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Onde está o Geraldino?

O termo “Geraldino” foi criado nos anos 1960 (pelo jornalista Nelson Rodrigues, segundo algumas fontes; pelo radialista Washington Rodrigues, segundo outras) para designar os torcedores que frequentavam a Geral do Maracanã (como seu colega, o “Arquibaldo”, frequentava as arquibancadas). Com o fim da Geral e da Arquibancada do Maracanã devido à sua transformação em arena para a Copa do Mundo de 2014, o que teria acontecido com as pessoas que frequentavam a Geral por algumas moedas? O povão? A massa? Entre 2014 e 2016, realizamos a coleta de depoimentos do Projeto Torcedores. Gravamos em todo o país 112 entrevistas com torcedores e torcedoras comuns, sobre temas variados envolvendo o universo do futebol brasileiro. Junto a temas como relações familiares, rivalidade, violência, torcidas organizadas e memórias afetivas, um dos tópicos mais controversos foi o posicionamento de cada torcedor/a sobre a nova arquitetura futebolística pós Copa do Mundo: as arenas.

A realização da Copa de 2014 produziu uma mudança profunda na arquitetura do futebol do Brasil. Os estádios tradicionais, com arquibancadas de cimento e torcedores divididos por “setores” (e não com assento marcado) foram, durante décadas, o modelo arquitetônico por excelência do futebol brasileiro. Estádios tradicionais, como o “Vivaldão”, em Manaus, o “Verdão” em Cuiabá, o “Parque Antarctica”, em São Paulo ou o “Olímpico” em Porto Alegre foram desativados ou destruídos, e para ocupar seu lugar e função, foram erguidas “Arenas”, estádios modernos “padrão FIFA”. Outros, como o “Beira-Rio”, em Porto Alegre, o “Maracanã”, no Rio de Janeiro e o “Mineirão”, em Belo Horizonte, foram completamente reformados, de modo que até antigos frequentadores têm dificuldade de reconhecê-los sob a nova fachada.

A principal diferença entre uma arena e um estádio está no modelo de disposição física dos/as torcedores/as, organizados a partir de ingressos com assentos numerados, como em um teatro. A qualidade dos equipamentos sanitários e dos acessos e estacionamentos foi melhorada. O custo desta imensa quantidade de obras de engenharia construídas simultaneamente foi astronômico, e, nas ruas, muitos protestos questionaram se este montante não deveria ser investido em outras prioridades. Entre os entrevistados do projeto, a maioria criticou a nova arquitetura das arenas, por uma série de motivos. Curiosamente, os que aprovaram as arenas de modo mais entusiástico são torcedores que raramente frequentam estádios. Mas mesmo quem critica fortemente o modelo de arena reconhece que algumas reformas eram necessárias:

Bruna Freire 01
Projeto Torcedores. Foto: @brunafreirefotografia.

O Brasil precisava modernizar estes estádios, precisava de lugares mais confortáveis pra poder ir com sua família, pra poder ir pro estádio com um pouco mais de dignidade. Você tinha que ir pro estádio igual a um molambo senão você ia ser assaltado, iam jogar tudo na sua cabeça, você ia se bater com polícia, dava de tudo um pouco. Você ia no banheiro e o banheiro é que urinava em você! O país precisava dos novos estádios, mas não da maneira como foram feitos. (Tiago, professor, Belo Horizonte/MG)

Entre os frequentadores habituais dos estádios, a principal crítica está no fim dos setores populares, a célebre “Geral”, a que muitos torcedores se referem com nostalgia. Neste “algo que se perdeu”, muitos depoentes identificam um movimento de elitização, segundo o qual o que se perdeu foi a presença das camadas populares nas arquibancadas:

Os novos estádios trouxeram mais conforto. Isso é um ponto. O que eu acho que mudou muito é o perfil desse torcedor que vai ao estádio. Os ingressos ficaram mais caros, e aí você tira o maior número dos torcedores que iam aos estádios, como na Copa. Podia ter esse conforto, mas com o mesmo leiaute dos estádios antigos. Eu tenho uma saudade enorme da Geral do Maracanã! A Geral era onde você tinha o torcedor popular, era de onde você conseguia boas histórias, de torcedores que levam uma vida dura e que ali tinham seu momento de alegria. Falta esse torcedor voltar ao estádio, e aí você precisa de um ingresso mais acessível pra esse torcedor.  (Mauro, fisioterapeuta, Rio de Janeiro/RJ)

Eu noto uma diferença no perfil do torcedor que tem ido ao estádio e da cultura do futebol daqui. Não tem mais Geral! Eu acho um absurdo! Os preços ficaram bem mais caros, e eu não acho que tenha trazido tantas coisas positivas assim. Tudo ficou mais “exclusivo”, como se fosse uma higienização com ares gourmet… (Tainá, estudante, Fortaleza/CE)

O mesmo argumento crítico da modernização forçada pela qual o futebol no Brasil vem passando aparece entre vários outros informantes. No trecho abaixo, este fenômeno é articulado a uma crítica mais geral da chamada “ideologia do futebol moderno”, fenômeno amplo de mercantilização do esporte de que a elitização dos estádios seria apenas um aspecto:

