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O(s) significado(s) da épica conquista de Ahmed Hafnaoui

Ahmed Hafnaoui
Foto: Redes sociais Ahmed Hafnaoui

Fim da noite de sábado, 24 de julho de 2021, segundo dia dos Jogos Olímpicos de Verão. Acompanhado por minha mãe, com os olhos vidrados na TV, espero que algo inusitado ocorra no silencioso Centro Aquático de Tóquio. Entre um cochilo e outro, ela olha para a tela e pergunta: “quem é esse aí, todo desengonçado?”. Sem qualquer interesse na pergunta, finjo, grosseiramente, não a escutar. O menino, alocado na oitava raia da piscina e prestes a saltar para a disputa dos 400 metros livres, me chamou atenção pelo fato de representar a Tunísia. Os comentaristas do canal esportivo que eu assistia simplesmente não mencionam o adolescente de 18 anos.

Bastaram 3min43s36 para que o atleta, até então despercebido se apresentasse, humildemente, ao mundo. O agora herói olímpico, ao se dar conta da vitória, socou a água e gritou para todos os lados, talvez buscando encontrar os olhos de seu treinador, que corria lateralmente de um lado para outro, maravilhado e incrédulo.

Ao sair da piscina, o atleta se mostrava extasiado pelo momento de glória. Assediado pelos flashes atônitos dos fotógrafos e pelos microfones dos repórteres de plantão, Hafnaoui repetia não acreditar no que havia conquistado, e que simplesmente tinha nadado o mais rápido que pôde. A conquista era algo tão inimaginável para o campeão e seu técnico, que eles se esqueceram de levar o agasalho a ser vestido na cerimônia de entrega da medalha.

O nadador Ricardo Prado, medalhista de prata nos 400 metros medley nas Olimpíadas de Los Angeles, em 1984, ao comentar o feito do tunisino, disse que ao acompanhar os primeiros 200 metros da prova, pensou que Ahmed fosse morrer. Ele resumiu a noite da conquista histórica como “estranha”.

Michael Phelps, o maior nadador de todos os tempos, ressaltou a peculiaridade das Olimpíadas de Tóquio, nas quais, por conta das adversidades trazidas pela pandemia da COVID-19, “qualquer um chega à uma etapa final de competição com chances de ganhar um ouro”; ele parabenizou Hafnaoui por baixar 4 ou 5 segundos da sua melhor marca pessoal, e compartilhou sua alegria ao assistir jovens alcançando seus sonhos e objetivos.

Embora imenso, o significado esportivo da performance de Ahmed para a Tunísia é mensurável, vez que ele passa a integrar o seleto grupo de 6 entre 11.949.661 habitantes que conquistaram uma medalha olímpica.[1]

Para além dessa perspectiva, vale o esforço para compreender qual o significado desse ouro olímpico para a Tunísia contemporânea, enquanto nação.

Origem histórica

Tunísia
Fonte: reprodução

A Tunísia possui quase três mil anos de história, ao longo dos quais foi influenciada por muitos povos, em especial os árabes, berberes, cartagineses, otomanos e romanos. Num contexto de dificuldades econômicas locais e no ápice do imperialismo europeu, a Tunísia tornou-se protetorado francês, em 1881. Sob administração francesa, constituiu-se um sistema de educação bilíngue, possibilitando às elites tunisianas o acesso a universidades francesas, onde se formaram as primeiras lideranças que contestaram o domínio francês.

A resistência tunisina intensificou-se na primeira metade do século XX. Em 1920, foi fundado o partido “Destur”, de orientação nacionalista. Em 1934, uma cisão interna na agremiação política ensejou o surgimento do partido “Neo-Dustur”, que além da defesa da independência tunisina, sustentava a preservação do caráter laico do Estado. O novo partido, sob a liderança de Habib Burguiba, bacharel em Direito em Paris, ganhou, aos poucos, destaque na oposição ao governo francês.

Após o fim da Segunda Guerra Mundial, tal oposição renovou seu impulso. O assassinato do líder sindical Farhat Hached, em dezembro de 1952, gerou uma intensa onda de greves e protestos no país, que duraria até 1954, quando a França concedeu autonomia interna à Tunísia e iniciou negociações com o “Neo-Destur” para a concessão da independência, formalmente obtida em março de 1956. Entre 1955 e 1956 houve a supressão de uma revolta encabeçada pelo secretário-geral do “Neo-Destur”, Saleh Ben Youssef; em 1957, a República foi proclamada e, em 1959, Burguiba foi eleito o primeiro presidente do país.

