NEGREIROS, Plínio Labriola. Olhar o futebol e ver cidade. Ludopédio, São Paulo, v. 110, n. 3, 2018.
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