Destruíram um estádio tradicional, o Verdão e construíram uma arena muito moderna e bonita no local, mas que não é funcional. Uma arena que traz toda uma ideologia do futebol moderno, que tenta apagar o futebol tradicional, que é o fio condutor da paixão e da emoção no futebol. Assistir um jogo na Arena Pantanal – como em qualquer outra arena da Copa do Mundo – é um evento deprimente pra quem é acostumado com aquele futebol de emoções. Em todas as arenas eles tentaram importar um modelo europeu de futebol pra tentar colocar goela abaixo que a torcida brasileira deveria se comportar dessa forma. Nas arenas não é permitido instrumentos musicais, nem charangas, não é permitido levar bandeiras, (…) tentaram proibir o torcedor de torcer cantando em pé. Colocaram agentes pra fazer o torcedor ficar sentado. No Brasil, o torcedor não é uma plateia, um teatro, em que as pessoas só levantam e aplaudem no momento de um gol. (…) Nós queremos novamente levantar nossas bandeiras, nossos instrumentos musicais, fogos de artifício, isso a gente quer de volta! E a Copa do Mundo e as arenas tiraram isso dos torcedores. (Ramirez, professor, Cuiabá/MT)

A proposta de elitização como modelo de negócios para estádios de futebol tenta realizar de certa maneira o sonho dourado da Belle Époque carioca: uma arquibancada repleta de cavalheiros de cartola e damas de sombrinha, a acompanhar embevecidos os lances do match de foot-ball dominical. Com algumas diferenças: o aumento dos preços dos ingressos foi eficaz para eliminar os Geraldinos, mas não para trazer de volta os cavalheiros e senhoritas. Ou seja, ao invés de um estádio cheio com preços baratos, agora temos estádios vazios com preços caros. Algumas partidas (confrontos decisivos ou jogos da Libertadores) até geram melhor público, mesmo com preços altos. Mas é bom lembrar, apenas como comparação: em 1971, para uma população de cerca de 90 milhões de habitantes, a média de público por jogo do Campeonato Brasileiro foi de mais de 20 mil torcedores. Ano passado, com população acima de 200 milhões, tivemos média de público de cerca de 15 mil espectadores por jogo… Não basta uma partida com lotação esgotada. O problema é manter uma boa média de público todas as semanas, pois as despesas com manutenção das arenas são substancialmente maiores do que a de um estádio convencional.

Alguns epifenômenos relevantes: como os setores de ingressos mais baratos ficam atrás do gol, e os setores mais caros ficam no meio do estádio (de frente para as câmaras de TV), os torcedores desapareceram da TV; a imagem que se vê na televisão como fundo para as partidas é a de um estádio vazio.

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Foto: Leonardo Turchi Pacheco, Projeto Torcedores.

Outro epifenômeno a ser destacado: como os ingressos estão muito mais caros, foram criados expedientes para obtê-los a menor preço. O mais simples deles: entrar para uma torcida organizada. Muitas torcidas organizadas têm vínculos próximos com dirigentes dos clubes, e recebem quantidades de ingressos para serem distribuídos e/ou revendidos. Como isso é ilegal – os ingressos da diretoria são (deveriam ser) cortesias invendáveis – a arrecadação obtida é informal, e não entra em qualquer contabilidade oficial, gerando uma economia subterrânea, capital político e poder simbólico para quem os detêm. Isso reforça relações de clientelismo e dependência no interior da micropolítica dos clubes, e favorece a que algumas torcidas organizadas se tornem coletivos cooptáveis a troco de ingressos. E o apoio de uma organizada pode ser um fator de desequilíbrio, por exemplo, em eleições para a diretoria. Paradoxalmente, esse sistema clientelista se reproduz e reforça, movido a partir do capital simbólico gerado pela elitização dos estádios: quanto mais caro o ingresso normal estiver sendo vendido, mais “valerá” o ingresso gratuito no “câmbio paralelo”.

Assim, o projeto deliberado de elitização do público de futebol no Brasil parece ter saído pela culatra. Ao invés de trocar as incontroláveis camadas populares por cavalheiros e senhoritas, o processo fez ampliar e fortalecer justamente o setor mais incontrolável do “povo do futebol”: as torcidas organizadas. Destaco que não são todas as torcidas organizadas que negociam por ingressos, assim como não são todas as torcidas que são “de pista”, orientadas para o confronto com torcedores rivais. O universo das organizadas é muito complexo para reduções simplistas, é bom lembrar.

Os cavalheiros e senhoritas (não todos, só aqueles que gostam do futebol brasileiro) preferem assistir seu time no pay-per-view em casa, com telão, ar-condicionado e cerveja importada. E o Geraldino que não entrou para a organizada? Continua apaixonado por seu time, mas agora escolhe bem o jogo e junta dinheiro para um dia poder assistir de pé sobre a cadeira padrão FIFA.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Édison Gastaldo

Antropólogo, docente e pesquisador no Centro de Estudos de Pessoal e Forte Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. Autor de "Pátria, Chuteiras e Propaganda"(AnnaBlume/Unisinos, 2002), "Erving Goffman, desbravador do cotidiano"(Tomo Editorial, 2004), "Nações em Campo: Copa do Mundo e identidade nacional (com Simoni Guedes, Intertexto, 2006), "Publicidade e Sociedade" (Sulina, 2013) e "Etnometodologia & Análise da Conversa"(com Rod Watson, Vozes/PUC-Rio, 2015).

Como citar

GASTALDO, Édison. Onde está o Geraldino?. Ludopédio, São Paulo, v. 107, n. 11, 2018.
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