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Os cartões

Luiz Henrique de Toledo 4 de junho de 2021

Recebo uma foto do meu cunhado, seguida de uma mensagem: “O primeiro amarelo a gente não esquece”.  Tento desfazer a surpresa que me assaltou e retorno à imagem e o vejo discutindo com o árbitro dentro de campo. Mexo nos óculos para ajustar alguma verdade naquilo e lá o encontro com o dedo em riste tomando, como se diz no jargão, um cartão amarelo.

A foto aparentemente flerta com as circunstâncias de um meme, que um dia já chamamos de clichê, e poderia facilmente se prestar a uma daquelas montagens que ao manter a cenografia substitui-se o personagem ao bel prazer das intenções. E dali poderia surgir a rainha da Inglaterra ou mesmo cada um de nós, reles torcedores brincando de estar no centro nevrálgico daquela pantomima esportiva.

Árbitro
Foto: arquivo pessoal de Sérgio Marcolino Rosa

Mas não, se tratava de uma foto fidedigna, instantâneo capturado numa partida entre Náutico e Ponte Preta pela série B do brasileirão de 2020. O fato é que alguém da comissão técnica desde o banco de reservas havia registrado aquele momento solene que rebatizo aqui de rito de passagem. Sergião, como é alegremente conhecido, integra o corpo de profissionais da equipe médica do clube campineiro. Torcedor assíduo de um clube de massa desde que se conhece por gente encaminhou parte da sua vida profissional, mais pelo prazer do que remuneração, no rumo de um clube profissional do futebol masculino. E lá já está há um bom tempo, daí a raridade da ocasião.

O cartão recebido, por ter tentado corrigir a má conduta de um árbitro o fez entrar de vez no seleto clube dos profissionais que interagem, por algum motivo, com as regras dentro de campo. Embora integrante de um staff esportivo um tanto quanto críptico, tal como vejo um departamento médico, faltava em seu currículo esse polimento dramático, visual, performático, colérico, coletivo e contendor, que o colocava de vez diante da onipotência e universalidade das regras.

Sabe-se que os cartões foram inventados para responderem às necessidades acarretadas pela mundialização do futebol e que foram implementados de fato na Copa do mundo realizada no México em 1970. Esta é uma historinha de fácil acesso na internet, narrando a oficialização ou debut dos cartões, plásticos coloridos que mudariam decisivamente a imagem dos árbitros dentro das situações de jogo. Contam ainda que os usos dos cartões foram motivados por acontecimentos anteriores, sobretudo uma partida tumultuada entre Inglaterra e Argentina na Copa de 1966, que integrou o certame que o dramaturgo Nelson Rodrigues denominava implacavelmente de a Copa do apito.

A história oficial impõe que os cartões foram implementados para corrigir a comunicação truncada entre gestos e idiomas em campo, pois assim a normatização do jogo ganharia a suposta universalidade das cores, cujos significados técnicos foram inspirados na lógica do semáforo, sem a presença do verde, obviamente. O perigo do vermelho e a atenção do amarelo foram transfiguradas numa escala hierárquica de punições, das leves às mais condenáveis. Tais significados estão longe de serem universais como nosso imperialismo cultural gosta de crer, basta uma lida em trabalhos etnológicos para ver como deslizam os significados atribuídos às cores, mas esse é outro assunto.

Impossível não produzir uma acareação dessa versão polida sobre o contexto da origem dos cartões com as observações dramatúrgico-torcedoras rodrigueanas em relação ao contexto que passou a despertar a atenção da FIFA

Amigos, eis uma verdade inapelável: – só os subdesenvolvidos ainda se ruborizam. Ao passo que o grande povo é, antes de tudo, um cínico. Para fundar um império, um país precisa de um impudor sem nenhuma folha de parreira. Vejam a presente Jules Rimet. Nas barbas indignadas do mundo, a Inglaterra se prepara para ganhar no apito o caneco de ouro (…) A serviço da Inglaterra, a FIFA escalou oito juízes ingleses para os jogos do Brasil. A arbitragem foi manipulada para liquidar primeiro os bicampeões e, em seguida, os outros países sul-americanos. O match Inglaterra X Argentina foi um roubo. Uruguai X Alemanha, outro escândalo (Rodrigues, 1993:132).