O governo Burguiba foi marcado, por um lado, pelos esforços de modernização e secularização do país, capitaneados pelo Estado tunisino e pelas crescentes restrições a liberdades civis e políticas. Cinco meses após a formalização da independência, em agosto de 1956, adotou-se o Código de Estatuto Pessoal, legislação inédita no Mundo Árabe, por garantir direitos fundamentais às mulheres, tais como o divórcio, idade mínima e consentimento mútuo para o casamento, acesso à herança e à guarda dos filhos, entre outros. Esses avanços, contudo, foram seguidos por retrocessos políticos. Nos anos 1960, o país se transformou num regime de partido único, com o “Neo-Destur” renomeado como “Partido Socialista Destouriano” (PSD), em 1964 e, em 1975, Bourguiba se tornou presidente vitalício da Tunísia.

No início da década de 1980, por conta do segundo choque do petróleo em 1979, e da queda da sua produção agrícola, a Tunísia mergulhou numa grave crise econômica, acompanhada por protestos em busca de maiores liberdades e contra a alta de preços, principalmente dos alimentos. Como resposta, o governo tunisino empreendeu movimento de tímida abertura, e permitiu a realização de eleições legislativas multipartidárias em 1981. Ainda que o PSD tenha obtido grande vitória, o “Movimento da Tendência Islâmica” (MTI), grupo de orientação islamista fundado naquele mesmo ano comandado por Rached Ghannouchi, ascendeu nesse contexto. O MTI foi reprimido pelo governo central ao longo da década, devido a acusações de fomentar seguidos protestos no país, as chamadas “Revoltas do Pão”, que almejavam o barateamento dos alimentos, e porque chocava-se com o projeto laico do presidente Burguiba.

A repressão política aos islamistas e a grave crise econômica tornaram o governo de Burguiba insustentável. Em 1987, sob a justificativa de que o presidente estaria muito velho, o então Primeiro-Ministro, Zine El-Abidine Ben Ali, tomou o poder. O governo Ben Ali marcou-se, inicialmente, por adotar medidas de abertura política. O mandato vitalício do presidente da República foi abolido e uma nova lei de partidos políticos foi aprovada, permitindo a legalização de diversos agrupamentos. O MTI, que passou a se chamar Ennahdha (Renascença) em 1989, continuou a ser perseguido, e sua liderança, ainda que libertada pelo governo, foi exilada, em especial para a Europa.

As medidas de abertura anunciadas não resultaram em maior participação política. O PSD, renomeado Aliança Constitucional Democrática, seguiu com ampla influência no cenário administrativo e político do país. Ben Ali, por sua vez, foi sucessivamente reeleito presidente em 1994, 1999, 2004 e 2009, tendo suas reeleições contestadas por entidades independentes. No plano econômico, se intensificaram reformas liberalizantes, voltadas à atração de investimentos externos, baseadas em amplo programa de privatizações que favoreceram setores vinculados ao governo. Embora a renda per capita tunisina tenha triplicado neste período, as desigualdades sociais e regionais do país foram ampliadas. Sem a mesma legitimidade de Burguiba, líder da independência nacional e propulsor de uma modernização social, Ben Ali se ancorou no chamado “Milagre Tunisino” e na ampliação dos gastos públicos com assistência social, em particular com subsídios a produtos de primeira necessidade.

Ben Ali Tunísia
Ben Ali e George W. Bush em 2004. Foto: Wikipédia

Revolução Tunisina de 2011

Ao fim da década de 2000, as tensões econômicas e políticas se agravaram. Mesmo com a economia performando com boas taxas de crescimento, os setores produtivos não foram capazes de absorver um crescente contingente de mão de obra, em especial os mais jovens e recém-formados. A taxa de desemprego alcançou os 13% da população ativa, em 2010, sendo superior a 20% entre jovens com diploma universitário e em cidades do interior tunisino. O regime político, a seu turno, mostrava-se incapaz de responder às crescentes demandas por renovação e por maiores liberdades civis e políticas.

Em dezembro de 2010, a autoimolação de um jovem vendedor ambulante, Moahammed Bouazizi, em protesto contra ação policial de que fora vítima, foi o estopim para uma enorme onde de manifestações populares no país. A persistência e disseminação desses movimentos inviabilizaram a permanência de Ben Ali no poder. Em janeiro de 2011, o presidente fugiu da Tunísia, depois de 23 anos no comando da nação, em exílio na Arábia Saudita. Os protestos tunisinos e a derrocada de Ben Ali marcaram o início da “Primavera Árabe”, onda de revoltas e insurreições populares que abalou a maioria dos países árabes naquele ano.

