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Os donos no futebol

Irlan Simões da Cruz Santos 30 de julho de 2020

Os clubes do século XXI foram controlados por perfis facilmente classificáveis de “investidores”. Todos absolutamente cientes de uma verdade inconveniente da qual essa indústria jamais conseguiu se desprender e admitir: clube de futebol não dá dinheiro.

Não há qualquer exagero nessa afirmação. Desde a irreverente literatura da dupla Simon Kuper & Stefan Szymanski (2009)[1] até a radical crítica de David Kennedy e Peter Kennedy (2016)[2], são notórios os indícios de que a propriedade de clubes de futebol não se configura como “um grande negócio”, e pior, mal pode ser considerada “um negócio”. A propriedade de clubes de futebol não opera em uma ordem guiada pelo lucro, não costuma ter suas ações negociadas em ritmos convencionais, não estabelece faturamentos comparáveis a segmentos periféricos do terceiro setor, não repassa dividendos para os seus envolvidos… por que, então, alguém teria tanta vontade de ter um clube? Porque futebol movimenta as multidões. E as multidões alteram o rumo dos ventos.

Os donos de clubes de futebol hoje podem ser divididos em quatro grandes grupos. Três deles são diretamente relacionados à utilização do clube como ferramenta de propaganda e/ou publicidade; o último é mais diverso: 1) geopolítica: Estados interessados em fazer dos clubes suas ferramentas de “soft power”; 2) política eleitoral: personalidades ou grupos políticos dispostos a investir em um clube de massas para reverter seu sucesso esportivo em capital político; 3) mercado de capitais: grupos financeiros, e seus respectivos representantes públicos, em busca de projeção de suas imagens e marcas para a atração de investidores para seus projetos; e 4) os alheios: ora desinformados, ora aventureiros, ora mal intencionados, muitas vezes notórios lumpenburgueses.

1) Geopolítica – O uso do clube de futebol como instrumento de “soft power”, isto é, o exercício do poder sem uso da violência, pode apresentar diversas finalidades, mas, em geral, se define pela intenção de facilitar o trânsito dessas lideranças/Estados dentro de países centrais da economia global. O esporte tem sido utilizado com esse princípio há muitos anos, mas esse tipo de “comprador de clube de futebol” está basicamente relacionado a quatro países.

O primeiro seria o emirado de Abu Dhabi, o mais importante e rico dos Emirados Árabes Unidos, que adquiriu o Manchester City em 2008 e posteriormente criou o City Football Group, maior holding global do segmento.[3] O segundo seria o emirado do Qatar, atual proprietário do Paris Saint-Germain, da França, que adquiriu o clube em 2011. O terceiro, em processo que até maio de 2020 não estava concluído, seria a Arábia Saudita, prestes a adquirir o tradicional Newcastle United, da Inglaterra. Nesses três casos, se tratam de Estados teocráticos que mobilizam seus fundos públicos de investimento para adquirir grandes marcas do futebol global e se dispõem a realizar gigantescos investimentos. O quarto deles é o Estado chinês, responsável por financiar investimentos em dezenas de clubes localizados em territórios que representam pontos estratégicos dos interesses desse Estado.[4]

Nasser Al-Khelaifi apresenta oficialmente Neymar Jr como jogador do Paris Saint-Germain, em 4 de agostos de 2017. Foto: Wikipedia.

2) Política eleitoral – em países democráticos, a busca pelo voto é um dos poucos verdadeiros desafios da vida de homens ricos. Uma vez que é difícil, custoso, ilegal e arriscado comprar o número necessários de votos para se eleger a um cargo público, empresários milionários de diferentes países tiveram uma grande ideia: tornar legal a compra do instrumento de mobilização apaixonada de milhares de cidadãos. Dessa forma, era preciso tornar os clubes compráveis. Três exemplos ilustram isso tipo de fenômeno.

