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Os mexicanos não são bons de bola (segundo eles mesmos)

Hugo Lovisolo 18 de dezembro de 2014

Estou no México. As imagens do país me tocam e desejo saber mais sobre sua história e situação atual. Em uma livraria de sebo da Av. Centenário, Coyoacan, compro vários livros sobre o México, dentre eles “Mañana o pasado: El misterio de los mejicanos” (2011, Ed. Aguilar), escrito por Jorge G. Castañeda, um intelectual político e um político intelectual destacado em ambos os campos1. Castañeda me atrai pelo título tanto do seu livro como do primeiro capítulo: “De por qué los mexicanos rechazan los rascacielos y son malos para el futbol”. Deve existir alguma coisa por baixo que nos permita relacionar a rejeição aos arranha céus com a falta de qualidade para o futebol. A relação, que logo se revela, é em princípio misteriosa. O Brasil também é um mistério ou os brasileiros o são. Pareceria que todos tendem a destacar a complexidade da própria Nação sob a forma de mistério, daí que o “Brasil não seja para principiantes” e que a Argentina seja um mistério, sobretudo, para as teorias do desenvolvimento.

Que os mexicanos sejam “maus para o futebol” me atrai, mais quando isso é dito por eles mesmos. Castañeda se baseia em Juan Villoro que por sua vez teria se baseado em Alan Riding, carioca nascido em 1943, filho de pais britânicos dos quais herdara sua nacionalidade inglesa. Riding foi do direito e da economia para o jornalismo e atuou vários anos no México pelo New York Times. Um resultado de sua atuação foi a obra Vecinos distantes. Un retrato de los mexicanos (1985)2. Na interpretação de Riding, os mexicanos seriam ruins para o futebol por não serem jogadores de equipe ou associativos. Seus destaques apenas estariam nos esportes individuais como, por exemplo, o boxe. Segundo Castañeda, Villoro teria posto em dados empíricos a percepção de Riding sobre o individualismo e o desempenho dos mexicanos na sua seleção, além de tomar o esporte como matéria de intervenções jornalísticas e obras literárias de qualidade. O artigo mencionado é Era para Hoy?, publicado em 2008, e do qual estou atrás sem resultado positivo, embora existam listas de artigos e crônicas publicadas por Villoro na internet.

Para Castañeda, seguindo a história corriqueira, o futebol teria chegado ao México da mesma forma que a Argentina, ao Brasil e ao Uruguai: mediante a divulgação por estrangeiros dentre os quais se destacaram os trabalhadores ingleses e as escolas religiosas. As diferenças entre os países “bons de bola”, os três mencionados, e o México estariam dadas pela formação da base institucional do futebol, cujo surgimento seria apenas de equipes de futebol. No México –ao contrário dos bons de bola, Argentina, Brasil e Uruguai– teriam tido por base clubes sociais e esportivos, campo sobretudo de interação social, de melhores condições para a prática esportiva e lugares nos quais podia se desenvolver a autoajuda, em princípio, entre os imigrantes fundadores. A base institucional e melhores condições teriam ocorrido recentemente e a duras penas no México3.

Torcedores mexicanos seguram a taça na chegada ao Rio de Janeiro para ver a Copa do Mundo. Foto: Marcello Casal Jr. – Agência Brasil.

Contudo, a explicação seria insuficiente se não se leva em conta que “os mexicanos não gostam de socializar coletivamente. Preferem ver as partidas em casa (…). Se retrocedemos à época pré-colombiana, aparece um antecedente desta tendência individualista” (42). A história do futebol no México coloca um jogo pré-colombiano com bola. É difícil identificar esse jogo com a linhagem do futebol, sobretudo, se levarmos em consideração que o resultado implicava um ato de real canibalismo: comer ou ser comido. Contudo, o significativo é que enfatiza seu “individualismo”. Para Castañeda nem o movimento zapatista conseguiu quebrar com a tradição individualista mexicana (76-77). Marcos teria se convertido em mais um simples chefe carismático. O individualismo estaria também presente na rejeição aos arranha-céus.

Temos, então, o individualismo mexicano como condição ou força atuante no mau desempenho da seleção nacional. De fato, Castañeda segue a tradição da comparação dos individualismos: o associativo, na linha descritiva e interpretativa traçada por Tocqueville, e um individualismo não associativo que seria o mexicano. A recorrência a um individualismo insuficiente ou peculiar estaria na base de muitas explicações sobre o que não fomos ou poderíamos ser. Embora conceituar o individualismo não seja fácil, seja variável sua valorização e tremendamente difícil construir indicadores empíricos não contraditórios.

O fantástico, para mim, é que Oliveira Vianna, em artigo escrito para a coletânea organizada por Lecínio Cardoso, Às margens da história da República, afirmava interpretações muito semelhantes em relação ao individualismo brasileiro nas primeiras décadas do século XX. Creio que podemos interpretar que nos diz que sem individualismo associativo a república seria uma ideia fora de lugar no Brasil. E talvez o futebol fosse “fogo de palha” como afirmava Graciliano Ramos, sendo o único esporte válido a luta pelo poder que abria as portas para outros benefícios4.