Após a fuga de Ben Ali, as lideranças políticas tunisinas, juntamente com alguns setores da oposição, se movimentaram rumo a uma transição política pacífica. Em fevereiro de 2011, com Beji Caïd Essebsi como Primeiro-Ministro, foi permitida a legalização de mais de uma centena de partidos, entre os quais o Ennahdha, e foram organizadas eleições para a Assembleia Nacional Constituinte (ANC).

Nação progressista

A Constituição da Tunísia, de 2014, é considerada como mais progressista do Mundo Árabe, assegurando a liberdade de crença, a igualdade legal entre os gêneros, e declarando no seu preâmbulo, que o país se constitui em um estado civil. O “Quarteto do Diálogo Nacional Tunisino”, integrado por representantes da sociedade civil, foi laureado com o prêmio Nobel da Paz de 2015, pela sua atuação na transição política. À época, o comitê avaliador do prêmio justificou a escolha do Quarteto pela sua “contribuição decisiva para a construção de uma democracia pluralista na Tunísia, país que passou pela transição democrática mais bem-sucedida após a Primavera Árabe”.

Eleições de 2019

As eleições presidenciais e legislativas de 2019 representaram o fim do equilíbrio garantido pela coalizão entre partidos seculares como o Nidaa Tunes e islamistas do Ennahdha, com expressivos votos para figuras políticas independentes. Em junho, o presidente Essebsi veio a falecer durante o exercício de seu mandato. Esse fato provocou a antecipação das eleições para setembro.

Kaïs Saïed, candidato também independente, acabou eleito com 72,5% dos votos válidos, embora fosse figura relativamente desconhecida no cenário político tunisino. Nabil Karoui, embora derrotado, logrou que seu partido Qalb Tounes (Coração da Tunísia), derivado da Nidaa Tounes, lograsse a segunda maior bancada da Assembleia de Representantes do Povo (ARP).

Paralelamente, as eleições parlamentares, com quase 60% de abstenção, redundaram em fragmentação partidária, sem maioria confortável de nenhum partido. A Ennahdha, maior bancada, conseguiu apenas 52 dos 109 assentos necessários para formar maioria. Os assentos restantes ficaram divididos entre Coração da Tunísia, Tahya Tounes, Al Karma, Partido Nacionalista Árabe, Corrente Democrática, Destourien Libre e o Nidaa Tounes, além de independentes.

Kais Saied Tunísia
Presidente Kais Saied em 2019. Foto: Wikipédia

Contexto atual

A ausência de um partido ou coalizão majoritária na Assembleia de Representantes do Povo (ARP) e o fato de o Presidente da República não estar ligado a nenhum dos principais partidos na ARP criou uma dinâmica política nova de alianças partidárias. O Ennahdha se retirou do governo e buscou uma associação com o Coração da Tunísia.

Em 25/07/2020, o Presidente da República nomeou o então Ministro do Interior, Hichem Mechichi, para o cargo de Primeiro-Ministro. Mechichi, de perfil técnico, apresentou uma proposta de governo a ser executada integralmente por nomes independentes, comprometida com o interesse público, racionalizando os gastos públicos, atraindo investimentos privados nacionais e estrangeiros, reformando o setor público, e favorecendo as classes mais pobres. Em 01/09/2020, a ARP outorgou seu voto de confiança ao novo governo tunisino, que contou com apoio das duas maiores bancadas no Parlamento, o Ennahdha e o Coração da Tunísia, assim como do Tahya Tounes.

Ahmed: um oásis no deserto

A Tunísia vive a sua pior crise sociopolítica desde a Primavera Árabe. No último dia 25  (apenas 1 antes do ouro de Ahmed), o Presidente Kaïs Saïed destituiu o Primeiro-Ministro, assumindo todos os poderes do Executivo; fechou o Legislativo por 30 dias, e ordenou que as tropas militares fossem às ruas para controlar os protestos civis, decretando toque de recolher em algumas cidades, até 27 de agosto, proibindo o ir e vir dos cidadãos entre 19h e 6h, a circulação de veículos entre uma cidade e outra e reuniões com mais de três pessoas em locais públicos.

A pandemia da COVID-19, a corrupção, o aumento da dívida pública e o alto índice de desemprego entre os jovens e a falta de oportunidade para eles têm inflamado a sociedade tunisina, que tomou as ruas do país nos últimos dias, por conta de um contrato social rompido por uma fragilidade econômica e um impasse político.

Conforme o Banco Mundial, entre 2011 e 2019 foi de 1,5% abaixo do projetado. As exportações e os investimentos nunca recuperaram a pujança pré-Primavera Árabe. A corrupção corre solta. A pandemia dizimou o turismo, principal alicerce da economia tunisina em 2020; outro setor muito afetado foi a indústria.