Silvio Berlusconi, na Itália, adquiriu o Milan em 1986, na esteira da nova lei das sociedades por ações. Tornou o Milan uma máquina de comprar jogadores com imensos aportes financeiros sustentados pelo seu império de telecomunicações. Oito anos depois, conquistados quatro campeonatos nacionais e três taças continentais, Berlusconi era eleito primeiro-ministro do país pelo partido Forza Italia, criado por ele mesmo naquele exato ano de 1994. Ocupou o cargo em outras duas oportunidades.

Em um perfil mais modesto, também está a figura pitoresca do espanhol Jesus Gil, eleito em 1987 com margem apertada para a presidência do Atlético de Madrid em uma eleição com 22 mil votos. No cargo, torna-se um dos principais entusiastas da Ley de Deportes. Com a sua aprovação, se torna imediatamente sócio majoritário do clube que até então presidia. No ano seguinte, funda o partido Grupo Independiente Liberal (GIL) e se elege prefeito da cidade de Marbella, onde é reeleito três vezes antes de ser obrigado a abandonar a vida pública por envolvimento em um caso de corrupção realizado com o nome do Club Atlético de Madrid.

O caso mais emblemático talvez seja o de Sebástian Piñera, do Chile. Um empresário bilionário, cuja família teve relações firmes com os primeiros anos da ditadura Pinochet, já havia sido senador apesar das imensas dificuldades de emplacar eleitoralmente o Partido Renovación Nacional, do qual era presidente. No começo dos anos de 2000, começa a advogar pela conversão dos clubes chilenos em empresas, logo após impulsionar a revisão de uma lei em um processo que gerou uma dívida “retroativa” para os clubes. Logo depois, torna-se sócio majoritário da Blanco y Negro S.A., empresa que assumiria a gestão do Colo-Colo, clube mais popular do Chile (e rival da Universidad Católica, clube do qual declarou anteriormente ser torcedor). Em 2010, após quatro títulos nacionais sustentados por apoiadores/acionistas, Sebástian Piñera se torna presidente do Chile.[5]

Silvio Berlusconi, com Adriano Galliani (esq.) e Nils Liedholm (dir.), em seu primeiro Milan (1986/87), que venceria o play-off da UEFA contra a Sampdoria, mas com Fabio Capello no banco. Foto: Domínio Público.

3) Mercado de capitais – Mais do que necessariamente o uso do clube como forma de unir seu sucesso esportivo à imagem do seu proprietário, como mencionado anteriormente, esse quesito também envolve a limpeza da imagem de empresários com pregressos envolvimentos em atividades ilícitas. A força popular de um clube é capaz de blindar seus donos da lei.

Esses casos geralmente dependem das taças para lograr, e motivam grandes investimentos. É o caso do bilionário israelense-russo Roman Abramovich, que fez fortuna com a privatização das empresas estatais da antiga URSS, mais notadamente nos setores de mineração e petróleo. Em 2003, comprou o Chelsea, modesto clube de Londres, por meio do qual protagonizou o primeiro caso de megainvestimento do século XXI, rendendo diversos títulos, incluindo uma Champions League em 2012. Os resultados esportivos do Chelsea lhe renderam prestígio suficiente para se instalar com conforto no país. O final da década de 2010, no entanto, representou um gradual abandono dos investimentos, levando o clube a já não contratar como antes, a perder protagonismo e a suspender o projeto de um novo estádio. Roman Abramovich havia sido identificado como peça-chave de uma trama excepcionalmente complexa, que envolvia espionagem, guerra diplomática e lavagem de dinheiro, e, por isso, teve seu visto de residência no Reino Unido negado.

Em 2010, foi a vez do sheik Abdallah Ben Nasser Al-Thani comprar o Málaga CF, da Espanha, levando clube até a uma inédita Champions League em 2013. Esse caso não pode ser confundido como um exemplo de soft power, uma vez que Al Thani intencionava projetar sua própria ambição no mercado imobiliário espanhol. Alguns indícios apontam que o drástico desinvestimento do sheik no clube andaluz ocorreu por causa de uma série de frustrações aos seus planos empresariais, em especial pelo impacto das movimentações políticas contrárias aos seus projetos de arranha-céus na zona portuária da cidade. Em 2018, o Málaga CF é rebaixado para a segunda divisão espanhola. Em fevereiro de 2020, Al Thani foi afastado do conselho administrativo do clube por decisão da justiça espanhola, sob denúncia de apropriação indébita dos fundos da SAD.