Para Castañeda, Riding e Villoro seria o futebol um esporte fora de lugar no México apesar do fervor que desperta? Fervor que recentemente observamos na torcida mexicana durante a Copa no Brasil.

Torcedores mexicanos chegam para a partida no Castelão contra o Brasil. Foto: Marcello Casal Jr. – Agência Brasil.

Se levarmos em consideração que existem quase cem anos de distância entre o texto de Vianna e o de Castañeda temos duas opções: a) reconhecemos que os problemas são os mesmos ou b) pensamos que o “tipo de individualismo” continua sendo central para nossas explicações imaginárias do passado e das formas de enfrentar o amanhã, núcleo problemático de Castañeda. Ou seja, como o caráter mexicano estaria adequado às tarefas demandadas pela complexidade do futuro já presente. O individualismo egoísta apareceria como obstáculo para enfrentá-lo criativa e exitosamente.

Na virada do século XIX para o XX o individualismo “egocêntrico” foi colocado como fator do baixo desenvolvimento do futebol brasileiro5. Poucas décadas depois, em 1938, Freyre estaria elevando as qualidades do “futebol mulato” enquanto paradigma do futebol. Na nossa realidade, o futebol coletivo ou de força, o futebol de equipe, cuja principal metáfora seria o inglês, não teria sido totalmente apropriado pelo dito “futebol arte” ou “futebol bonito”. Teria ficado ao lado do seu caminho. Ainda mais, o craque individual e a jogada pessoal tiveram e continuam tendo valor de referência para nós, tanto quanto o destaque conferido pelas páginas mexicanas a Pelé em 1970 e a Maradona em 1986. Juan Villoro tem um artigo que que tem como protagonista Hugo Sanchez, talvez o maior craque do futebol mexicano. Nesse artigo, o individualismo ou desparece ou a falta de cooperação, de jogar em equipe, é absorvida pelas qualidades pessoais do maior futebolista mexicano e aluno do curso de odontologia da UNAM. Quem percorre a história do Estádio Azteca, totalmente disponível na internet, poderá constatar o valor conferido à individualidade, contudo, não parece existir muita diferença em relação às elaborações feitas por aqueles que se afirmam como “os bons de bola”.

O México parece sentir-se tocado na fibra futebolista por avançar pouco nas copas e por perderem dos times africanos. No entanto, nenhum desses times africanos aparece como primeiro ou segundo nas Copas do Mundo. Mais ainda, se temos 20 copas e 40 posições, entre primeiro e segundo, apenas 12 times rodam ocupando essas posições. O primeiro lugar foi ganho 13 vezes por apenas 3 times e eles também ganharam várias vezes o segundo lugar. Ou seja, tudo indica que estamos diante de um oligopólio competitivo. Tudo indica que é um monopólio difícil de quebrar. A Espanha demorou a entrar para a lista dos 12 vencedores e tivemos sinais de que parece difícil que repita o feito. A incógnita, depois de tudo, é o fermento do entusiasmo pelo futebol.

Brasil e México fizeram uma partida muito equilibrada na Copa do Mundo de 2014. Foto: Rafael Ribeiro – CBF.

Eu me pergunto: se o México ganhar a Copa de 2018, mesmo por acaso, as teorias sobre o peso do individualismo ou da incapacidade para jogar de forma associativa ou cooperativa continuariam sendo reiteradas ou seriam rapidamente substituídas?

Atrever-me-ia a responder de forma negativa à pergunta. Neste caso, seria muito bom interrogarmos sobre o papel que desempenham as teorias do individualismo não associativo em nossas construções sobre o passado e o futuro.

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[1] Castañeda ocupou o cargo de Secretario de Relaciones Exteriores, Chanceler creio que se diria por aqui, foi candidato a presidente e leciona em universidades dos Estados Unidos. É um dos entrevistados pela GloboNews nessa semana. O programa ainda está no ar.

[2] Descobri sem saber que usei o mesmo título que Riding, Vizinhos distantes, para um livro meu editado pela Eduerj, “Vizinhos distantes: comunidades científicas em Argentina e no Brasil”. Tenho a meu favor, como desculpa, de que em 1999 a internet nada informava.

[3] Observo que Mario Filho escreveu entre 1915 e 1920 vários artigos jornalísticos salientando as positivas condições dos clubes argentinos quando comparados pelos brasileiros.

[4] Lovisolo H. R. e Soares , A. J. Fogo de palha: a profecia de G. Ramos. Pesquisa de Campo. , v.5, 1997.

[5] Veja-se Soares, A. J. e Lovisolo, H. R., Futebol: A construção histórica do estilo nacional, RBCE, v.25, n.1, p.129-143, set de 2003, Mostramos no artigo como nos inícios do futebol, primeiras décadas do século XX, abundavam as críticas ao individualismo egoísta no futebol e os elogios ao jogar para a equipe.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Como citar

LOVISOLO, Hugo. Os mexicanos não são bons de bola (segundo eles mesmos). Ludopédio, São Paulo, v. 66, n. 6, 2014.
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