O fato era que agora meu estimado cunhado se viu patrimoniado no lugar onde, um dia, craques locais como Serginho “Chupala”, Rui Rei, ou estrelas internacionais como Maradona e até o inoxidável Cristiano Ronaldo já haviam se colocado ao receberam um cartãozinho. Ainda na era Pelé, pouco antes da inclusão definitiva dos cartões, outro caso se tornou paradigmático. Essa é outra história que pode ser lida por aí, há inclusive imagens disponíveis, e descreve a famosa expulsão ou retirada de Guilherme Velásquez de um jogo, árbitro colombiano que ousou expulsar Pelé num encontro meramente amistoso do Santos FC com a seleção sub-23 daquele país, partida realizada em 17 de julho de 1968, em Bogotá. Em determinado momento e em virtude de uma briga generalizada o juiz recebe um direto em seu olho esquerdo e aí resolve expulsar Pelé. A pressão da torcida o teria recolocado em campo e sugerido a saída do árbitro, o que de fato ocorreu na sequência da partida.

Ingressar no panteão dos indisciplinados é promover a inclusão, mesmo que momentânea, na comunidade dos torcedores, lídimos guardiões da desordem e imprevisibilidades que cercam uma partida no futebol. Aí doutor, valeu!

Curioso como eventos futebolísticos corriqueiros como este cumprem reclassificar e reproduzir os fundamentos disciplinares do jogo, ainda que recobertos pela pessoalidade e experiências singulares emuladas por protagonistas distintos, de Pelé a um médico à beira do gramado. Mas são as pequenas histórias locais que espocam aqui e acolá aquelas que alimentam as grandes narrativas, frequentemente revisitadas. Não haveria o épico sem essas experimentações infinitesimais e anônimas, ou quase anônimas, ainda mais com os recursos disponibilizados pelos smartphones, que permitem um nível de intimidade no registro de imagens até então jamais visto. Tais eventos produzem inteligibilidade, simulam condutas que ao final das contas se parecem, borrando hierarquias esportivas.  

Cristiano Ronaldo
Foto: Reprodução Facebook

A iconicidade da imagem na forma das gestualidades extravagantes (naturalizadas pelas convenções, já que se repetem em incontáveis jogos) prescreve a cumplicidade daqueles que integram o drama e produz o efeito fático pretendido na aplicação das regras no manuseio dos cartões. Coadunando o rito à rotina, submetendo a palavra e a corporalidade às intervenções da norma, os cartões vieram justamente para visualizar e amplificar o gradiente da ordem, mas como subproduto trouxeram inquietantes emoções ao espetacularizar justamente aquele que deveria ser obliterado do espetáculo, o árbitro. Os cartões abrigaram por muito tempo a criatividade inalienável dos gestos dos árbitros e estimularam personalidades que se ocultavam naquela persona que se pretendia equidistante dentro de campo. Estilos revelados no simples sacar os cartões do bolso, empunhá-los, performá-los como próteses do corpo, rodá-los na mão antecipando a decisão derradeira, enfim, deram vasão a uma grade de classificação que, enfim, amplificou a presença dos árbitros em campo.

E por aí apareceram aqueles que cultivaram os gestos mais histriônicos, desajeitados ou sincopados às condutas militarizadas e calculadas, ou atrapalhadas e até mesmo envergonhadas. Das arquibancadas tais gestos ganhavam ares de Grand Palais. Quem não xingou um cartão vermelho, quem não ovacionou um cartão amarelo? Quem não os temeu, quem não os recusou?

Prescindindo da compreensão mediada pela palavra ou interjeições corporais, os cartões se colocaram como signos visuais disciplinadores da ordem a que todos deveriam obedecer. Odiados ou amados foram por isso mesmo resguardados da curiosidade experimental torcedora. Falamos sobre cartões, mas raramente os tocamos, ou temos acesso àqueles que estiveram em ação. Ao mesmo tempo não despertam a curiosidade torcedora a ponto de serem consumidos como outro artefato do jogo, como uma bola ou uma camisa. Ficam ali resguardados e inertes pela posição fugidia do árbitro.  