Há também o caso de Peter Lim, bilionário financista de Singapura que adquiriu o Valencia Club de Fútbol em 2014, no rastro de uma crise causada pelo desastroso projeto de um novo estádio. Peter Lim somou fracassos dentro de campo, mas acabou por conquistar uma improvável Copa del Rey em maio de 2019, tirando o clube de 11 anos de jejum. Ainda assim, nunca gozou de prestígio junto aos torcedores e pequenos acionistas, que realizaram inúmeros protestos massivos desde a sua chegada. Com uma política austera nas contratações, Peter Lim ainda nomeou como presidente da SAD o seu conterrâneo Anil Murthy, um ex-diplomata, cuja experiência com o futebol era absolutamente zero. Sob sua gestão, o Valencia fracassou na tentativa de finalizar o antigo sonho do Nou Mestala, novo estádio que estava previsto para ficar pronto em 2010.

Roman Abramovich no estádio Stamford Bridge durante a vitória do Chelsea sobre o Portsmouth por 4 a 0, em agosto de 2008. Foto: Wikipedia.

4) Os Alheios: aqui está um tipo de investidor que não dispõe de grandes fundos como os listados anteriormente. Ao se apresentarem como homens de negócios bem-sucedidos, conquistam a confiança de clubes que pretendiam adquirir. Como resultado, é comum vê-los levando-os à bancarrota junto com seus próprios fracassos financeiros.

O empresário iraniano Majid Pishyar desembarcou em Portugal, promovido por sua experiência bem-sucedida de promoção à primeira divisão com o Servette FC, clube da Suíça. Por meio do 32Group, um grupo de investimentos criado em 2008, Pishyar assume a SAD do Beira-Mar e promete torná-lo o “quarto grande” do país. No ano seguinte, é forçado a admitir que estava abrindo pedido de falência no clube suíço e, em 2014, já repassava a sua participação no clube português para outro interessado. O Beira-Mar saiu dessa experiência falido e Majid Pishyar, apesar disso, continua desenvolvendo outras atividades financeiras com o 32Group. Hoje, os torcedores do Beira-Mar tentam refundar o clube nas divisões inferiores de Portugal.

No Brasil, esse foi o tipo de investidor que chegou ao Esporte Clube Vitória no ano de 1998, quando o clube baiano adotou o modelo de sociedade anônima no rastro do movimento gerado pela Lei Pelé. O Exxel Group, conglomerado financeiro argentino em franca ascensão, controlado pelo uruguaio Juan Navarro, adquire 50,1% das ações da Vitória S.A, por cerca de 6 milhões de dólares, faturando as dívidas que o clube possuía à época e planejando entrar no mercado de jogadores de futebol. Por ser esse um dos seus movimentos de expansão dentro do mercado sul-americano, o Exxel prometeu investimentos de 12 milhões de dólares ao longo de 5 anos. Antes de decolar, o grupo, que também havia comprado o clube argentino Quilmes, é impactado pela crise cambial argentina e por uma grave denúncia de fraude financeira. O Exxel Group abandona o Vitória, não faz o aporte financeiro prometido, vai à falência e aceita negociar a recompra das suas ações pelo EC Vitória em 2006, quando o clube jogava uma inédita Série C em sua história. O clube associativo restabeleceu o controle do seu futebol, extinguiu a Vitoria S.A. e voltou aos trilhos.[6]

Outro caso digno de nota é a aventura de Marcos Ulloa à frente do Deportes Concepción, clube chileno que sempre foi um dos mais tradicionais emblemas fora da capital. Tal empresário chegou ao clube em 2006 com a proposta de investir recursos de um grupo alemão representado por Mario Munzemayer. Recursos em tese suficientes para cobrir as dívidas da agremiação, para construir um novo centro de treinamentos e um estádio semelhante ao do alemão Schalke 04. O clube aceita a entrada de Ulloa na SAD, mas o dinheiro não existe. O Concepción foi rebaixado antes de conseguir desfazer o acordo com os falsos investidores e, em uma segunda tentativa de restabelecimento com novos investidores em uma nova SADP, mergulha em dívidas que levam à sua desfiliação da liga. Marcos Ulloa foi preso. Hoje os torcedores tentam restabelecer a associação.

