Desde sempre sou torcedor do Corinthians Paulista, como meu irmão, com quem compartilho o gosto pelo futebol e a paixão pelo time que tanto tempo ficou sem nada conquistar. Sim, foram 23 anos sem um caneco, trauma rompido em 13 de outubro de 1977, com o título paulista sobre a Ponte Preta. Foi numa noite de quinta-feira e era aniversário de nosso pai, aquele que nos ensinou a ser corintianos. Já vivi o suficiente para ver o Timão ser campeão de tudo o que é possível, o que inclui uma Liberadores e dois Mundiais de Clubes. Entre grandes equipes e elencos medianos, também vivi a Série B, o centésimo gol do goleiro Rogério Ceni, as acachapantes derrotas. Admirei jogadores e treinadores, antipatizei com outros tantos, frequentei partidas sozinho e acompanhado, muitas entre alvinegros, mas também no setor do adversário, em ocasiões em que na Ressacada e no Orlando Scarpelli foi impossível adquirir um ingresso para estar com meus compatriotas. Nesses casos, vibrei ou lamentei calado.

Há pouco mais de duas semanas, pela segunda vez, que me lembre, senti-me envergonhado de ser corintiano. A primeira havia sido quando um sinalizador disparado por nossa torcida foi encontrar um dos olhos de um menino de 14 anos, Kevin Espada, em Oruro, Bolívia, durante partida contra o San José, pela Libertadores, em 2013. O jovem morreu instantaneamente. Teria sido justo que o Corinthians, que defendia o título, fosse eliminado da competição, assim como o gesto correto era que o clube se retirasse do torneio. Sem comparar um caso com outro, um sentimento parecido me assaltou quando recebi mensagem de meu irmão, em 20 de abril, dando conta de que Cuca havia sido contratado para o lugar do até então treinador Fernando Lázaro, assumindo a casamata alvinegra e relegando seu antigo ocupante à condição de auxiliar-técnico.

Corinthians Cuca
Foto: Rodrigo Coca/Agência Corinthians/Fotos Públicas

A resistência à chegada de Cuca foi enorme, tanto por parte da imprensa, quanto nas redes sociais. A coisa chegou ao ponto do insuportável para o treinador, que renunciou ao cargo uma semana depois de contratado, logo após a vitória nos pênaltis sobre o Clube do Remo, resultado que classificou a equipe para as oitavas-de-final da Copa do Brasil. Além da pressão sobre si, haveria, segundo disse, o assédio sobre a família. É lamentável que mais uma vez a esposa e as filhas tenham sido expostas e sofram com tudo isso, elas que já haviam aparecido na famosa entrevista do treinador a Marília Ruiz, no contexto da oposição de torcedoras e torcedoras à sua recontratação pelo Atlético Mineiro.

Há fartura de informações disponíveis para que se forme convicção de que Cuca e os outros três jovens gremistas de 1987 cometeram crime que, conforme o devido processo, os levou à condenação penal. É certo que se vivia outros tempos quando o ato de violência aconteceu, época em que o machismo era ainda mais naturalizado do que hoje. Aos homens era ensinado que não apenas podiam, como deviam dispor das mulheres, e que não o fazer seria um erro. Mais que isso, uma fraqueza a colocarem risco a própria identidade masculina. Mas nada disso diminui a responsabilidade de quem cometeu algo que, ontem como hoje, transgride a lei, produz uma vítima e agride toda a sociedade.

A pena está prescrita, Cuca tem uma carreira de sucesso, apesar de agir contra si mesmo com alguma frequência, e certamente nenhum problema financeiro. Apesar disso, parece dificílimo o reconhecimento em público do que passou, algo que poderia vir com uma proposta de restauração. O ex-treinador do Corinthians não é um monstro, como bem destacou Milly Lacombe, mas um sintoma de algo cujo principal marcador é o que Fernando Grostein Andrade e Fernando Siqueira chamaram de masculinidade catastrófica. Dessa catástrofe participamos todos nós, e o gosto só ficou mais amargo, ao menos para mim, quando soube que a Gaviões da Fiel, principal torcida organizada do clube, não condenou a contratação feita pelo presidente do clube. Duílio é, aliás, filho de Adilson Monteiro Alves, sociólogo e diretor de futebol nos anos 1980, um dos artífices da Democracia Corinthiana. Como tudo pode piorar, tão logo foi sacramentada a vitória contra os paraenses, houve o abraço coletivo dos jogadores no treinador. Foi dolorido ver o aval de tantos, assim como ouvir as declarações de Róger Guedes – o camisa 10 da equipe – sobre a jornalista Ana Thaís Matos.

Corinthians
Fonte: Rodrigo Coca/Agência Corinthians/Fotos Públicos

Com a saída de Cuca, e depois de tentativas vãs com treinadores que em outros tempos levaram o Corinthians a títulos importantes, a diretoria abriu negociações com Roger Machado, profissional de grande potencial, com ideias inovadoras que só fazem bem ao futebol. A oposição teria sido grande nas redes sociais (outra vez) devido aos poucos títulos em seu currículo. Sim, mas ainda em maior número do que tem Fernando Diniz, o principal responsável pelo futebol mais bem jogado no Brasil de hoje. Além disso, seria ele excelente para o time do Parque São Jorge: militante negro antirracista, com postura avançada e pela esquerda. A contratação, no entanto, evaporou. Sem Roger, a opção recaiu sobre Vanderlei Luxemburgo, que começa sua terceira passagem pelo Parque São Jorge. O retorno de Luxa é a volta do malandro, com tudo o que significa tal expressão. Esse assunto fica para uma próxima coluna.

É possível separar a obra do artista e, portanto, desconsiderar ou minimizar o que reprovamos no segundo, de forma a fruir da primeira? Eis a difícil questão que, no esporte, ganha um problema a mais: atleta e treinador não se separam do produto de suas ações, eles a cada partida atualizam-se como protagonistas de si mesmos. Não atuamcomo personagens. Seria muito difícil seguir torcendo para o Timão se Cuca tivesse seguido na área técnica.

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Alexandre Fernandez Vaz

Professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e integrante do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq.

Como citar

VAZ, Alexandre Fernandez. Orgulho e vergonha de ser corintiano. Ludopédio, São Paulo, v. 167, n. 6, 2023.
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