Como torcedor comum, e já bem mais velho, eu mesmo pude manusear um par de cartões uma única vez. Foram apresentados pelas mãos do amigo José Carlos Marques, reconhecido intelectual que pesquisa a linguagem do futebol, aliás estudioso da prosa de Nelson Rodrigues, e que também fora árbitro nas divisões inferiores do futebol paulista. Ao tocar aqueles cartões, alguns gestos pareceram imantá-los, tornando instintivo empunhá-los, simular o levantar do braço, apontá-los para alguém, reproduzir a imagem icônica contida dentro daqueles objetos plásticos. No entanto, há plásticos e plásticos. Ninguém em sã consciência ao receber pela primeira vez um cartão de banco, mesmo que entusiasmado pela novidade, simula as gestualidades de uma transação comercial.

E para quem experenciou a era dos árbitros performáticos, ao segurar aqueles cartões oferecidos na brincadeira todo um panteão acabou despertando lembranças. O sisudo Romualdo Arpi Filho, o Pantera cor-de-rosa, apelido hoje tomado por misógino, mas que perpetuou as performances irrequietas de Roberto Nunes Morgado ou ainda o palavrório de um Armando Marques e as performances de Jorge José Emiliano dos Santos, o Margarida. 

Morgado árbitro
Morgado, o mais franzino presente nessa imagem, procurava enfrentar tudo e todos nos gramados. Foto: Reprodução Placar

Os cartões, sempre amarelo e vermelho, nasceram para equalizar as intensidades calóricas do jogo-drama assim como o fardamento do juiz, comumente vestindo preto, mas que, ao contrário das cores dos cartões, foram alterados com o tempo (uniformes amarelos, azuis, rosas). Utilizando uma abstração já clássica, presente em textos antropológicos, arremato que as cores na ordem esportiva também se prestam a representar “(…) a experiência física intensificada, a qual transcende a condição normal daquele que a vivencia; são por esse motivo, concebidas como divindades ou poderes místicos, tal como o sagrado em oposição ao profano” (Turner, 2005:130;131).

Os cartões foram por um bom tempo os únicos objetos a ostentar a marca ou status de signos dominantes da cultura material presente no ordenamento esportivo, mesmo com a crescente intromissão das mídias nos eventos esportivos. Hoje rivalizam tal visualidade normativa com outros instrumentos menos intuitivos, que compõem a parafernália tecnológica menos espetacular de aferição das decisões (técnicas e disciplinares) em campo. O VAR introduziu mudanças na conduta da arbitragem e no tônus torcedor, não somente esparramando mais o poder decisório, o que parece bastante óbvio, mas impondo algum arrefecimento à trama da dramaticidade que cercava decisões em campo e a exposição dos cartões. É como se as cores tivessem sido desbotadas aos novos mil olhos da normatividade supostamente precisa que emula dos recursos da tecnologia. Os cartões perderam boa parte daquele elã (da magia, do “mana”) contido naqueles plásticos que possuíam (no sentido de possessão) o corpo dos árbitros, que estão hoje mais atentos ou dispersos ao que lhes sopram nos ouvidos aqueles que compõem a arbitragem dentro de uma distante cabine de VAR.  

 

Referências bibliográficas

Marques, José Carlos. O futebol em Nelson Rodrigues: O óbvio ululante, o Sobrenatural de Almeida e outros temas. São Paulo: Educ, 2012.

O dia em que Pelé “expulsou” o juiz. Acesso em 03.02.2021.

Rodrigues, Nelson. “A copa do apito”. In: À sombra das chuteiras imortais: Crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

Turner, Victor. Floresta de Símbolos. Aspectos do Ritual Ndembu. Rio de Janeiro: EdUFF, 2005[1967].

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Kike Toledo

Kike Toledo é sambista, torcedor e antropólogo.

Como citar

TOLEDO, Luiz Henrique de. Os cartões. Ludopédio, São Paulo, v. 144, n. 7, 2021.
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