Com a exceção do grupo 4 desse exercício ilustrativo, no fim das contas, do ponto de vista dos proprietários e de suas finalidades, o futebol de empresas do século XXI acabou adotando uma configuração semelhante à do futebol inglês no final do século XIX: clubes deficitários voltados para agregar à imagem do seu proprietário. A diferença agora é a proporção: em um futebol super consumido, televisionado para os quatro cantos do mundo, clubes provocam impactos reais no cenário eleitoral de uma nação, reposicionam geopoliticamente líderes globais, viabilizam projetos financeiros fraudulentos e limpam a imagem de empresários de origem e práticas duvidosas. Nessa escala, o futebol-negócio de clubes-empresa serve basicamente a interesses potencialmente perigosos.

É justo destacar que o futebol espanhol até meados dos anos 2010 ainda resguardava uma característica que lhe conferia certa diferenciação. Uma vez que seus antigos sócios tiveram prioridade na aquisição das ações da nova SAD, em muitos clubes os sócios mais ricos e influentes ocuparam os postos majoritários dessas sociedades. Até ali, por mais que também imperassem interesses como os já listados, se tratavam ao menos de proprietários de origem comum ao clube, muitas vezes até descendentes dos fundadores das associações. Mas esse tempo já passou.


Notas de fim

[1] “Se a Deloitte classificasse os clubes segundo o lucro, os resultados seriam constrangedores. Não apenas a maioria dos clubes tem prejuízo e não paga dividendos a seus acionistas, como muitos dos “maiores” clubes estariam no final da lista […]. Qualquer que seja o parâmetro, nenhum clube de futebol é um grande negócio”. (KUPER; SZYMANSKI, 2009, p. 88).

[2] “Um exame forense do estado da elite do futebol europeu confirma isso, revelando uma realidade totalmente diferente do dito sucesso comercial: é a realidade do débito, da falência, da perda do balanço competitivo e um contido ressentimento dos torcedores pela exploração financeira enquanto ‘consumidores’ e pela sua falta de poder de decisão”. (KENNEDY; KENNEDY, 2016, p. 25).

[3] Ver Capítulo 13 “Multi-club ownership: um novo estágio da globalização dentro do futebol”, de João Ricardo Pisani.

[4] Ver Capítulo 11 “Faixa, rota e bola: o futebol como instrumento de soft power chinês” e Capítulo 12 “Soft power e futebol: os casos de Catar, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita”, ambos de Emanuel Leite Junior e Carlos Rodrigues.

[5] Ver Capítulo 3 “Sociedades anónimas deportivas no Chile: o declínio do futebol social”, de Sebástian Campos Muñoz.

[6] A bem da verdade, o Exxel Group não “investia” no Vitória. Apesar de ter se tornado proprietário da maior parte da Vitoria S.A. a partir do ano 2000, o aporte de 12 milhões de dólares estava disponível como crédito a juros de 8% a.a.. Cerca de 60% desse montante foi utilizado, em um contexto de crise generalizada no futebol brasileiro, mas o resto desse valor foi bloqueado pelo credor unilateralmente, impactado pela crise cambial argentina que originou a sua falência. Ver: CARNEIRO, Paulo. “A vantajosa recompra das ações do Vitória S.A feita em 2004”, Blog de Paulo Carneiro. 30 mar. 2010.


Texto publicado originalmente em Comunicação, Esporte e Cultura, Blog do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte.

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Irlan Simões da C. Santos

Jornalista e pesquisador do futebol. Doutorando em Comunicação (PPGCom/UERJ). Autor do livro "Clientes versus Rebeldes: novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno".  

Como citar

SANTOS, Irlan Simões da Cruz. Os donos no futebol. Ludopédio, São Paulo, v. 133, n. 68, 2020.
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