A soma desses fatores alavancou a taxa oficial de desemprego para 17,4% no final do ano passado, em comparação com os 14,9% pré-pandêmico. Nos primeiros três meses de 2021, aumentou para 17,8%, conforme o Instituto Nacional de Estatística.

Mas esse número não captura todo o desespero e frustração que enraivece os jovens do país.

Tunísia
Foto: Reprodução redes sociais

Em 2011 o desemprego juvenil era de 42%, segundo o Banco Mundial. Em 2019, havia caído para cerca de 35%, mas o Fundo Monetário Internacional calcula que voltou a subir acima de 36% no último trimestre do ano passado.

A juventude,  que semeou e alimentou a Primavera Árabe, toma as ruas ao longo de 2021 para protestar contra a ineficácia política, a corrupção e a falta crônica de oportunidades.

Além disso, o país enfrenta a terceira e mais séria onda de infecções por COVID-19, que colapsou o sistema público de saúde, e enfraqueceu o setor produtivo, por conta das medidas de distanciamento social e lockdowns.

Escancarando a desigualdade global de vacinas, apenas cerca de 7% dos tunisianos estão totalmente vacinados, de acordo com os últimos números do portal Our World in Data.

O governo tentou mitigar o golpe financeiro da perda de empregos e da renda por conta das restrições impostas pela COVID-19, ampliando os programas de assistência social que transferem renda para famílias em dificuldades. Iniciativas como essa recebem a defesa de instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial para amenizar os danos econômicos do coronavírus no mundo.

No entanto, essa e outras medidas de resposta à pandemia – junto com o declínio das receitas – pioraram o déficit fiscal da Tunísia e sua situação de dívida. A dívida do governo atingiu 88% do produto interno bruto (PIB) no final de 2020, em comparação com 72% no ano anterior, observou o Banco Mundial em abril. Esperava-se que o crescimento econômico acelerasse este ano, mas não o suficiente para colocar a economia da Tunísia em patamares pré-COVID.

O país recorreu ao FMI, mas as tratativas com o órgão foram suspensas devido a um  empréstimo já realizado, no valor de US$ 4 bilhões.

Em geral, os pacotes do FMI vêm com amarras dolorosas para alcançar o que a agência chama de finanças “sustentáveis”. E, de fato, a agência no passado estimulou a Tunísia a reduzir sua folha de salários do setor público, bem como apoio fiscal para empresas estatais e subsídios gerais. Retirar esse apoio levaria inevitavelmente à perda de empregos e pressão financeira sobre as famílias, e isso provavelmente num curto prazo.

Em condições normais de temperatura e pressão, esses problemas seriam insuficientes para desestabilizar o governo central tunisino. Todavia, a revolta popular é generalizada e a liderança política atual do país está, mais uma vez, dividida. Esse cenário é desanimador, principalmente para os jovens tunisinos, pois os problemas são os mesmos, há mais de uma década.

A medalha de ouro conquistada por Ahmed Hafnaoui, por si só, não resolverá as calamidades socioeconômicas da Tunísia, mas certamente representa um sopro de esperança e um grande incentivo  para jovens desiludidos e resilientes, que enxergarão em Hafnaoui o símbolo de uma geração responsável pela renovação de um país.

Ahmed Hafnaoui
Foto: Reprodução

Notas

[1]Antes de Ahmed Hafnaoui, Mohammed Gammoudi conquistou 4 medalhas, sendo uma de prata nos 10.000 metros masculino nos jogos de Tóquio em 1964, uma de ouro nos 5.000 metros e uma de bronze nos 10.000 metros em 1968, nos Jogos da Cidade do México e, em 1972, mais uma de prata nos 5.000 metros, nos Jogos de Munique. Os boxeadores Habib Galhia (Tóquio, 1964) e Fethi Missaoui (Atlanta, 1996), ganharam 1 de bronze cada, ambos na categoria peso meio-médio ligeiro. O nadador Oussama Melloui ganhou 3 medalhas: um ouro nos 1.500 metros livres, em Pequim (2008), e duas nas Olimpíadas de Londres (2012), sendo 1 ouro na maratona aquática de 10km e 1 bronze nos 1.500 metros livres. Também em Londres, a atleta Habiba Ghribi conquistou uma prata nos 3.000 metros com obstáculo feminino.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Ludopédio.
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Breno Silva Oliveira

Engenheiro que adora ler e se inteirar sobre diversos assuntos

Como citar

OLIVEIRA, Breno Silva. O(s) significado(s) da épica conquista de Ahmed Hafnaoui. Ludopédio, São Paulo, v. 146, n. 8, 2021.
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