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Olimpíadas da Discórdia: Tóquio 2020 e(m) tempos pandêmicos

Wagner Xavier de Camargo 24 de janeiro de 2021

Na última semana, rumores se espraiaram sobre um possível cancelamento definitivo dos Jogos Olímpicos e Paralímpicos de Tóquio, postergados há quase um ano por causa da pandemia. Representantes vinculados tanto à esfera olímpica quanto à paralímpica vieram a público dizer que não se discute o cancelamento, mas sim a forma como tais jogos serão realizados. Em pleno cenário catastrófico de aumento de casos de contaminação e mortes por Covid-19 no Japão e no mundo, o Comitê Olímpico Internacional reafirmou a realização dos megaeventos.

O período das Olimpíadas do Japão, que já se estende além de seu quadriênio usual, joga neste tempo pandêmico com outros “tempos pandêmicos”. Num momento em que a maioria dos países vive a terceira onda de contágios, mais rápidos e implacáveis – afinal o coronavírus sofreu mutações diversas –, as vacinas candidatas se apresentam como uma solução que pode pôr fim a tal tempo pandêmico oficial. Porém, são velocidades diferentes e realidades distintas, do Japão e dos demais países, que, no momento, estão dessincronizadas.

Nessa discussão, talvez poucas pessoas estejam atentas ao que se passa com as/os atletas olímpicas/os e paraolímpicas/os em suas respectivas periodizações de treinamento. Se é que estão treinando, em realidade. Ficaram famosas, durante os últimos meses, imagens pela televisão ou pelo Instagram, de treinos realizados em casa, dentro de quartos, em jardins ou fundos de quintal, e toda uma sorte de adaptações para que o corpo atlético não parasse totalmente. Suponho que tiveram mais sucesso nessa empreitada atletas olímpicas/os, haja vista as dificuldades infraestruturais e de pessoal de apoio existentes no caso de atletas paralímpicas/os.

De qualquer forma, somente este aspecto relativo à preparação já seria, em boa medida, um eficaz argumento em prol do cancelamento. Outros seriam os tempos pandêmicos de cada país: por exemplo, Brasil, Estados Unidos e Alemanha, em que pese estarem vivendo novas ondas de reinfecções, estão tratando isso de formas diferentes e vacinando sua população também de modos distintos – e em tempos variados. A não ser que os Comitês brasileiros (Olímpico e Paralímpico) vacinem, em regime especial, nossas/os atletas para a viagem, tenho sérias dúvidas que teremos tais jovens imunizados para competirem nos Jogos japoneses.

Não há dúvidas que os organizadores querem realizar os megaeventos, como afirmou o medalhista do vôlei, Bernard Rajzman, membro do COI. Afinal, se a pressão é grande para sejam cancelados, ela deve ser muito maior (e pior em intensidade) para que aconteçam. Em termos de instalações, também não resta dúvidas que o Japão tem condições de promover, na melhor forma possível, os Jogos Olímpicos/Paralímpicos. Porém, como o coronavírus já mostrou sua versatilidade, não teria tanta certeza do sucesso do empreendimento. Ou seja, pairam questionamentos sobre se as/os atletas não se contaminariam uns aos outros, ou se não levariam uma variante do vírus para novas (re)infecções ao país nipônico.

Poderia propor um exercício fantasioso aqui: imaginemos que todas/os atletas, treinadoras/es, pessoal de apoio (da esfera olímpica e paralímpica) estejam vacinadas/os; que o Japão inteiro esteja imunizado; que nas instalações esportivas haja equipamentos de alta tecnologia de eliminação do vírus: o que fariam com as pessoas pré-sintomáticas, que não apresentam sintoma algum ao testar para a Covid-19 e entre 3 e 7 dias passam a transmitir o vírus? Como controlar possíveis contaminações de atletas/equipe durante as conexões e escalas internacionais até chegar ao Japão?

E ainda: qual é o custo econômico, moral, ou ético de tentar criar a “bolha perfeita” para um mundo esportivo sem coronavírus, apenas para passar a ideia de que tais atletas são deuses/deusas acima dos mortais? Que mensagem o esporte-espetáculo estaria passando ao mundo e às novas gerações?

