01.6

Olhares estrangeiros

Enrico Spaggiari 20 de julho de 2009

  “(…) a viagem acabou redundando em desastre pessoal. Voltei do nordeste brasileiro com uma febre tropical não-identificada e passei 45 dias no Hospital Yale-New Haven. Jurei que nunca mais voltaria à América Latina.” Janet Lever (1983; p.17)

 

O jogo só acaba quando termina. Será? Talvez o jogo nunca acabe, pois continua ser objeto de discussão dos jornalistas nas intermináveis mesas redondas televisivas, dos torcedores nos dias seguintes à partida ou mesmo continuará nos sonhos do jogador que desperdiçou aquela jogada decisiva, um pênalti no final do jogo ou que tomou um inesperado “frango”. Do mesmo modo, um livro ou uma tese talvez nunca recebam um ponto final definitivo, pois o autor poderá conjeturar diferentes abordagens ou usos das mesmas idéias ou essas ainda inspirarão novos trabalhos, dando continuidade ao jogo.

Contudo, há, obviamente, um final arbitrário nos dois casos: a entrega da tese para avaliação e o apito final do arbitro. No caso do jogo intelectual, poucas vezes sabemos como foi o desenvolvimento do jogo, principalmente antes do seu pontapé inicial. Ou seja, temos os livros em mãos, mas poucos autores tornam público os meandros do processo de reflexão e textualização do livro: os desafios, as dificuldades e as armadilhas do trajeto.

A socióloga norte-americana Janet Lever reproduz esse trajeto na introdução1 do seu livro A Loucura do Futebol2, direcionando seu olhar estrangeiro ao futebol brasileiro, ainda com certa atualidade3. Pretendo, independente dos elogios, críticas e discordâncias teóricas, abordar os buracos e atalhos da estrada percorrida em sua pesquisa, pois a partir deles é possível compartilhar da forma mais cabal de questões4 que continuam a desafiar trabalhos sociológicos sobre futebol.

O sociólogo alemão Georg Simmel definiu o estrangeiro5 como o indivíduo que está, ao mesmo tempo, perto e longe: próximo fisicamente, mas distante socialmente. Essa relação de proximidade e distância seria marcada pela mobilidade e objetividade, “uma forma específica de interação” (1983[1908], p.183) que permitiria ao estrangeiro criar relações com um grupo, mesmo não tendo uma forma mais íntima de ligação com ele. Por não pertencer ao lugar e ao grupo, o estrangeiro poderia vivenciar, segundo Simmel, distintas formas de interação: estranhamento, aproximação, alianças, afastamento e conflito.

Como estudante e pesquisadora estrangeira, Janet Lever estava numa situação de estranhamento, o que lhe permitiu ter um olhar objetivo – próximo e distante ao mesmo tempo – sobre o futebol brasileiro e a vida social do país de modo geral. Esse estranhamento, não por acaso, é um aspecto essencial na pesquisa antropológica: tornar o familiar em estranho e o estranho em familiar. Condição que ganha novos desafios nas etnografias em sociedades contemporâneas, pois se tem a tarefa de estranhar, em certos casos, contextos e grupos próximos e conhecidos, por exemplo, as torcidas organizadas e o cenário futebolístico da sua cidade.

A autora esteve no Brasil por três vezes entre o final da década de 1960 e começo de 1970, acompanhando por mais de uma década o futebol brasileiro: uma primeira temporada no Brasil, em 1967, num programa de intercâmbio estudantil em Curitiba, quando, ainda na graduação, escreveu um ensaio inicial sobre o futebol brasileiro; uma segunda empreitada, no ano seguinte, quando veio com o objetivo de escrever sua tese de formatura; e, enfim, na terceira viagem, já como estudante de pós-graduação, retornou ao Brasil em agosto de 1969 para ampliar o escopo da pesquisa tendo como foco a sua dissertação.

Entretanto, o resumo acima não deve mascarar os pequenos passos da experiência vivida por Janet Lever no Brasil. No jogo de estranhamento do estrangeiro num contexto desconhecido, a autora enfrentou tradicionais barreiras, as mesmas em certos casos permeáveis em outros intransponíveis, revelando o aspecto situacional dos espaços por onde circula o próprio pesquisador.

“Meu estudo sobre o futebol brasileiro desenvolveu-se de maneira anti-convencional, a pesquisa sendo muitas vezes acidental.” (p.13) Já na primeira frase do livro, a autora problematiza sua identidade de pesquisadora – estrangeira, mulher, estudando futebol – e reconhece que essa identidade inicialmente abriu portas6, angariando assim ricos depoimentos de profissionais da área (jogadores e treinadores), especialistas (jornalistas e cronistas esportivos), torcedores (incluindo chefes de torcidas organizadas) e dirigentes de futebol. A novidade – estrangeira, mulher, estudando futebol – gerou convites para programas de televisão e coberturas de partidas oficiais, além de um curioso ingresso em espaços há muito reservados:

“Diretores de clubes permitiam-me comparecer a suas reuniões, levavam-me para drinques depois, conversavam livremente na minha presença. Diretores de um clube discutiram o suborno de um juiz, outros admitiram subornar jogadores adversários para perderem partidas decisivas. Esses homens não me levavam a sério ou subestimavam a minha compreensão cada vez melhor da língua e a minha capacidade de beber.” (p.16)

Tais convites foram recebidos como oportunidades para estudar o futebol com um olhar próximo, mas ao mesmo tempo distante, pois a autora não chegava a ser uma personagem “de dentro” do espetáculo. Portanto, a autora usufruiu de inesperados benefícios na realização de sua pesquisa. Porém, isso não era regra, já que havia também conseqüências negativas no fato de uma mulher estudar o futebol. Janet Lever cita freqüentes e intermináveis momentos em salas de espera. “Atribuí o descaso pelos encontros marcados ao meu sexo e à minha altura, de pouco mais de um metro e meio, mas também ao temperamento latino.” (p.18)

Na sua busca pelas raízes da paixão (ou loucura!) dos torcedores e da sociedade brasileira7 pelo espetáculo futebolístico em geral, Janet Lever presenciou momentos que despertariam a inveja de qualquer brasileiro apaixonado por futebol: visitou a seleção brasileira no Rio de Janeiro, durante a fase de preparações para a Copa do Mundo de 1970 e esteve no México durante o torneio, quando realizou entrevistas com torcedores. Para isso, teve que driblar momentos incômodos e embaraçosos com os quais todos temos de lidar quando estamos em lugares e contextos (muitas vezes na nossa própria cidade) que nos são estranhos, onde somos um pouco mais que estrangeiros. No mais, quando o jogo acaba ou quando o livro está pronto, ficam as superações.

 
“Apesar do meu temor de outra febre, propus o Brasil como o local do meu estudo sobre o torcedor (…) Queria ouvir os brasileiros descrevendo o que o tricampeonato representava para eles”. (1983; p.18)
 
Bibliografia
RAMOS, Roberto Futebol: Ideologia do Poder. Petrópolis: Vozes, 1984.
SIMMEL, Georg. “O estrangeiro”, p. 182-188 de Moraes, E. (org.). Sociologia: Simmel. São Paulo, Ed. Ática, 1983 [1908].
 
 

[1] A autora intitula a introdução do livro como “Um comentário pessoal sobre as origens deste estudo”.
[2] Publicado no Brasil em 1983, o livro é uma versão ampliada da dissertação de mestrado defendida pela autora na Universidade de Chicago e baseada na pesquisa realizada durante as décadas de 60 e 70.
[3] “No momento atingido por uma crise sem precedentes na história do país, o futebol vive um período negativo. Os clubes empobreceram e os ídolos se foram em busca de dólares fáceis dos grandes centros europeus. A qualidade dos jogos é discutível, o povo, sem dinheiro, esvazia os estádios.” (1983;11) Parece que Sandro Moreyra escreveu esse prefácio ontem.
[4] Não tenho como objetivo esmiuçar as diversas questões levantadas pela autora ao longo do livro, mas de modo geral põem-se em pauta temas sociológicos clássicos (mas também arrisca incursões históricas e geográficas). A principal questão enfrentada é uma possível integração social que o futebol proporcionaria no Brasil, capaz de gerar transformações na estrutura social do nosso país. Trata-se de uma inversão oportuna (com o país ainda sob as asas de ferro da ditadura militar) das teorias muito radicais da época que focavam o futebol apenas como um instrumento de poder alienante sobre a população, um “ópio do povo”. Temos como exemplo o livro de Roberto Ramos: Futebol: Ideologia do Poder, de 1984.
[5] Ou o estranho, se pensarmos a partir do título do artigo em inglês, The Stranger.
[6] Destaco o encontro com Pelé, que concordou com a entrevista pela novidade: uma mulher norte-americana interessada no futebol.
[7] Uma “busca pelo cálice sagrado” que mobilizou várias gerações de estudiosos e pesquisadores.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
Seja um dos 14 apoiadores do Ludopédio e faça parte desse time! APOIAR AGORA

Enrico Spaggiari

Mestre e doutor em Antropologia Social pela USP.Fundador e editor do Ludopédio.

Como citar

SPAGGIARI, Enrico. Olhares estrangeiros. Ludopédio, São Paulo, v. 01, n. 6, 2009.
Leia também:
  • 178.13

    História e contemporaneidade dos festivais na várzea paulistana

    Alberto Luiz dos Santos, Aira F. Bonfim, Enrico Spaggiari
  • 177.29

    Campeonatos e copas: Possibilidades de compreensão do circuito do futebol varzeano de São Paulo (SP)

    Alberto Luiz dos Santos, Aira F. Bonfim, Enrico Spaggiari
  • 177.15

    Eventos varzeanos: campeonatos, festivais, projetos sociais e práticas culturais

    Alberto Luiz dos Santos, Enrico Spaggiari, Aira F. Bonfim