O presidente do COI, Thomas Bach. Foto: Greg Martin/IOC.

Infelizmente a nós, meros espectadores e pessoas que não estão vinculadas aos órgãos de controle do esporte, não cabem decisões de qualquer monta. Seremos comunicados quando decidirem quais são as vias possíveis ou palpáveis de realização (ou não) das competições. Seguramente há muito em jogo: cotas televisivas de transmissão, interesses de meios de comunicação, contratos milionários de patrocínios com equipes ou com jogadores/as, e mesmo com o comitê organizador local (no Japão).

Ainda do ponto de vista econômico, qualquer adiamento e mesmo o cancelamento definitivo dos Jogos trariam enorme prejuízo para acordos já fechados, materiais de divulgação em elaboração e mesmo um desgaste para a comissão japonesa, incumbida de planejar e executar tais torneios. Mais do que saber se as competições marcadas para o período de julho e setembro próximos vão (ou não) ocorrer é entender que os países e as pessoas (incluindo nelas, as/os atletas) habitam esses diversos tempos pandêmicos – não igualitários, não justos, não sincronizados.

Estamos há cinco meses da cerimônia de abertura dos supostos Jogos Olímpicos de Tóquio’20. Mesmo sabendo que tempo pandêmico do Japão é distinto do resto do mundo e que o comitê organizador corre para garantir a contenda, há tempo para rever posicionamentos e decisões com vistas a cancelar as competições.

Há quase um ano escrevi um texto nesta coluna sobre este mesmo assunto. Relendo-o, fico impressionado como continua atual. Na época, considerei que os Jogos poderiam passar para a História como as “Olimpíadas da Discórdia ou da Desgraça”, caso ocorressem. Ainda mantenho essa mesma opinião. A incerteza sobre a realização e as críticas contra eles devem ser ponderadas. Independentemente de nossos sentimentos de admiração ou indignação, se os megaeventos ocorrerem, mesmo que de maneira esplendorosa e com total sucesso, representarão um triste triunfo sobre a mortandade mundial. Afinal, não há o que comemorar. Para mim, será a lápide da história olímpica/paralímpica, que marcará o momento em que os ideais olímpicos deverão ser repensados.

Os Jogos Olímpicos modernos foram cancelados em outros períodos do passado, particularmente, por causa de guerras que envolviam as nações. Tanto em 1916, quanto em 1940 e 1944, as Guerras Mundiais impediram qualquer encontro de confraternização esportiva. Se os Jogos de Tóquio’20 forem cancelados definitivamente, será a primeira vez que isso ocorrerá em tempos de paz. Talvez o Japão, como país desenvolvido e instruído que é, e que nos últimos 70 anos tem se redimido do mal provocado pelo alinhamento às potências do Eixo (com Hitler e Mussolini, na II Guerra), possa passar para a história como o país que, em cancelando os Jogos Olímpicos/Paralímpicos, evitou mais um problema para a crise sanitária global.

Grandes feitos não são apenas os de reconhecido sucesso, conclamados aos quatro ventos. Retroceder na decisão de não realização de dois megaeventos de tais portes pode ser mais digno do ponto de vista humano. Como não sabemos o que se passará, aguardemos para que os fatos da história nos mostrem.


** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Wagner Xavier de Camargo

É antropólogo e se dedica a pesquisar corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas. Tem pós-doutorado em Antropologia Social pela Universidade de São Carlos, Doutorado em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina e estágio doutoral em Estudos Latino-americanos na Freie Universität von Berlin, Alemanha. Fluente em alemão, inglês e espanhol, adora esportes. Já foi atleta de corrida do atletismo, fez ciclismo em tandem com atletas cegos, praticou ginástica artística e trampolim acrobático, jogou amadoramente frisbee e futebol americano. Sua última aventura esportiva se deu na modalidade tiro com arco.

Como citar

CAMARGO, Wagner Xavier de. Olimpíadas da Discórdia: Tóquio 2020 e(m) tempos pandêmicos. Ludopédio, São Paulo, v. 139, n. 43, 2021.
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